A pena portuguesa

Em Macau, a literatura em língua portuguesa teve grande expressão nas últimas décadas do século passado. Mas antes da transferência muitos dos que alimentavam os cadernos de poesia ou as tertúlias do primeiro andar do restaurante Porto Interior regressaram a casa. Aos poucos que ficaram, junta-se agora uma nova geração, que dá os primeiros passos nas letras

Texto Catarina Domingues

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

De Moura a Macau pelas letras

No final dos anos 80, Fernando Sales Lopes e Fernanda Dias chegaram a Macau. Os poetas descobriram um novo mundo, tão diferente daquele que deixavam para trás. Mais de 20 anos depois, continuam a contar histórias, tal como se fazia além Tejo, em Moura, onde têm raízes.

 

Os homens seguiam para o campo e, em grupo, entoavam o cante alentejano a duas vozes. Sobre a saudade, a tristeza ou o amor. Sobre a terra. E esses versos apressavam-se sobre as planícies desertas do Baixo Alentejo, até que ao fim do dia recolhiam aos casarios e assentavam à cabeceira da noite, primeiro na companhia dos avós, depois dos filhos, por fim dos netos e bisnetos.

A tradição alentejana de contar histórias como esta acompanhou desde sempre Fernando Sales Lopes. “Faziam-se histórias à volta das histórias. A minha mãe fazia histórias à volta das histórias.”

Sales Lopes nasceu e cresceu no Barreiro, mas é filho do Alentejo, de Moura. Quando chegou à primária já lia e escrevia. Dos tempos do liceu sobrevivem poemas escritos nas páginas do livro de História, “normalmente dedicados às namoradas”. Dessa altura guarda ainda o primeiro prémio dos Jogos Florais de 66, o livro Serra Mãe de Sebastião da Gama, que “parecia que tinha sido escrito para mim”. A Serra era a Arrábida, que Sales Lopes revisitava sempre que podia.

Pelo Verão deixava para trás as azinheiras serranas e descia até à terra, onde ficava em casa dos tios, na rua das Molejas, em Moura. A mesma Moura de Fernanda Dias.

 

Escrever às escondidas

Era uma miúda igual às outras. Mas porque fazia por isso. “Naquela altura escrever poesia era uma coisa bizarra, eu não queria ser assim.” Nascida em Moura, Fernanda Dias era a mais velha de sete irmãos, a quem se habituou “a inventar contos”.

Em pequena acompanhava a madrinha nas leituras matinais do jornal O Século. Aos cinco anos a família descobriu que sabia ler. E também descobriu que não era igual às outras, não jogava às escondidas, mas escondia-se para escrever. Da padaria guardava o papel onde embrulhavam os papo-secos, cosia os pedaços, ainda maculados pela farinha, e escrevia “uma espécie de instantâneos fotográficos”.

Em adolescente publicou n’A Planície, um jornal cultural, com berço em Moura e que depressa se estendeu a todo o país pelo papel que desempenhou durante o Estado Novo. “Acolhia escritores portugueses com dificuldade em publicar nas grandes cidades por causa da censura.”

Professora de formação, Fernanda casou-se e dedicou-se à profissão. Nunca deixou de escrever. E de destruir essas memórias. “Não passava de um mero diário.”

Até que chegou a Macau, já nessa altura uma cidade de mudanças velozes. “Percebi que por mais efémera que fosse a minha escrita, era mais perene que certos tijolos, e então deixei de ter coragem para a destruir.” Corria o ano de 1986.

 

O pescador de margem

Poucos meses depois chegava Sales Lopes. Com 36 anos e um contentor abarrotado de histórias – como quando, em 1974, na Guiné, se preparava para ir dar umas braçadas entre os coqueiros das praias do Bijagós, e rebentou a revolução, em que estava envolvido.

Em Macau ocupou, entre outros,  o cargo de director de Programas dos canais portugueses da Teledifusão de Macau. Para trás ficou uma carreira nos meios de comunicação social que iniciou na Emissora Nacional, com passagem pela RDP, Rádio Comercial, entre colaborações com o Comércio do Funchal, A República ou A Luta.

A poesia por lá ficou, alinhada nos arquivos do mais antigo jornal sadino, O Setubalense, ou em folhas soltas, empalidecidas pela distância. E nesta nova cidade, tão distinta das planícies de Moura ou da Arrábida de Sebastião da Gama, iniciou uma nova caminhada. Por Lin Fá Tou “terra dos nenúfares/serena/num imenso lago verde”, com momentos de meditação “à mesa/do tratado/sem chá/nem vénias” do mosteiro de P’u Chi.

Deste primeiro olhar nasce a obra O Pescador de Margem, publicada em 1997, e distinguida pelo Instituto Português do Oriente com o Prémio Camilo Pessanha. Poemas que foram ganhando forma nas tertúlias do Clube dos Poetas, no primeiro andar do restaurante Porto Interior, e do qual faziam parte Carlos Marreiros, Hélder Fernando, Estima de Oliveira ou Fernanda Dias, entre outros.

 

Respirar Macau

Horas de Papel é a primeira obra de Fernanda Dias. A autora descreve-o como um álbum ilustrado, ainda sem personagens activas. Nestes primeiros momentos de descoberta, Fernanda procurou a literatura macaense. Luiz Gonzaga Gomes, Deolinda da Conceição ou Henrique de Senna Fernandes “ajudaram a construir uma memória”.

“Limito-me a escrever o que vejo. Sou capaz de apreciar um tecido, uma planta, um pregão. Quero que passe tudo na minha poesia e que saia com todas as imperfeições, com o mesmo ritmo da minha própria respiração.” Tão natural como a própria natureza, onde a autora encontra um amparo, seja perto do plumbago azul do Jardim Lou Lim Ieoc ou na Baía da Praia Grande, onde “As árvores do pagode/deixam cair os frutos/dos galhos trémulos/como dedos desfiando contas”.

Recentemente Fernanda Dias publicou O Sol, a Lua e a Via do Fio de Seda. São 64 poemas, um para cada hexagrama do Livro das Mutações Yi Jing, um clássico chinês. “É uma visão pessoal, de como se movimentavam as pessoas na Idade do Bronze; rituais guerreiros, crenças nos talismãs, as cerimónias em relação ao Deus do rio, ao Céu e à Terra.”

 

Para o futuro

A poetisa conta com dois inéditos, Contos da Água e do Vento e Shu Wang, mais uma obra de tradução de poesia. “A tradução deve-se a um encontro com o poeta e recorrendo a mais duas línguas intermediárias.” Não falando chinês, esta é uma tarefa quase impossível, admite, mas “absolutamente necessária”. “O que seria da cultura ocidental se nunca ninguém tivesse lido a Bíblia?”

Fernando Sales Lopes espera que em breve avance a formalização da anunciada  adaptação ao ecrã da Terra de Lebab, obra de ficção juvenil, que escreveu sobre as várias comunidades de Macau. Tem ainda cinco cadernos de poesia e inúmeros contos à espera de sair da gaveta. Viveria uma nova vida “fazendo o que sempre quis fazer, largando horários, burocratas, desterros não desejados”.

 

 

A nova geração

Chegaram para trabalhar num jornal, mas logo soltaram amarras, e tornaram-se profissionais freelancer, com tempo para novos projectos, como a escrita, onde dão os primeiros passos. Luciana Leitão lançou em 2009 genti di macau, um livro de contos; Hélder Beja venceu recentemente um concurso de contos com Fogo lento. Excertos de uma conversa sobre uma vida, que ainda agora começou.

 

Hélder Beja

A vida é louca e faltavam dois dias. Queria muito participar no concurso. Uma noite chego do trabalho, cansadíssimo, e começo a escrever. Ainda fui tirar uma fotografia, estava um nascer do sol maravilhoso por trás dos casinos e eu estava a escrever sobre aquilo. De que fala o conto? Um homem vive sozinho em Macau. A única relação, ténue, que mantém é com uma mulher que revela as fotografias que ele tira de raparigas num momento particular e com uma série de detalhes que fazem daquilo uma fixação. Por que o faz? Quer recuperar a mulher que lhe desapareceu. Como surge a ideia? Eu queria explorar a condição feminina em Macau, que as pessoas encaram com normalidade, e escrever sobre a solidão. Apesar de Macau ser tão povoado, parece-me que é fácil as pessoas sentirem-se sós. Sente-se só? Não e às vezes tenho pena. Quando começou a escrever? Tenho um problema de memória. Se tiver de recuar lá atrás pode ter a ver com três anestesias gerais. Tive blogues; “Tu sabes bem”, gosto de jogos de palavras e este é um jogo entre “saber” e “sabor”; o “Húmus” era mais jornalístico e deu-me muito prazer fazer com um amigo. Numa fase mais poética criei o “Lábios de silêncio”, muito influenciado pelo livro “O Medo” do Al Berto, um dos poucos que me deixou aterrado. E depois o jornalismo… Muita reportagem ou crónicas, coisas muito livres que me dão liberdade e que acabam por ser um exercício de escrita interessante. Macau foi um impulso? Foi importante, era um corpo estranho na minha vida, tudo novo. E daqui para a frente? Estou cheio de vontade de escrever. Acho que quem escreve tem a responsabilidade de o fazer sobre Macau. Ideias? Quero escrever sobre a Macau contemporânea. Depois algo a puxar para a ironia, Macau precisava claramente de rir-se de si próprio e as pessoas aqui não o fazem. Um escritor português favorito? Dos contemporâneos Valter Hugo Mãe, tem um grande poder narrativo e um universo engraçado, por vezes muito rural, e eu revejo-me nisso. De onde é? Da Vila da Marmeleira, um lugar maravilhoso, fica no topo de uma elevação. Para mim é hoje um ponto de solidez na minha vida.

 

Luciana Leitão

O meu pai assinava o Círculo de Leitores e todos os meses a senhora aparecia. Um autor dessa altura? Romances do Erich Maria Remarque passados em tempos de guerra. Há um lado terrível da natureza humana. E de Macau? Henrique de Senna Fernandes, que explora muito o lado da comunidade chinesa. Um lado também abordado na sua reportagem premiada pela Fundação Oriente. Quis perceber o que pensam os chineses sobre a morte, quais os rituais. Fui com uma tradutora, senão seria difícil falar com aquele coveiro que lá está há 30 anos. Quanto ao seu livro de contos, escolha um. “Mudança”, do senhor que se perde nas ruas e que se vai deparando com o presente e passado. É um tema actual… Quando se pensa em Macau pensa-se em mudança. É inevitável. E nas várias comunidades. Macau é uma terra fascinante, sobretudo por toda essa multiplicidade cultural. Se calhar vivem de forma muito paralela, não se cruzam tanto como deveriam. Como chegou até as comunidades? Fazia reportagens sobre as comunidades. Socorri-me também de pessoas para detalhes. Sobre as tríades, por exemplo. Tenho um conto que termina com um homicídio. Falei com um amigo que viveu durante essa época. Está ligada ao género conto? É um género difícil, não tem a vantagem dos romances, em que tens 300 páginas que fazem com que te apaixones pelo personagem, que o conheças e até antecipes algumas reacções. Quando começou a escrever? Em pequena. A disciplina que mais gostava era Português. Escrevia à mão? E depois à máquina. Com 15 anos resolvi que ia escrever um livro. Lembro-me de ler partes às minhas amigas ao telefone. Era um policial. Onde vivia? Lisboa, na Portela de Sacavém, que não é um sítio muito inspirador. Um sítio para escrever em Macau? A biblioteca Ho Tung é lindíssima. Conheci há pouco tempo e pensei: Isto existe em Macau? Tem uma parte exterior com umas mesinhas no meio do verde. A escrita está associada a uma certa melancolia? Isso pode ser um complexo, até uma barreira. Há um novo livro. É para avançar? Tenho outros projectos pendurados. Se começo, apaixono-me e não consigo fazer mais nada. Sobre quê? (silêncio).