Deolinda sonham tocar em Macau

Macau pode muito bem ser o primeiro palco que os Deolinda vão pisar a Oriente. Depois de no ano passado terem sido obrigados a recusar um convite esperam que em breve se proporcione concretizar o projecto. Nos camarins, Ana Bacalhau deixou bem claro o quanto lhe agrada a ideia: “Adorava ir a Macau!”

 

 

Texto Patrícia Lemos

 

Foi nos camarins do mítico Jazz Café de Camden, em Londres, palco dos Deolinda em Março, que partilharam o sonho de rumar ao Oriente para uma grande digressão que queriam que começasse em Macau. O contrabaixista dos Deolinda, Pedro Leitão, acredita que a visita aconteça entre o próximo Outono e o início do próximo ano. Mesmo a tempo do Festival Internacional de Música de Macau (FIMM) ou… do Festival da Lusofonia. “Bela ideia!”, interrompe a efusiva Ana Bacalhau, a vocalista.  Depois de recusarem um convite para actuar em Macau no ano passado por falta de “calendário”, os Deolinda querem que à segunda seja de vez. E por eles pode ser já este ano. Ana Bacalhau confessa que ficaram “tristíssimos” por não poderem ir a Macau: “Nunca fomos ao Oriente e essa é uma viagem que queremos mesmo fazer. Eu adorava ir a Macau.” O compositor e letrista Pedro Martins acredita que esta viagem a Macau enriquecerá a banda. Afinal, este é o “som” da lusofonia que lhes falta na partitura. Ana acrescenta que a experiência “vai certamente alargar os horizontes da banda”. A possibilidade de tocar com a Orquestra Chinesa de Macau agrada – e de que maneira – ao quarteto alfacinha. “É um desafio que nos dará mais ideias musicais”, sublinha o compositor. É bom imaginar no quadro Ana Bacalhau na frente da orquestra vestida com aqueles vestidos criativos da figurinista habitual, Cláudia Ribeiro. Londres em brasa Foi com um desses figurinos de encantar que Ana Bacalhau subiu ao palco londrino de Camden, após a estreia há cerca de dois anos no Reino Unido, no Institute of Contemporary Arts. Nessa altura deram de tal forma nas vistas que o jornal The Times acreditava que a banda portuguesa não só regressaria a Londres, como actuaria numa sala maior. Dito e feito. No raiar do mês de Março, os Deolinda deram música para receber o dobro dos aplausos. Todos, ou quase todos, de portugueses.  Ana Bacalhau e os seus “deolindos” encantaram uma sala à pinha em Londres, com cerca de 300 pessoas. A maior parte compareceu à chamada às sete da noite e esperou quase duas horas para ouvir a grande sensação da música portuguesa do momento. Ana Bacalhau foi logo avisando: “I will be speaking in English tonight” [Vou falar em inglês esta noite]. Num sotaque inglês cristalino, muito provavelmente fruto da sua formação académica em línguas e literatura modernas, a cantora parecia adivinhar os protestos que se seguiam e, como quem apaga o fogo, disse: “As músicas são em português”. Não foi a irreverente Deolinda, alter-ego de Ana Bacalhau, quem animou as hostes nos primeiros acordes deste concerto. Com um vestido preto, a vocalista entrou com pezinhos de lã na carpete que cobria o pequeno tablado londrino. Depois de quatro coliseus e o sucesso retumbante em Portugal do tema Parva Que Sou…, aquele palco parecia pequeno demais para os Deolinda, ainda por cima encaravam um público saudoso de Portugal, coladinho ao degrau que os separava da plateia. Se “Não Tenho mais Razões” avisou que aquele era um concerto de apresentação do segundo álbum Dois Selos e um Carimbo, lançado em Abril do ano passado, “Contado Ninguém Acredita” recuou à estreia super platinada do LP “Canção ao Lado”. A maioria do público parecia desconhecer o segundo arremesso discográfico dos Deolinda, cantando em uníssono praticamente todos os refrãos do primeiro disco. O quarteto alfacinha fingiu não reparar e voltou à carga com quatro temas do último álbum. “Patinho de Borracha” foi o mote e afiou a língua de Ana Bacalhau, que não poupou os “marujos de banheira” armados em lobos-do-mar. Com “Passou por Mim e Sorriu”, Ana fez valer o power of the smile [(poder do sorriso]) e em “Sem Noção” lembrou as maleitas do materialismo. O trunfo do acústico Os Deolinda marcaram assim alguns tempos lentos que pediam reflexão, conquistando a atenção do público que ia bebericando as palavras num cocktail temperado com o álcool servido ao balcão. Mas não eram só os copos e os aplausos que ocupavam as mãos dos melómanos. Eram muitos os telemóveis que registavam aquele momento e entravam em tempo real nas redes sociais. Porque hoje é tão importante partilhar. “This next song asks all of you to unplug yourselves from all the Facebooks and Twitters and live life in the old-fashioned way.” [A próxima canção pede-vos que se desliguem de todos os Facebooks e Twitters e vivam a vida à moda antiga]. Ana pediu e o público anuiu. “Um Contra o Outro” foi assim o primeiro momento alto da noite, com a cantora a abanar o capacete e a mostrar o seu lado mais rock n’roll. Mas, verdade seja dita, até soar “O Fado não é Mau” e os primos Luís e Pedro Martins dedilharem nas guitarras e José Leitão puxar nas cordas do contrabaixo as notas seguidas do primeiro disco, o concerto ficou numa espécie de banho-maria. O público aplaudiu e esteve sempre atento, não arredando pé da plateia, mas… faltava qualquer coisa. Ninguém sabia bem o quê, mas que faltava, faltava. Quando Ana Bacalhau iniciou o seu popular desfile de personagens em palco, provando porque anda a destroçar corações pela Europa, é que o concerto ganhou chama. Armou a fadista com a língua de fora em “Fado Toninho”, fez-se bairrista com graça em “A Problemática Colocação de Mastro” e seduziu todos com a sua sensualidade em “Ai Rapaz”. Mas há mais: lembrou Carmem Miranda em tempos de “Canção da Tal Guitarra” e acenou confiante à bossa-nova (“Não sei Falar de Amor”). A música dos Deolinda tem toques de África e Brasil tão bem mesclados com a música popular portuguesa que é difícil identificar todas as referências. Cantactriz em festa Põe a mão na anca e acorda os nossos Santos Populares, dá passinhos e pavoneia a elegância da senhora Deolinda, sacode a cauda colorida do vestido preto, qual espiral de incenso da nossa tradição, ou chega a palma da mão à barriga para fingir um sambinha. Ana não pára em palco. É mais do que uma grande entertainer, ela é, como muito bem se diz, uma ‘cantatriz’. E não podia estar em melhor companhia: no cenário magnífico da verve criativa do compositor/letrista Pedro Martins a contar com o grande apuro técnico do primo e do marido. Esta essência familiar dos Deolinda dá-lhes uma identidade fortíssima e isso há muito faltava à música popular portuguesa. Nesta fórmula de sucesso cantam mais ingredientes. A alegria dos ambientes festeiros das universidades parece contrabalançar a nostalgia do fado. Também a esperança que pontua as letras das músicas não se perde no picante da crítica social. É um prato servido que só pode ser assim tão popular e que, em Londres, matou bem as saudades de Portugal.  Se alguma crítica há a apontar a este grupo, que fez dois encores na Big Smoke, será no facto de se apoiar demasiado no talento e na expressividade da cantora e não se exceder o suficiente no colorido de sons, que acaba demasiadas vezes num dedilhar fininho de guitarra ou num ritmo repetido de contrabaixo. Faltam assim mais sons, os sons que afinal tanto caracterizam a paleta da música lusa; e que podem muito bem chegar a Macau se os músicos decidirem levar consigo a pianista Joana Sá e o quarteto de cordas que foram seus convivas nos coliseus. Está tudo à espera do convite!