Mia, o homem e o outro

Houve um tempo em que eu achava que Mia Couto escrevia porque ouvia vozes. Que era Deus, qualquer Deus, todos os deuses, que lhe segredavam ao ouvido. Nenhum homem nascido de uma mulher poderia pensar aquelas frases, quanto mais escrevê-las. Ia nervosa. Mas não foi o escritor que entrevistei. Foi Mia, o homem

 

 

Texto Marta Curto, em Moçambique

 

O escritor não sabe ser entrevistado, não conhece os porquês, não justifica palavras. O escritor não fala, porque, se o fizer, eles vão embora. Aqueles que lhe vão bater à porta à noite, aqueles que lhe incomodam o dia, que lhe turvam as noites. Os personagens. “Acho que muita gente não escreve porque fala”, diz ele. E por isso, Mia não fala. Só escreve. Todos os dias, à noite. Até às duas da manhã. E, nessas alturas, não é o homem que eu entrevistei. Nessas alturas, é o outro. “A pessoa que escreve os livros não sou eu. Eu entro num estado de quase transe. E, quando regresso, já não sou eu que escrevi.” São dois, três anos da mesma embriaguez, e depois fecha o livro, termina, entrega ao editor.

Tem então de “desocupar a alma de personagens que viveram naquela história”. Mesmo o homem, quando sóbrio, ali, sentado no seu escritório de cientista, fala como o escritor, como se, num buraco do corpo guardasse aquela poesia, aquela maneira única de falar. “Desocupar a alma das personagens.” As palavras saem-lhe naturalmente, como se, naturalmente, todos assim falassem.

E, no entanto, ele admira-se com a admiração dos outros. Acha-se só um contador de histórias. “Penso que toda a gente cria histórias. Não me levo muito a sério. Acho que isto dos livros é tão sério como contar uma história a uma criança que vai dormir.”

É mais do que humildade que se encontra no homem que ganhou mais de dez prémios literários e cujos livros estão traduzidos em mais de 25 línguas. É quase resignação por habitar o corpo onde o outro também habita. O outro, o escritor, é seguro, não tem medo de ser lido ou de inventar palavras, com a confiança de não se importar de ser amado ou não. Mia Couto não é esse. Mia Couto é o homem caseiro, de família, que precisa de ser gostado, que não gosta de entrevistas. “Sinto que estou a falar para ninguém. Tenho de pensar que estou a ter uma conversa e não a dar uma entrevista. Já pensei em não aparecer mais. Mas não consigo dizer que não.”

 

Não sei fazer de outra maneira

O método é simples. Quase como se não existisse, com a salvaguarda de ser sempre o mesmo. A história começa de algo que lhe toca. Não só lhe toca uma vez. Mas muitas vezes, demasiadas. Tomemos como exemplo o livro que está neste momento a terminar. Baseia-se em cinco meses da história da Impacto, a empresa de monitoria ambiental que co-fundou. Há dois anos, a Impacto tinha um trabalho na província de Cabo Delgado, no Norte de Moçambique. “Mandávamos jovens para lá para verificarem as recomendações ambientais. Em cinco meses, morreram 27 pessoas na boca de um grupo de leões.”

Por vezes, Mia estava lá. Por vezes, ouvia a notícia em Maputo, pelo telefone. A maldição terminou quando se contrataram caçadores para tratarem da fome dos leões. Até lá, foram mortos habitantes das aldeias e jovens contratados pela Impacto. As notícias chegavam-lhe a conta-gotas, aumentando o desespero e o sentimento de impotência. “Esta história ocupou-me tanto que eu senti que tinha necessidade de me ocupar dela. Queria fugir ao estereótipo e tive de construir a história, a partir de um confronto. Assim, há dois narradores: uma mulher que vive numa das aldeias, e um escritor que vive em Maputo.”

Os livros, todos eles, começam assim, como uma catarse, uma necessidade, como se de água para a sede, de deixar sair os fantasmas. “É uma negociação entre duas loucuras.”

Começam assim e vão andando sozinhos. Ganham vida durante dois anos e escolhem os seus caminhos, sentimentos, derrotas e vitórias. Mia Couto nunca sabe para onde vai, nem onde terminará a viagem. Limita-se a deixá-los viver. “Nunca sei para onde vai o livro. Encontro o fim quando sei como o livro começa. Faço os dois ao mesmo tempo, o início e o fim. A minha ausência de método dá-me o dobro do trabalho, mas não sei fazer de outra maneira.”

Embora admita que tem má memória – “quando vou a escolas e os alunos fazem-me perguntas sobre personagens de livros que estão a estudar na aula, acontece muitas vezes já não me lembrar deles” -, há dois que não esquece. São os seus preferidos. “Gosto muito da Rosa Caramela, do conto Rosa Caramela. E também gosto do menino da história do Embondeiro que Sonhava Pássaros. São os personagens que mais têm a ver comigo.” Por outro lado, a história que mais o marcou foi a que mais o fez sofrer: a Terra Sonâmbula. “Em Terra Sonâmbula, eu acordava com os personagens a bater a porta. Tive muitos amigos que morreram na guerra.” Sorri ao falar sobre O Fio das Missangas, como se recordasse um filho. “Esse foi um parto sem dor. Foram histórias que exploraram muito o meu lado feminino. Eu era mulher nestas histórias e fluiu como se fosse água.”

Mia gosta de personagens que estão à margem do mundo, que interrogam o mundo, que questionam a realidade. Diz que “a realidade é a pior das prisões”. E, no entanto, é nessa realidade que apanha os homens, mulheres, crianças, templos e deuses que lhe habitam os livros. Em todas as realidades que encontra, nas conversas de café, nas vidas dos colegas de trabalho. Ali está a sua matéria-prima. “Há uma parte de mim que está sempre a captar histórias, não mereço a confiança dos meus colegas”, admite, sorrindo.

 

Mia escritor

“Eu não inventaria palavras se não vivesse aqui, onde existe esta liberdade de reinventar outra língua. É como se fossemos bilingues.”  Em Moçambique, “desconseguir” quer dizer não conseguir fazer algo. O “ainda” é utilizado sem o “não” à frente, já que o “sim” nunca seria usado mesmo. “Lá” quer dizer lá ao longe, e quanto mais for enfatizado o “á”, mais longe é. Em Moçambique, “parabeniza-se”, como se estivéssemos no Brasil. O “lhe” e o “lo” (“vou buscar-lhe um prato” passa a “vou buscá-lo um prato”) são tão constantemente trocados que uma nova gramática se formou. E as pessoas, amiúde, tornam-se verbos: “Sou descontado no banco todos os meses.” Não é só a língua que muda, nem a gramática que se troca, ou as palavras que se inventam. É uma nova forma de ver o mundo e, sobretudo, de pensar o homem no mundo.

“Se usarmos a língua como um brinquedo, seremos crianças a vida inteira. A língua não é uma coisa para ser usada. Tem de ser tratada como um namoro”, diz Mia. No Brasil, pela primeira vez, o escritor ouviu criticar o estudo dos seus livros nas salas do ensino primário. Argumentava-se que, ali, se ensinava mau português. Mas, para ele, não se pode confundir o ensino da língua com o ensino da literatura. E os seus livros poucas ambições têm de servir para o ensino da língua portuguesa.

“Acho que os meus livros estão traduzidos em 26 ou 27 línguas”, diz, naturalmente, como se nada fosse. De facto, Mia Couto não quer, nem tenta que os seus livros sejam uma referência e muito menos uma que mostre o que é África. “Acredito que um leitor japonês reencontra naquelas histórias a sua África, não a minha. Nenhuma das minhas história quer dizer ´Isto é África´. Falam sobretudo de pessoas.”

Dos inúmeros prémios, Mia Couto também não fala como seria de esperar. “Se os prémios tiverem uma história, sim, são importantes para mim, tocam-me. Mas tenho uma relação um pouco cínica com este assunto.” Se lhe pergunto se não se sente orgulhoso ao receber um prémio, quase se indigna como se a pergunta fosse totalmente descabida. “Não sinto que haja isso do melhor escritor, acho que não se podem fazer comparações. Faz-me muita impressão aqueles escritores que falam sobre si e sobre a sua obra.”

 

Mia homem

“Se tivesse de dizer uma coisa só, diria que sou moçambicano, mas tenho origem portuguesa.” Os seus pais chegaram a Moçambique por razões políticas aos 20 anos e aqui tiveram os filhos. Depois do 25 de Abril, os pais de Mia foram quatro vezes definitivamente para Portugal. E voltaram sempre. “Para mim, Portugal era uma espécie de ficção. Neste momento, é como um amigo que eu penso que conheci, mas que nunca conheci de facto. Na verdade, não me sinto nem português nem moçambicano. Ninguém é só de um tempo ou de um sítio. Pertencer a um lugar, essa necessidade de catalogação espacial, como se de uma identidade se tratasse, é uma noção muito europeia.”

A maior parte do dia do Mia homem é passada na Impacto, uma empresa que admira – e admira-se – por ter sobrevivido e crescido ao longo de 20 anos, quando foi feita por gente que não sabia como fazer uma empresa, mas que partilhava um sonho e uma vontade. “Esta empresa não é uma associação ambientalista, nós fazemos relatórios imparciais”.

No horário do expediente, como qualquer ser humano que tem de ganhar a vida, ali o encontramos. E Mia não quereria que fosse de outra forma. Ser um escritor a tempo inteiro é algo que não o atrai minimamente. “É mesmo uma opção. Gosto de me repartir porque é um investimento emocional que eu faço. Eu faço coisas, não sou. Não quero ser um escritor. Sentir-me-ia pobre se só fizesse uma coisa.”

Para a ciência, traz a bagagem de contador de histórias e vê a natureza como um todo no seu contexto. “Acho que o meio ambiente precisa mais de ser entendido do que defendido. Um cientista olha com aquele ar arrogante para uma árvore e acha que a entende porque sabe o seu nome em latim. Mas a árvore nem conhece essa língua. A literatura dá-me o contexto todo de uma árvore, que, aqui, é quase um templo.”

Nos seus tempos livres – entenda-se por isto quando não está na Impacto nem a escrever – o seu maior prazer é conversar. “São outras formas de reencontrar o mundo, uma casa mais minha.” Acredita que, por isso, deva ser um pai e marido pesado, porque lá em casa eles querem sair e Mia quer ficar e falar.

“Também tenho uma enorme necessidade de estar sozinho, mas preciso de não perceber que estou sozinho, tenho de ter sempre o que fazer.” Uma das suas actividades predilectas é a jardinagem, de que nunca pensou gostar. “Mas sinto-me um pequeno Deus. Tenho uma pequena colecção de palmeiras e viajo sempre com uma tesourinha de poda, para roubar árvores que depois carrego nos bolsos.”

O Mia Couto escritor todos conhecem. O homem é muito mais igual a nós do que poderíamos pensar. É doce, questionador, curioso, interessado, fala pausadamente, quase baixinho. E, no fim da entrevista, procura na prateleira cheia algo que não encontraríamos por aí, algo raro. Ninguém lho pede. Mas ele quer dar, como que a agradecer a conversa, não uma entrevista.