A maior de sempre além-fronteiras

Acessórios Imaginários é a maior mostra de arte contemporânea de Macau além-fronteiras. O Museu do Oriente, em Lisboa, foi palco desta colectiva nos últimos dois meses. Da montagem à inauguração, Macau mostrou como evoluiu em apenas três gerações de artistas que hoje marcam a diferença pelo profissionalismo, diversidade e humor das suas obras

 

 

Texto Patrícia Lemos

Fotos João Cortesão

 

É com uma vista muito sui generis da Praia Grande, a magnífica China Trade! Macau de Konstantin Bessmertny, que abre a maior exposição de artistas de arte contemporânea de Macau fora da região. “Não sei de nenhuma outra que tenha tido estas dimensões”, afiança o comissário da mostra, José Drummond. Acompanhado de alguns dos artistas representados na colectiva, chegou a Lisboa uma semana antes da inauguração, no dia 15 de Abril, para montar as peças de “Acessórios Imaginários”.

Apesar de faltarem três dias para a abertura, não há sombra de tensão durante a montagem da exposição da RAEM na Galeria Sul, uma sala de exposições com 409 metros quadrados situada no rés-do-chão do Museu do Oriente. Praticamente todos os quadros de pintura estão pendurados nas paredes, mas ainda falta retirar o filme plástico com bolhas de ar que cobre os pés das gigantescas pernas da cadeira, onde Carlos Marreiros pintou um Camões meio bobo da corte. Há ainda pedaços de cartão no chão e muitos novelos de fita-cola acabada de arrancar das embalagens que protegeram as peças de arte no voo de Macau para Lisboa. E são muitos os vestígios dos preciosos invólucros; afinal são quase 40 obras de 20 artistas de três gerações diferentes.

Drummond está concentrado num escritório improvisado na própria galeria, rodeado de computadores portáteis e fios. Está a dar os últimos retoques no documentário sobre os artistas de Macau patenteados que vai rodar na galeria durante a exposição. Também trata dos preparativos da mostra que, hoje em dia, não se dissociam do mundo virtual. É preciso dar novidades da viagem aos amigos do Facebook, digitalizar imagens e responder aos emails que vão chegando à sua caixa postal, sejam estes de amigos com saudades de o rever ou de jornalistas curiosos de Macau. Mas logo o vemos saltar da cadeira para trocar ideias com os funcionários do Museu do Oriente que se repartem pela enorme sala de exposições.

Alguns artistas e Bianca Lei ajudam Konstantin a esticar a grande tela da cáustica China Trade! Macau, o quadro que o pintor russo escolheu para se fazer representar em Lisboa. É preciso agrafar a orla à armação de madeira. Com poucos dedos de conversa em português, cantonês e inglês, o trabalho fica pronto para ganhar a moldura.

Naquele átrio da galeria só concorrem com a China Trade! Macau as pinturas de Carlos Marreiros, que parodiam Camões ou Bocage. “Algumas destas obras já foram apresentadas, mas a sua presença aqui faz sentido pela necessidade que tive de criar uma espécie de passagem sobre o que tinha sido feito há 20 anos”, data da última grande exposição de artistas de Macau em Portugal. A saber: no Centro de Arte Moderna, na Gulbenkian. O mesmo sucede com os quadros de Mio Pang Fei, “que são absolutamente necessários para traçar essa linha de continuidade”, enfatiza o comissário.

 

O “fulgor” de Ung Vai Meng

Um dos grandes baluartes desta exposição assinala o regresso às galerias de um pintor que marcou os anos 90 de Macau. Com três imponentes trabalhos, o actual presidente do Instituto Cultural, Guilherme Ung Vai Meng, contribui para este grupo com pinturas que parecem verdadeiros estandartes. Drummond ficou muito feliz “por Ung ter aceite o convite” e que, “ainda por cima, tenha demonstrado este fulgor, apresentado obras com tal dimensão e presença”. O comissário acredita que, “como no caso de Carlos Marreiros, estas três obras enriquecem a mostra”.

Mas não foram só os pintores consagrados a exibir os seus “acessórios” em Lisboa. Igualmente representada nesta mostra está a segunda geração de artistas de Macau, da qual faz parte Bianca Lei. A sua escultura-instalação composta por 13 telas parece desconstruir o mundo da pintura que se impõe na primeira ala da Galeria Sul, “mas isto continua a ser pintura, porque esta peça também cumpre o objectivo da ilusão”, justifica o comissário.

Drummond destaca também o talento de James Wong, até porque este “é, actualmente, o grande mestre da gravura em Macau”. Como Bianca Lei, Xin Jing e João Ó, entre outros, Wong estudou fora da RAEM. A sua obra tem influências do Japão, “onde ele tirou o seu curso”. Este pormenor da formação além-fronteiras e o humor fruto da individualidade de cada artista são marcas indiscutíveis da diversidade que é tónica da arte contemporânea de Macau.

Dois quadros do ilustre Lio Man Cheong parecem acordar velhos fantasmas da Macau colonial. Drummond colocou-os ao lado dos óleos lindíssimos de Xin Jing, naquele que parece um acto de apadrinhamento de Lio à mais jovem geração de artistas. Com apenas três anos de RAEM, Xin admite o “carácter pessoal” dos seus quadros relativamente à sua nova vida em Macau. Tem que ver com a ideia de escape da cidade. Xin imagina-se mergulhada na água, como quem entra noutro mundo menos atribulado do que o da RAEM. Drummond sublinha o power de Xin na pintura e elogia depois o estudo de cor e de luz dos trabalhos de Silviye Lei: “Isto é novo em Macau”.

Ng Fong Chao e Alice Kok são outros artistas que responderam ao desafio do comissário. Com formação em França, Kok reflecte sobre o mundo dos casinos num dos primeiros vídeos da mostra, um meio de expressão depois reforçado pelo mais recente alter-ego de Drummond, Performer, e por Peng Yun. João Vasco Paiva é o autor do último vídeo-instalação. Este artista está mais interessado no vídeo enquanto meio de expressão e “não tanto pela via da narração como é o meu caso e o da Peng”, esclarece o comissário.

 

“Tá-se Bem” em Lisboa

Antes da rampa que dá acesso à ala onde reina a fotografia, a instalação e o vídeo, está Pakeong Sequeira a desenhar num papel colado na parede. É o único artista a criar a sua obra no local, uma performance que animou também o dia da inauguração. Por agora, parecem pequenas abstracções. “É a primeira vez que uso outra cor além do preto”, garante este macaense, que está muito feliz por estar pela primeira vez em Lisboa. Tanto que lhe dedica o trabalho, intitulando-o de “Tá-se Bem”. É que “a minha mãe é portuguesa, daí que Portugal seja também a minha terra-mãe”.

Coke Wong também não conhecia a capital portuguesa mas sente-se em casa. Criou uma instalação composta por uma série de porquinhos com asas. Coke garante que “são todos iguais e todos diferentes”, porque o estilo de caligrafia muda de dorso para dorso. Os porcos primam ainda por ter areia de Macau na sua composição.

Mais adiante avulta-se o verde das fotografias do arquitecto João Ó referentes aos trilhos de Coloane, onde, aparentemente, só existe a natureza. Porém, o autor esclarece que “o percurso é feito pelo homem”. Inclusivamente, “segundo consta, esta é uma das últimas zonas reflorestadas de Macau”. Estas fotografias fazem parte da série “Geografia Recursiva” que compõe a sua próxima exposição individual, a abrir em Junho na Casa Garden.

Nem todas as obras usam o território como tema central. É o caso do “homem-insecto” de Tong Chong, que é o protagonista de um grupo de pinturas que alude à arte tradicional chinesa. “Ele tem um universo muito característico”, salienta Drummond. Se há obra ali presente que aborda directamente a temática de Macau é a de James Chu, o assistente do comissário. Compõe-se de três bandeiras – Macau, China e Portugal – e do som dos hinos das duas nações. Macau não tem hino. Chama-se “Harmonia” e vive da transparência dos estandartes. A sua linguagem é directa, porque Chu considera “muito importante apresentar as ideias de uma forma muito simples, embora os processos criativos sejam sempre bastante complicados”.

Depois dos Acessórios Imaginários regressarem à RAEM é a vez de uma mostra dedicada ao arquitecto Manuel Vicente ocupar a Galeria Sul, naquela que será uma sentida homenagem a um dos maiores nomes da arquitectura de Macau. É assim recordado numa retrospectiva intitulada Manuel Vicente, Trama e Emoção entre os dias 24 de Junho e 7 de Agosto.

 

 

Inauguração com casa cheia

Havia muita expectativa em torno da inauguração de Acessórios Imaginários, no dia 15 de Abril. Uma preocupação debelada pela quantidade de convidados que respondeu à chamada no Museu do Oriente. A Galeria Sul esteve repleta de gente de Macau, amigos que não se encontravam há muitos anos, chineses, macaenses, fotógrafos, jornalistas e ilustres convidados como Gabriela César, da Delegação Económica e Comercial de Macau em Lisboa, o presidente da Fundação Oriente (FO), Carlos Monjardino, ou a conselheira cultural da Embaixada Chinesa em Portugal, Liu Wenqui. Estes visitantes especiais viram todas as obras e ouviram ainda algumas explicações dos próprios artistas sobre os seus trabalhos.

Monjardino ficou impressionado com o que viu: “Gostei, mesmo daquilo relativamente ao qual eu não sou tão sensível, como as instalações. Foram-me explicadas em detalhe e compreendi as mensagens”. O responsável máximo da FO apreciou a variedade da mostra e o facto de ali estarem “artistas muito novos com uma grande força e potencial”. Por seu turno, Liu Wenqui admitiu que “tinha de estar presente nesta inauguração para apoiar os artistas chineses”. A conselheira confessou, no final da visita, estar “muito orgulhosa” destes valores de Macau, ainda que este tenha sido o seu primeiro contacto com a arte contemporânea da RAEM. “Usam a técnica e a imaginação, em estilos diversificados para nos apresentar estes trabalhos que têm um cariz tão multicultural”. Liu acredita que este tipo de trocas culturais possa contribuir muito para o entendimento entre portugueses e chineses.

 

 

Manuel Vicente recordado em Lisboa

Primeiro recebeu os Acessórios Imaginários de Macau. Agora é a vez da Galeria Sul do Museu do Oriente acolher a retrospectiva Manuel Vicente, Trama e Emoção. “Vai ser a mostra mais importante que este museu vai organizar no segundo semestre”, garante a directora do Museu do Oriente, Manuela Oliveira Martins. As memórias deste nome maior da arquitectura de Macau são desvendadas entre os dias 24 de Junho e 7 de Agosto.

Um dos desejos da equipa do museu alfacinha era “fazer exposições de arquitectos de Macau em Lisboa e depois exibi-las na RAEM”, explica o administrador da Fundação Oriente, João Calvão. “É um homem com obra de 1963 a 2004. É mais conhecido em Macau do que em Portugal. Aqui fez grandes obras mas não foram muitas”, assegura Calvão.

A retrospectiva que tem o tom de uma sentida homenagem percorre 50 anos de carreira e é composta por obras que constituem uma panorâmica da obra do arquitecto. Manuela Oliveira Martins orgulha-se muito deste evento que “teve como motor principal o arquitecto João Afonso”. Além dos desenhos originais, a exposição inclui ainda maquetas, imagens e textos referentes aos projectos do arquitecto português. Manuel Vicente, Trama e Emoção é um programa que inclui ainda um conjunto de filmes, realizados em Macau no início deste ano, e que propõem uma reflexão sobre a apropriação de algumas das suas obras.

 

 

“Macau tem aqui um espaço privilegiado”

 

Os Acessórios Imaginários dos artistas de Macau são as sementes que há muito se desejava plantar no Museu do Oriente, em Lisboa. Porque “Macau tem aqui um espaço privilegiado”, salienta o administrador da Fundação Oriente (FO), João Calvão.

Como a FO quer manter e reforçar os laços com a RAEM, “eu entendi, quando entrei para o conselho de administração, que era muito importante mostrar a Macau que este espaço lhes pertence; que aqui poderão apresentar todas as actividades que entenderem, desde as comerciais às culturais”.

A última vez que um grupo grande de artistas do território foi a Lisboa mostrar a sua arte contemporânea foi há mais de 20 anos, no Centro de Arte Moderna. O também  ex-presidente do Instituto Cultural de Macau nota mesmo “uma evolução muito grande em relação àquilo que se fazia” antigamente na região. E não é só na pintura, adianta, mas também nas artes gráficas e em todas as outras disciplinas: “Houve uma grande transformação ao nível dos materiais usados e do tratamento pictórico e conceptual”, refere João Calvão. O vídeo, por exemplo, aparece bem representado neste evento e é um dos suportes que mais promete no futuro da arte contemporânea, sublinha. “Julgo que a ida de vários artistas de fora para Macau foi muito importante e acredito, por outro lado, que Hong Kong também tenha tido o seu papel neste desenvolvimento por ter acolhido obras de alguns pintores chineses menos apoiados.”

 

Fundações de mãos dadas

Além de poder dar mais visibilidade à arte contemporânea de Macau, esta exposição tem o condão de marcar o início de uma cooperação entre duas grandes instituições. A Fundação Macau e a Fundação Oriente unem-se assim, como nunca antes, na produção desta mostra. Segundo Calvão, “se tudo correr bem, esta será a primeira de muitas acções conjuntas” das duas entidades. Uma parceria que aproximará certamente Macau de Lisboa.

Calvão admite que “não foi fácil iniciar” essa aproximação. “Temos consciência de que não é possível conquistar logo aquilo que andámos todos, durante vários anos, a menosprezar. Mas creio que iremos lá.” Para este responsável, o silêncio entre as duas instituições não fazia sentido: “Temos objectivos tão semelhantes. Houve problemas, mas tudo na vida tem de ser explicado e entendido e tem de se passar para fases seguintes que sejam criadoras de encontros e de entendimento”. Também o presidente da FO, Carlos Monjardino, manifestou o seu apreço por esta cooperação. “Foi algo por que me bati e considero esta colaboração entre as duas fundações muito importante.”