Uma fronteira plural e global

O director do Centro Científico e Cultural de Macau em Lisboa, Luís Filipe Barreto, defende a criação de centros de macaulogia e sinologia nos países lusófonos, como forma de criar uma visão portuguesa oficial sobre a RAEM e a China. Uma nova geração de sinólogos está a caminho

 

 

Texto Patrícia Lemos

Fotos Paulo Cordeiro, em Lisboa

 

Macau pertence à China, mas a região dourada do Sudeste Asiático não caiu no esquecimento em Lisboa. O trabalho que tem sido feito no Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) é prova disso e os resultados estão à vista e com repercussões internacionais: uma média de dez livros publicados por ano e o museu e biblioteca mais do que duplicaram as presenças desde 2006, altura em que Luís Filipe Barreto assumiu a direcção do centro. O historiador acredita que “o mundo lusófono precisa de ter um ou dois grandes centros de macaulogia e sinologia”. “É importante que haja um ponto de vista português oficial sobre Macau e a China e isso deve ser feito conjuntamente, porque precisamos da articulação com o ponto de vista chinês.”

Criado nos passos da transferência da administração de Macau para a China, o CCCM tem cumprido a sua missão assente sobretudo na investigação das relações culturais Portugal-China e Europa-Ásia Oriental, bem como no estudo de Macau. A ideia é lançar sementes para uma futura geração de sinólogos portugueses. E foi isso mesmo que levou o director do CCCM, Luís Filipe Barreto, a Macau, em Maio, onde o centro organizou, em conjunto com o Instituto Politécnico de Macau (IPM), o I Encontro sobre a História da Tradução em Macau.

Antes de partir para a RAEM, Barreto explicou que este colóquio se justifica porque Macau é de facto “uma das capitais multilinguísticas da globalização desde o século XVI e XVII”. Ideia que ilustra com um exemplo: “Em 1580/1590 havia ensino regular de língua portuguesa, latim, chinês e japonês. Há publicações, manuscritos escritos em quase todas as línguas, como latim, português, espanhol, italiano, inglês, alemão, holandês…”

O director sublinha que Macau é mais do que um ponto de convergência de pessoas de várias culturas: “É também um espaço de desenvolvimento teórico de conhecimento”. A dimensão multilinguística demarca a região do todo da China e do resto da Ásia Oriental. Conforme explica, “Macau parece um micro-espaço, um ponto no mapa, mas a verdade é que é uma macro-rede, sendo a importância dos portugueses e da sua língua muito grande”.

Já no regresso a Lisboa, Barreto confessou que o encontro organizado com o IPM “foi um significativo contributo para o conhecimento e a afirmação da identidade linguística múltipla de Macau desde o século XVI até aos nossos dias”. Explicou ainda que ficou “agendado um segundo encontro, a decorrer em 2012 em Lisboa ou em Macau, destinado a aprofundar e alargar os resultados já alcançados”.

 

Laços com a Fundação Macau

Na sua “breve passagem” por Macau, que durou cerca de duas semanas, “deu para sentir uma cidade cheia de vida, com uma crescente arquitectura contemporânea de alta qualidade e um turismo cada vez mais intenso, que concilia a visita ao Centro Histórico e ao Templo de A-ma com hotéis/casinos”. O responsável notou mesmo que “a presença da restante China, da Ásia, do Índico e de Singapura é cada vez maior”, considerando que essa não afectou a dimensão internacional ocidental da região. Muito pelo contrário. “Macau continua a ser uma fronteira plural e global”.

Durante a estadia, Barreto fez novos contactos, nomeadamente com a Fundação Macau. “Vamos celebrar brevemente um protocolo de cooperação que envolverá também outras instituições científicas e culturais de Macau”. Este acordo “visa reforçar o conhecimento científico acerca da RAEM, no passado e no presente, e a divulgação cultural internacional de Macau”.

Conforme explica o responsável do CCCM, o centro é hoje por excelência um lugar de cooperação com a China e isso implica parcerias com a RAEM. Aliás, “o CCCM tem publicado imensas edições sobre Macau desde 2007, pelo que vemos com bons olhos o apoio de Macau”. Até porque “esta é a única instituição do género a fazer este trabalho ao nível académico e de divulgação”.

Em Março último, o centro lisboeta assinou um protocolo com a Universidade de Macau para criar a Cátedra Luís de Camões de língua portuguesa. “É assim importante que haja um reforço cada vez maior das relações com instituições chinesas, como os museus, universidades e ainda com as comunidades de chineses ultramarinos no mundo inteiro, como nos casos de Peru ou do México.”

O CCCM tem ainda acordos com outras instituições nacionais e internacionais, como é o caso da Fundação Ricardo Espírito Santo ou do Centro Aleni. “Estamos ligados à Ásia, tendo muito boas relações com o Japão, Hong Kong, e estamos em contacto com investigadores de Taiwan e de Singapura”, adianta.

 

Fazer muito com pouco

A rede de contactos do CCCM é fundamental e “também passa bastante pelas embaixadas”, salienta Barreto. É de notar que “o grande parceiro do centro desde 2006 é a Embaixada da República Popular da China em Portugal”. São realizadas muitas acções conjuntas, contando com a presença de ilustres, onde se inclui, por exemplo, o antigo vice-director do Gabinete para os Assuntos de Hong Kong e Macau, Chen Zuo’er. “Quando abandonou as funções em 2007, veio à Europa fazer dois discursos a esse propósito; um foi em Paris e o outro no CCCM, no dia 24 de Abril de 2007”, descreve com orgulho.

A nível internacional, a entidade alfacinha tem tido muito impacto no meio académico até pelo seu plano editorial, que contempla a edição de publicações em inglês e português, chinês, espanhol e latim, que vão dos manuais de ensino, académico e profissional a estudos científicos, passando ainda por catálogos de exposições. O espírito de cooperação com outras entidades é abrangente. Esta instituição pública portuguesa, sob a alçada do Ministério do Ensino Superior da Ciência e Tecnologia de Portugal, tem uma rede de contactos que vai da Ásia à América do Sul. A promoção das publicações passa muito por esses parceiros, com a maior parte das edições a ser vendida nos Estados Unidos, Japão, Ásia e na Europa.

A agenda do CCCM é muito preenchida, mas Barreto destaca a publicação dos livros de Isabel M. Pina acerca dos Jesuítas Chineses nos séculos XVI e XVII, das Obras de Tomás Pereira e a realização, já em Outubro, de um Colóquio Internacional Anual acerca de Fontes e Métodos para a História de Macau, altura em que “será lançado em inglês o estudo de Noel Golvers [Universidade de Lovaina], Portuguese Books and Their Readers in the Jesuit Mission of China, 16-18th centuries (em português Os Livros Portugueses na Missão da China S. XVI a XVIII)”.

Até ao final do ano e em co-edição com instituições de Macau serão ainda publicadas outras obras sobre Macau no passado e no presente.

“O CCCM tem assim procurado fazer muito com pouco”, porque o orçamento deste ano é inferior ao de 2005. Barreto também é de opinião de que “mais do que falar, é importante fazer”. E acrescenta: “É um pouco como dizia Deng Xiaoping: fazer muito, fazer bem, fazer com a máxima discrição”.

 

 

Livros e relíquias em voga

A biblioteca e o museu são a face mais visível do Centro Cultural e Científico de Macau (CCCM). Apesar da equipa desta instituição pública portuguesa contar apenas 14 pessoas e de ter cada vez menos fundos ao seu dispor, a verdade é que é cada vez mais popular. E não é para menos: há mostras cruciais como a de jades que abre em breve e iniciativas que surgem das doações, como a do arquitecto Manuel Vicente e a do general Garcia Leandro.

Só no ano passado o museu recebeu cerca de 13 mil pessoas, assegurou o director do centro, Luís Filipe Barreto, adiantando que este espaço cultural “faz parte de um certo circuito turístico”. Mas são sobretudo pessoas com interesse académico que visitam o museu, “embora os portugueses que viveram em Macau e turistas da RAEM sejam mais do que bem-vindos”.

Rodeado de palácios, o edifício do CCCM alberga o museu que cobre o rés-do-chão e todo o primeiro andar da casa senhorial da Junqueira. Está apinhado de porcelanas, mobiliário, têxteis, pinturas, moedas antigas, peças de joalharia e outras relíquias. Até a Nau do Trato aparece ali representada num espectáculo multimédia com direito a hologramas.

Algumas das peças em mostra foram doadas, como as terracotas e algumas porcelanas, pelo macaense António Sapage, enquanto outras, como parte dos cachimbos de ópio e das moedas, cresceram com os trabalhos de investigação levados a cabo pelo museu. “Não conheço uma colecção de ópio mais completa do que esta, pois inclui tudo: cachimbos, fornilhos, lamparinas. Foi uma doação, tendo muitas outras peças sido adquiridas em Macau e na China”, garante Rui Abreu Dantas, da Divisão de Museologia, Investigação e Cooperação Científica do CCCM.

Dantas sublinha ainda que a colecção de arte chinesa do museu é bastante abrangente, indo do neolítico ao século XIX e XX. São mais de 4000 peças em acervo. Uma das obras mais impressionantes é a arca-altar cristã. Mais parece um objecto de culto chinês, com a seda a destacar-se como elemento decorativo. “Era levada nas embarcações para ser celebrada a missa nos domingos e dias santos”, explicou Dantas.

Além da exposição permanente, o museu é ainda brindado com mostras temporárias. Brevemente, “inaugura uma exposição de jades de um coleccionador português e que é uma das mais significativas e ricas existentes na Europa”, revela Barreto.

 

Espólios de ilustres

Ainda que esteja localizada do outro lado da Rua da Junqueira, a biblioteca do CCCM é um dos núcleos mais importantes do centro, tendo também registado um aumento considerável de visitas. “Em 2002, eram 400 leitores e, no ano passado, tivemos 1800”, aponta o responsável. Este espaço atrai bastantes estudantes e investigadores. Inclusivamente, o CCCM oferece estágios. Na Primavera contaram com três italianos, mas “há gente do Brasil, México e Espanha a fazer aqui pós-doutoramento”, salienta Barreto.

A biblioteca está bem apetrechada e inclui várias doações. É o caso de parte do espólio documental e não só de Monsenhor Manuel Teixeira e dos materiais mais recentes de gente que se destacou em Macau pela sua obra, como Manuel Vicente e Ana Maria Amaro. Doado pelo grande arquitecto de Macau ao CCCM, “o espólio Manuel Vicente está em fase de catalogação/inventariação de modo a gerar, em 2012, uma exposição e catálogo com planos, esboços, projectos, maquetas e fotografias”, assegura Barreto.

O director do centro espera receber também a documentação do general Garcia Leandro referente ao período de Macau. Orgulha-se mesmo da confiança que este centro inspira: “Haverá cada vez mais material de pessoas com vivência de Macau que irão doar o seu legado ao centro, porque aqui têm a certeza que o seu património será preservado e investigado por profissionais de várias nacionalidades”. Aliás, essa é uma das missões do centro: “Preservar e investigar o património de Macau, sobretudo o que existe em Portugal, o património luso-chinês.”

Nas muitas prateleiras e arquivos da biblioteca encontram-se “largos milhares de volumes em várias colecções”. São livros adquiridos desde 1997, “até porque o CCCM tem uma percentagem considerável do seu orçamento para a actualização da biblioteca e esta faz-se, essencialmente, com estudos e fontes de universidades americanas e asiáticas”. A maioria das obras disponíveis está em línguas estrangeiras. “Existem ainda muitos fundos documentais de Macau em português do século XIX/XX, inclusivamente reproduções.”