Na hora do desafio

Foi vila piscatória, casulo da economia socialista de mercado de Deng Xiaoping. Shenzhen realizou o sonho de muitos emigrantes. Agora, passados mais de 25 anos, os ventos da mudança varrem a cidade levando as grandes máquinas fabris para o Interior do País. Mas a metrópole não esmorece e aceita o desafio, reinventando-se a si mesma

 

 

Texto Mark O’Neill, em Shenzhen 

 

Quando a empresa Foxconn de Taiwan, a maior produtora de componentes electrónicos, abriu uma unidade fabril em Shenzhen, em 1988, atraiu uma torrente de novas fábricas na primeira Zona Económica Especial da China. A actividade da companhia taiwanesa cresceu e transformou-se no maior complexo industrial do mundo, com mais de 400 mil pessoas a trabalhar em 15 fábricas numa área de três quilómetros quadrados. Contudo, como a   está a construir fábricas gigantescas em Zhengzhou e Chengdu, nas províncias de Henan e Sichuan, respectivamente, a mão-de-obra que labuta em Shenzhen vai ser cortada em metade. É intenção da empresa transferir toda a sua produção em massa para fora da cidade e converter as instalações em Shenzhen num centro de engenharia para criar projectos-piloto na área da produção.

A redução do número de postos de trabalho por parte do empregador mais relevante de Shenzhen é um sinal de mudança naquela que é a maior e mais bem sucedida Zona Económica Especial (ZEE) da China. A cidade costeira começou por ser um centro de produção fabril de baixo custo destinado à exportação e, mais tarde, ao mercado interno. Contudo, agora padece de falta de espaço para crescer, os custos de produção estão a aumentar e muitas empresas, como a Foxconn, estão em debandada. A cidade não é tão especial como outrora, procurando assim um novo papel a desempenhar.

É importante reforçar que esta ZEE foi um enorme sucesso. Se há 30 anos era uma vila piscatória, hoje é uma cidade em expansão com nove milhões de habitantes, atraindo mais de 30 mil milhões de dólares norte-americanos em investimento estrangeiro. É ainda morada de uma das três bolsas de valores da China, de muitas empresas internacionais de alta tecnologia e do maior campo de golfe do mundo. Shenzhen alberga o terceiro porto de contentores mais movimentado da China, logo a seguir a Xangai e a Hong Kong, e tem um Produto Interno Bruto (PIB) per capita superior a 13 mil dólares norte-americanos (104,3 mil patacas). No ano passado, o PIB de Shenzhen alcançou os 144 mil milhões de dólares norte-americanos, ficando assim na quarta posição entre as cidades chinesas.

Os arranha-céus e as auto-estradas que animam Shenzhen são hoje símbolo da transformação económica da China: os campos de arroz e as casas rústicas rurais degradadas deram origem a uma metrópole famosa em todo o mundo. Porém, dezenas de cidades por todo o País oferecem agora o mesmo aos investidores estrangeiros, algo que estava reservado às ZEE. Inclusivamente, muitas dessas cidades do Interior dispõem de terrenos e proporcionam custos laborais a uma fracção dos praticados em Shenzhen.

“O futuro de Shenzhen reside nas empresas que operam na área da Internet, das energias renováveis, da produção de novos materiais e na biotecnologia”, garante Xie Mingcheng, um consultor empresarial local, acrescentando que “estes novos sectores vão reforçar o forte potencial que já existe no ramo da alta tecnologia, ciência e software”. São áreas industriais que “constituem um oásis para atrair investimento”, assegura, por seu turno, Cao Jingshan, o director-geral da Datang International. Esta empresa está a investir entre seis e dez mil milhões de yuans numa rede de produção de energia com baixa emissão de carbono numa zona industrial da cidade.

A Datang foi uma das 51 grandes empresas estatais que assinou protocolos com Pequim no dia 14 de Março deste ano com vista a um investimento de 470 mil milhões de yuans em Shenzhen, em sectores como o financeiro e o turístico e ainda nas áreas da aviação, electrónica, produção fabril, energia e a construção civil. Outra empresa pública, a fabricante de equipamentos de telecomunicações ZTE Corp, está a investir 160 milhões de yuans na construção de um laboratório para criar a próxima geração de sistemas de comunicações móveis. O Governo acredita que estas indústrias vão ocupar o lugar deixado pelas anteriores e conta com elas para conduzirem a cidade à sua próxima fase de crescimento.

 

O sonho dos emigrantes

Em 1979, o Governo Central escolheu a vila piscatória de Shenzhen para ser a primeira ZEE dada a sua proximidade a Hong Kong. Foi uma “experiência” que visava a entrada de investimento estrangeiro num país que tinha estado fechado ao exterior durante 30 anos. Os primeiros investidores chegaram de Hong Kong. Atravessaram apenas a fronteira, levando para Shenzhen as suas fábricas, de modo a tirarem partido da mão-de-obra barata e dos reduzidos preços de venda de terrenos.

Mais empresários seguiram a tendência. Chegavam da diáspora chinesa, de países asiáticos, da Europa e dos Estados Unidos, atraídos pelos baixos custos de produção de bens, que eram depois encaminhados para os mercados internacionais através de Hong Kong. Shenzhen transformou-se assim numa zona industrial gigantesca apostada na produção de mercadorias para exportação.

Às fronteiras de Shenzhen chegaram assim emigrantes de toda a China, fossem quadros superiores com doutoramento, empresários com ideias empreendedoras ou camponeses à procura de trabalho. Lembravam a enchente de emigrantes que chegara à América e à Austrália cheia de sonhos para recomeçar a vida sem o peso do passado. Shenzhen é agora uma cidade de emigrantes e a única na Província de Guangdong a ter o mandarim como língua de eleição em vez do cantonês.

Esses recém-chegados abriram empresas e arriscaram em empreendimentos, algo que não poderiam ter feito noutras cidades chinesas, onde a economia era regulada com maior rigor e os impostos eram mais elevados. As vidas do inventor Zou Dejun e do seu filho Zou Shenglong atestam isso mesmo, sendo o típico testemunho do sucesso que os emigrantes alcançaram em Shenzhen.

Em 1982, Dejun mudou-se para a Faculdade de Ciências da cidade, onde começou a trabalhar no sector da electrónica. Assinou mais de 300 invenções, tendo sido premiado a nível internacional. O filho Shenglong estudou nos Estados Unidos. Recorda que na escola “os colegas eram oriundos de toda a China”, considerando esse “um encontro de emigrantes num ambiente muito criativo e alegre”. Shenglong trabalhou na América e, ao fim de três anos, regressou a Shenzhen com o intuito de fundar a Xunlei Corp., que é actualmente a maior empresa chinesa na área de descarregamento de software e de fornecimento de serviços online. Neste momento, está a preparar uma Oferta Pública de Venda (OPV) para angariar, ainda este ano, 200 milhões de dólares no mercado de capitais norte-americano.

 

ZEE com futuro verde

A ideia de Deng Xiaoping, o mentor das ZEE, era criar uma espécie de estufa e aí lançar uma economia de mercado para avaliar se o modelo se adequava ao país no seu todo. Das quatro ZEE – Shenzhen, Xiamen, Shantou e Zhuhai -, a metrópole vizinha de Hong Kong foi a mais bem sucedida, sobretudo devido à vantagem da sua zona fronteiriça. De zona de produção de mercadorias para exportação transformou-se numa grande cidade, num centro financeiro e banqueiro, numa plataforma comercial com um grande aeroporto, um eminente porto marítimo e ainda num espaço capaz de acolher encontros e conferências.

Em 1990 abriu a bolsa de valores, sendo hoje a terceira maior da China, logo a seguir a Hong Kong e Xangai. Com 1230 empresas registadas e um valor de mercado estimado em 8,98 biliões de yuans,  a bolsa teve ganhos de 24,7 biliões de yuans em 2010, com os emissores a angariarem 408,4 mil milhões de yuans através do financiamento de capitais próprios.

Em 1996, a cidade viu nascer um parque industrial de alta tecnologia, ao qual foi acrescentado posteriormente um complexo informático. Shenzhen é ainda morada de algumas das empresas mais conhecidas na área das altas tecnologias, como a Huawei, ZTE, Konka, Skyworth, Tencent, Hasee, Dingoo e a fabricante de automóveis BYD.

Quatro instituições financeiras instalaram em Shenzhen as suas sedes nacionais, nomeadamente o Banco de Comerciantes da China, o Banco Comercial da Cidade de Shenzhen, o Banco de Desenvolvimento de Shenzhen e a Seguradora Ping An. Os retalhistas estrangeiros Ikea e Wal-Mart também escolheram esta urbe para estabelecer a sua sede na China.

Na metrópole destaca-se ainda presença do Huaqiangbei, um dos maiores mercados mundiais de equipamentos de telecomunicações e componentes electrónicos. O bairro de Lowu, localizado junto ao posto fronteiriço de Hong Kong, também alberga diversos centros comerciais.

“O volume de negócios do Huaqiangbei está a diminuir porque as margens de lucro são demasiado pequenas”, salientou Thomas Chan, o director do Centro de Negócios da China, da Universidade Politécnica de Hong Kong. Este responsável tem fé no futuro da Província de Guangdong: “Vai ser um grande centro ecológico, à semelhança de Tóquio e Londres, com Cantão no centro das operações”. Chan está ciente que a capital de Guangdong “vai equiparar-se às outras cidades, incluindo Shenzhen”, até porque “muitas das suas fábricas poluidoras desapareceram”. Chan acredita assim que essa cidade venha a ser palco de uma revolução ao nível do consumo, da qual o sector terciário sairá fortalecido, “como em Nova Iorque e Londres”.

 

Recordes inesquecíveis

No ano passado, Shenzhen continuou a crescer rapidamente. O PIB registado alcançou os 951 mil milhões de yuans, traduzindo-se num aumento de 12 por cento relativamente a 2009. Este valor corresponde à soma de 52,4 por cento no sector dos serviços e 47,5 por cento no ramo industrial e da construção civil. As vendas a retalho foram de 300 mil milhões de yuans, o que equivale a um acréscimo de 17,2 por cento.

Em 2010, Shenzhen exportou 204 mil milhões de dólares norte-americanos em mercadorias, correspondendo a um crescimento de 26 por cento, e importou produtos avaliados em 143 mil milhões de dólares norte-americanos, ou seja uma subida de 32 por cento. Atraiu ainda um investimento directo estrangeiro de 4,3 mil milhões de dólares norte-americanos, o que significa um crescimento de 3,3 por cento comparativamente a 2009. O porto de Shenzhen movimentou 22,5 milhões TEU (medida equivalente a contentores com 20 pés), representando assim um aumento de 23 por cento. Pelo aeroporto passaram 26,7 milhões de passageiros, mais nove por cento do que em 2009.

Um sinal da prosperidade de Shenzhen tem sido a subida em flecha do número de automóveis a circular pelas ruas – no final do ano passado, contavam-se 1,7 milhões de viaturas. A cidade tem 900 veículos por quilómetro quadrado, o que lhe atribui o posto da maior densidade rodoviária da China. Contudo, existem somente 700 mil lugares para estacionamento.

Tem-se registado ainda um forte investimento num novo sistema de transportes colectivos subterrâneos, que está em funcionamento desde Dezembro de 2004. Neste momento, a rede dispõe de quatro linhas e 49 estações, correspondendo a um total de 70 quilómetros de extensão de via metropolitana. Mas a rede vai aumentar para 177 quilómetros quadrados por altura das Universíadas de Verão, que decorrem em Agosto.

Pequim foi animado pelos Jogos Olímpicos, Xangai acolheu a Expo Mundial e Cantão os Jogos Asiáticos. Ao organizar a Universíadas de Verão de 2011, Shenzhen tem agora a oportunidade de mostrar ao mundo tudo o que conseguiu alcançar, melhorar as suas infra-estruturas e construir novos equipamentos para o evento.

 

Cooperar com Macau

Em Dezembro, Shenzhen e Macau assinaram cinco protocolos para aumentar e reforçar o trabalho de cooperação nas áreas financeira, turística, académica e cultural e ainda ao nível do controlo de medicamentos tradicionais chineses.

Os acordos foram formalizados durante um encontro entre o Chefe do Executivo, Fernando Chui Sai On, e Wang Yang, secretário-geral do Comité Provincial do Partido Comunista de Guangdong. Os dois responsáveis acordaram em reforçar a cooperação bilateral em diferentes áreas, sobretudo ao nível do turismo, da cultura e das indústrias criativas. Chui Sai On também visitou um bairro desta metrópole que foi nomeada “cidade com reduzidas emissões de dióxido de carbono”.

O Chefe do Executivo liderou o lado da RAEM na Conferência de Cooperação Shenzhen-Macau, que contou com a presença de representantes dos governos das duas regiões. Foi o segundo encontro desta natureza a ocorrer desde Novembro de 2008. As duas partes concordaram em criar um intercâmbio para mão-de-obra qualificada, partilhar informação e construir uma plataforma conjunta para prestar serviços públicos e organizar eventos.

Após a conferência, Francis Tam, secretário para a Economia e Finanças de Macau, referiu que a cooperação entre as duas partes estava a melhorar, sobretudo nas áreas da economia, comércio e cultura. “A cooperação no sector financeiro e ao nível do turismo está a desenvolver-se bem, à semelhança do que acontece nas áreas da educação e da segurança de produtos alimentares”, frisou.

Em Junho de 2009, responsáveis do turismo de Macau e Shenzhen concordaram em fazer acções de promoção conjunta em Taiwan, na Coreia do Sul e no Japão, bem como noutras cidades da China. A ideia é atrair mais visitantes às duas regiões.