Um marco incontornável na história

Sun Yat-Sen viu em Macau a terra “livre” ao sul da China para dar início à propaganda política. Pela via cultural, delineou estratégias para recrutar novos membros, deixando o nome do território na história da revolução que alterou os destinos do País

 

 

Texto Lia Coelho

 

Macau serviu a Revolução de Xinhai pela via intelectual e foi usada como palco de propaganda contra a dinastia Qing e o próprio regime colonial português. No final deste capítulo, o território foi o refúgio de alguns dos políticos, que mudaram o destino político da China. Para compreender o papel desempenhado por Macau na revolução nacionalista chinesa de 1911, é necessário recuar no tempo e contextualizar a região a nível político. Governado por Portugal, o território gozava de um regime mais liberal, longe da repressão que imperava no Interior da China e até mesmo em Hong Kong. A união entre o Oriente e o Ocidente, mais visível com a assinatura do Tratado de Amizade e Comércio Sino-Português, em 1887, fez com que a península se tornasse base ideal para actividades políticas e revolucionárias.

Segundo Vincent Ho Wai-kit, professor assistente de História na Universidade de Macau, a situação ficou clara com a formação da Aliança Revolucionária da China, em 1905, em Tóquio, por mais de 800 estudantes e outros líderes revolucionários do Interior da China. Sun Yat-Sen decidiu expandir a organização revolucionária para Sul, criando ramificações em Cantão, Hong Kong e Macau. O médico deixou a cargo de Feng Ziyou e Li Zichong o recrutamento de novos membros para o agrupamento e fez de Hong Kong a base das actividades das três cidades do Delta do Rio das Pérolas. “Sun teve um papel crucial no início da revolução em Macau. Viu em Hong Kong, Cantão e Macau, regiões importantes para a luta política”, explica Vincent Ho Wai-kit.

Um ano mais tarde Feng Ziyou destacou três revolucionários – Ruan Yizhou, Liu Sifu e Liu Yuehang – para o território, de forma a que se desse início aos primeiros movimentos revolucionários, usando instituições culturais como abrigos da propaganda política. A estratégia foi delineada – usar a cultura para espalhar os ideais de um novo modelo de governação -, mas não houve grande sucesso na sua implementação. “Durante anos os investigadores ignoraram o papel do território, focando-se apenas em Cantão e Hong Kong. Pode ser uma das explicações pelas quais as actividades em Macau falharam: por serem encobertas e por falta de registo histórico”, aponta Vincent Ho, que se tem dedicado a aprofundar o tema da influência de Macau na revolução.

O primeiro passo para colocar Macau na rota da revolução foi a criação de uma biblioteca com o nome de Lequn Shu Shi. A designação evocava abertamente o objectivo: “grupo de leitura harmonioso”, ou seja, educar a massa para mudar mentalidades e recrutar novos membros. “No entanto, passados alguns meses, os revolucionários chegaram à conclusão que não estavam a ter sucesso e que ninguém se juntava à causa”, contou o professor. Uma das razões poderá ter sido o facto de naquela altura a maioria da população ser iletrada. “Se não se sabia ler, uma biblioteca não fazia sentido.”

Uma nova abordagem teve que ser adoptada. Os revolucionários organizaram então um agrupamento de teatro tradicional chinês, sob o nome de “Associação do Melhor Paraíso”. Fundada por um grupo de jornalistas, os ideais de um novo regime serviam de argumento para dramatizações, interpretadas não por actores, mas por revolucionários. Meses depois, a tentativa mostrou-se infrutífera. “As pessoas gostavam de ir ver as peças de teatro, mas o principal objectivo não estava a ser atingido – ninguém era recrutado.”

Mais um falhanço, mais uma nova ideia. Desta feita, avançou-se para a criação de  uma escola primária em Macau dirigida apenas por revolucionários, sob o nome “Cultivating Fundamental Two-Level Primary School”. A linha orientadora era a insurreição armada dos militares revolucionários através da educação das massas desde tenra idade. “O Governo português era liberal e permitia que qualquer um estabelecesse uma escola.” Vincent sublinha ainda que, naquela altura, os chineses defensores do imperialismo regiam e dominavam os estabelecimentos de ensino e a própria educação, pelo que o novo sistema com o selo de Sun mostrava-se algo completamente inovador. De forma estruturada, os revolucionários organizaram alguns estudantes mais velhos que se reviam na ideologia, para mais facilmente influenciar a camada mais nova. “Foi uma escola relativamente grande, com mais de 100 alunos”, esclarece o professor universitário.

O último parágrafo que narra esta história foi uma tentativa de estabelecer outra biblioteca, situada na zona central de Macau. A propaganda política continuava a ser feita de forma aberta, inclusivamente “no Boletim Oficial constavam os nomes verdadeiros dos proprietários, que eram revolucionários”. “O Governo português teve sempre uma posição de inércia perante esta situação. Era amigo da China e, nesse sentido, não apoiava os revolucionários, mas também nada fazia para os impedir. Era mais fácil não falar.”

Em 1908, sob a liderança de Huang Luyi, os revolucionários voltam a criar um teatro. Atraíram a massa, convidaram o Governador para a abertura do espaço e fizeram um discurso manifestamente revolucionário. “De certa forma, as estratégias influenciaram alguns dos jovens da comunidade chinesa, especialmente alunos da escola primária e jovens chinesas.”

Como em qualquer relato histórico, existiu aqui também uma história de amor. As raparigas juntaram-se ao exército militar para lutar em Cantão por estarem rendidas aos encantos dos jovens revolucionários. “É preciso enfatizar as raparigas, que deram um contributo e apoiaram grande parte da revolução. Elas juntaram-se às tropas e seguiram com os homens para combater em Cantão, em 1911.”

Em Macau nada mudou após a revolução devido ao facto de estar sob a governação portuguesa. Contudo, a região teve ainda um papel importante depois da queda dos manchus. “Havia instabilidade política na China e como Macau era uma terra segura serviu de abrigo a dissidentes políticos”, acrescenta Vincent Ho. “Esta é a ligação de Macau com a revolução de 1911. É importante dizer que o território não deixou de ter um papel limitado.”