Chī fàn le ma? Já comeste?

Três pessoas, três visões da língua chinesa. Todos se relacionam de alguma forma com ela e, apesar de algumas interpretações diferentes, no essencial os três estão de acordo: aprendê-la não é nenhum bicho-papão

 

 

Texto Mariana Palavra

Ilustração Rodrigo de Matos

 

Liú Xuě Yíng, Rui Rocha e Miguel Bozonet. Têm todos uma relação íntima com a língua chinesa, embora em formatos diferentes. Liú Xuě Yíng está em Macau há 11 anos a ensinar mandarim. A chineses e a estrangeiros, ao ensino primário, secundário e universitário. Recentemente, colocou-se também do outro lado das aulas: tornou-se estudante de língua francesa, convencida que seria tarefa fácil, tendo em conta já ser fluente em inglês. Nada disso. “Os sons ‘r’ são difíceis para mim. Eu coloco o meu melhor sotaque inglês mas não tem nada a ver. E depois há os números. Em chinês é mais fácil, só precisamos de saber de 1 a 10 para contar todos os números. Em francês, temos que fazer cálculos.” Ou seja, quatro vintes (quatre-vingts) é igual ao número 80.

Miguel Bozonet não conta da mesma maneira. O advogado português reside há quatro anos em Macau e aprende mandarim há menos de três. Pelo meio, já esteve em Pequim durante 40 dias num curso intensivo de língua chinesa. Actualmente, tem cerca de 15 horas semanais de mandarim. “A China tem diferentes noções de grandeza e proporções e isso reflecte-se nos números. O país utiliza um sistema numérico diferente, no qual as unidades superiores são uma justaposição das unidades menores. E depois é preciso saber ler os números em caracteres, não basta conhecer de 1 a 10. E saber que nos cálculos, por exemplo, numa divisão o divisor aparece em primeiro lugar, antes do dividendo. Mas, uma vez entendida a lógica, é simples.”

É uma questão de lógicas. A europeia ou, neste caso, a do latim e a chinesa. Todas diferentes, (por vezes) todas iguais.

Rui Rocha, director do Instituto Português do Oriente (IPOR), gosta de desmistificar as barreiras linguísticas. “Quando nos identificamos com o nosso grupo de referência, com uma língua, há sempre um choque que é maior quanto maior for a distância entre a nossa cultura e a outra. Nós estamos formatados filogeneticamente para rejeitar o diferente.” No entanto, essa diferença pode ser apenas formal. “Há roupagens diferentes, mas em termos de estruturas emocionais, nós temos as mesmas emoções, os mesmos sentidos. A nossa estrutura bioquímica, a base emocional é toda igual. A gente ri e chora, gosta e detesta, mata e salva.”

 

Os incontornáveis quatro tons

As emoções podem ser comuns, mas os tons nem sempre são. Tornam-se, por isso, numa das primeiras dificuldades para quem aprende chinês. “No início da aprendizagem, o mais difícil para os meus alunos estrangeiros é o facto da língua chinesa ser tonal [quatro tons em mandarim, nove em cantonense]”, explica a professora Liú Xuě Yíng. Miguel Bozonet, porém, fez o percurso inverso. Primeiro a escrita chinesa, só depois a oralidade. “Dediquei-me à leitura e à escrita e falar… quase nada. Quando cheguei a Pequim, no primeiro dia de aulas estive nove horas a aprender e a repetir os quatro tons. Pensei: ‘vou-me embora, não vou conseguir ficar os 40 dias’”. Mas ficou.

A professora nascida na China Interior reconhece que não é motivante, mas as primeiras semanas da aprendizagem do mandarim têm que passar por cantarolar os quatro tons, vezes sem conta, sem parar. “ā-á-ǎ-à, ē-é-ě-è. Sons por vezes sem sentido, repetidos durante as primeiras duas ou três semanas de aulas. Eu sei que os alunos querem logo aprender a falar algo, mas não pode ser.” De facto, se o tom não for o correcto, a (falta de) compreensão é que paga. “Por exemplo, shàng chuán significa ir para o barco e shàng chuáng quer dizer ir para a cama. Podemos propor a um colega discutir um determinado assunto no barco a caminho de Hong Kong, mas se nos enganamos no tom arriscamo-nos a ser muito mal interpretados.”

Os riscos multiplicam-se, tanto como os tons. Pedir um “dumpling” (shuǐ jiǎo) a uma empregada de mesa pode ser inofensivo, mas o caso pode mudar (muito) de figura se a lição não foi bem aprendida – shuì jiào significa dormir.

Miguel Bozonet, à custa de tantas horas de tons, já vai entendendo a diferença de vários sons que, ao primeiro ouvido, parecem iguais. “O exemplo do ma foi dos primeiros que aprendi. Consoante o tom, pode significar maldição/amaldiçoar, cavalo, mãe, ser uma partícula interrogativa etc.”

Nada que o empenhamento não cure, como assegura Rui Rocha. “A dificuldade em aprender uma língua tonal é uma falsa questão. Conseguimos aprender várias línguas que, mesmo não sendo tonais, têm pronúncias totalmente diferentes. Acho que também tem a ver com uma questão de necessidade. Muitos imigrantes que trabalham na China, em situação mais vulnerável e com menores oportunidades de emprego, provavelmente vão aprender rapidamente a língua. Porque precisam para ‘sobreviver’.”

 

好 (bom) = mãe+filho

O caso muda de figura quando estão igualmente em causa os caracteres, ou seja, a aprendizagem da escrita chinesa. Apesar de já saber cerca de 3000 caracteres, Miguel Bozonet reconhece que facilmente eles podem cair no esquecimento. “Além das aulas, estudo os caracteres a cada dois dias. Como estou a aprender os caracteres simplificados, utilizados na China Interior, compro e leio os jornais de Zhuhai, onde me desloco três fins-de-semana por mês para praticar a língua.” O advogado reserva ainda os domingos, todos sem excepção, para a escrita. “Passo o dia a escrever caracteres, a tentar escrever textos.”

Rui Rocha, mais uma vez, desdramatiza. “Naturalmente, para compreender cultura chinesa é importante conhecer não só a língua falada mas também a escrita, mais complicada de aprender. Mas, mais do que escrever, é preciso ler. E a memória visual necessária para ler é menos complexa do que a memória para escrever, que se apaga mais facilmente.” Em jeito de motivação, o director do IPOR lembra os italianos Matteo Ricci e Michele Ruggieri, responsáveis pelo primeiro dicionário português-chinês no século XVI, e o missionário João Rodrigues que produziu no século XVII a primeira gramática japonesa.

Os caracteres chineses são os meninos-dos-olhos de Liú Xuě Yíng. A área de especialização da professora foi precisamente a escrita tradicional, utilizada em Macau, Hong Kong e Taiwan. Na China Interior, o tradicional foi substituído pelo simplificado a partir de meados da década de 50 do século XX. “Apesar dos caracteres tradicionais serem mais complexos, ou mais trabalhosos de escrever do que os simplificados, são mais fáceis de decorar. Cada um é normalmente composto por uma parte de significado, outra parte representa o som. Aos alunos estrangeiros eu peço para decorarem pelo menos a parte do significado, assim, podem não saber ler a palavra mas sabem o que quer dizer. Aos chineses que falam cantonense e sabem escrever, portanto já reconhecem o carácter e respectivo significado em cantonense, eu peço para decorarem o som, a pronúncia correcta em mandarim.” A professora, num minuto, tenta provar a simplicidade da escrita. O argumento parece (quase) imbatível: muitos caracteres são ideográficos, isto é, representam ideias. Assim, o carácter de pessoa (人) é a representação simples de uma pessoa a andar. Se nessa mesma “pessoa” forem acrescentados dois abraços abertos (大), escreve-se a palavra grande. Bom (好) é a junção do carácter de mulher (女) e criança (子). Ou seja, mãe e filho é igual a bom. Neste caso, algo lógico para todas as culturas, todas diferentes, todas iguais. São as tais emoções a que se referia Rui Rocha. O director do IPOR, no entanto, lembra que os caracteres exclusivamente ideográficos são apenas 18%, os restantes são compostos (uma parte representa o som, a outra o sentido).

 

Chī fàn le ma? Já comeste?

Depois de se aprender as palavras, faladas e escritas, é altura de se começar a aprender, de facto, a língua e cultura chinesas. “Só depois de se conhecer a cultura, se começa a entender o que verdadeiramente dizem os chineses, como o humor”, esclarece a lǎo shī (professora). “Para avaliar o nível de chinês, o teste passa por ver filmes em mandarim produzidos no continente. Quando se consegue compreender as piadas do filme e eventualmente rir, então o nível linguístico e cultural está bom.” E recomenda-se.

Miguel já vê filmes, mas ainda não compreende tudo. Quando lê jornais, ouve a rádio e a televisão e assiste a filmes “fico-me pelos 50%, mais ou menos. Compro filmes em mandarim, coloco as legendas em chinês e aí vou eu. Claro que demoro sempre mais tempo do que os outros a ver um filme, pois quando não entendo volto para trás para rever a cena. Acho que já entendo o que esteve na origem da expressão portuguesa ‘paciência de chinês’”, brinca.

Mas antes do teste cinematográfico, há algumas expressões idiomáticas e referências culturais que fazem parte do nível de iniciação. Se um chinês o encontrar na rua e lhe perguntar se já comeu (Chī fàn le ma?), isso não tem, necessariamente, uma conotação gastronómica. O interlocutor quer apenas saber se está tudo bem. ‘Onde é que vais?’ pode ser outro desbloqueador (ou arranque) de conversa, como explica a professora Liú Xuě Yíng. “Nós não queremos saber onde é que o outro vai. É apenas uma forma de dizer olá, de cumprimentar, de começar uma conversa. Na Europa, há o costume de falar ou perguntar pelo tempo. É uma forma de abordagem diferente.” Por isso, se um chinês se despedir com um ‘na próxima vez venha a minha casa e tomamos um chá’, não leve a frase à letra. Certifique-se primeiro.

Nas aulas de francês, a professora de mandarim também tem que lidar com estas expressões – e questões – culturais que nem sempre vêm nos manuais. “Para escrever cartas informais, os chineses utilizam expressões como ‘Tudo de bom com a sua saúde’ ou ‘Tenha uma boa vida’. Em francês, aprendi múltiplas formas de me despedir com a palavra beijo. ‘Beijo’, ‘Dou-te um beijo’, ‘Muitos beijos’. Tens que aprender tudo, beijo, beijo, beijo. Em chinês não há tantos beijos”, explica entre risos.

Fora de brincadeiras, a professora assegura que o chinês é fácil de aprender, nomeadamente para falantes de línguas estrangeiras com estruturas gramaticais mais complexas. “Na verdade, o sistema gramatical da língua inglesa foi copiado e adaptado à língua chinesa. Algo que facilita a aprendizagem do chinês a estrangeiros do Ocidente, por exemplo. Porém, temos outras formas de escrever”, esclarece. Escrever sem verbo ou sem objecto ou sem sujeito. Como um conhecido poema que é composto por apenas três substantivos. Nada mais. Qualquer coisa como ‘ponte, água, casas’. “E os chineses compreendem todo o significado. É como um quadro. Há um outro poema famoso, com apenas 20 caracteres, quatro frases, uma sem verbo, outra sem sujeito, etc. É poesia. Fala da noite, do Inverno, da sensação de lar.” Mas esse é outro nível, mais avançado.

De qualquer forma, Rui Rocha lembra que, mesmo para quem (só) dá os primeiros passos numa língua estrangeira, há sempre um enriquecimento. “Aprende-se uma cultura e, quanto maior o choque cultural, maior valor se dá também à nossa própria cultura. É um enriquecimento. E a riqueza humana é a nossa grande diversidade cultural.” Como acrescenta Miguel Bozonet, “há sempre uma recompensa cada vez que tentamos comunicar numa outra língua. Por exemplo, os chineses adoram ver um estrangeiro a tentar falar a sua língua, mesmo que fale com dificuldades. Eu sinto que tenho apenas 10 ou 11 anos de idade quando falo mandarim. Um dia, espero passar da pré-adolescência”.

Foi precisamente a capacidade das pessoas aprenderem línguas e sistemas de escritas diferentes que esteve na origem do livro do director do IPOR, “Ásia, o Império das Escritas”, publicado em Setembro de 2010. “Conheci em Ladakh, nos Himalaias indianos, uma mulher que falava quatro línguas de famílias diferentes e escrevia quatro sistemas de escrita diferentes. Foi a partir daí que comecei a coleccionar livros de instrução primária de países asiáticos”, conta Rui Rocha.

Para concluir, talvez seja adequado utilizar uma expressão em chinês usada nas cartas informais: “Espero que a vida lhe corra bem”. E já agora, que a aprendizagem da língua chinesa também.