“A arte é um espelho do homem”

Dez anos depois de fechar a digressão de Sexo, Drogas e Rock and Roll em Macau, o actor português Diogo Infante volta este mês de Junho ao território, desta vez para estrear uma nova peça também adaptada dos monólogos do dramaturgo norte-americano Eric Bogosian

 

 

Texto Filipa Queiroz

Fotos Paulo Cordeiro

 

O público de Macau vai ser o primeiro a assistir a Preocupo-me, logo existo!, o novo espectáculo de Diogo Infante. O actor português, que nos últimos anos se desdobrou em mil e um projectos e (en)cargos, resolveu voltar a levar à cena um espectáculo do actor, dramaturgo e novelista norte-americano Eric Bogosian. Depois do tremendo êxito Sexo, Drogas e Rock and Roll há uma década, Infante admite que foi levado pelo ímpeto crítico provocado pelo contexto socioeconómico e político dos tempos que correm. “Deixou tanta saudade, foi preponderante na altura, e coincidentemente terminou em Macau. Estreou em Lisboa em 2000, fez duas digressões, esteve quase dois anos em cena. Volvidos dez anos tive vontade de me reencontrar com o Bogosian numa altura que me pareceu apropriada, e surgiu esta oportunidade de começarmos ao contrário, estreando o espectáculo aí”, conta o actor à MACAU.

Preocupo-me, logo existo! chega no dia 25 de Junho através da Casa de Portugal, em local ainda por definir ao dia de fecho desta edição. Adaptado do original Pounding Nails in the Floor with My Forehead, Diogo Infante interpreta neste novo one man show uma série de textos distribuídos por várias personagens. “Todas elas são um bocadinho marginais de uma sociedade contemporânea, onde o tom é necessariamente de um humor muito corrosivo e sarcástico, em que Bogosian, ao seu jeito habitual, faz uma crítica aos bons valores, ao modus vivendi das sociedades urbanas e contemporâneas de hoje em dia”, explica Infante.

 

O palco e a crise

Eric Bogosian é autor de peças de teatro de grande sucesso como Talk Radio, nomeado ao Prémio Pulitzer e levada ao grande ecrã por Oliver Stone no filme homónimo de 1988. Os solos que encheram plateias durante anos em palcos dos Estados Unidos e da Europa renderam-lhe três Prémios Obie de teatro e edificaram a imagem do autor de origem arménia conhecido pelo humor afiado a que nenhum norte-americano ficava indiferente na década de 1980 e 1990.

Com a ajuda da encenadora Natália Luísa, Diogo Infante pegou nos textos e reconstruiu-os a partir de improvisações e conceitos criados de forma a potenciá-los e torná-los identificáveis ao público de hoje. “A ideia é que através da sua voz consigamos reconhecer um discurso e uma capacidade de nos comover, entreter. É sempre um discurso muito reactivo, activo, muito com o objectivo de mudar o mundo”, explica Infante.

Bogosian aborda temas que vão “desde a religião à extrema direita” e brinca com uma série de estereótipos. Infante agarrou na tradução e contextualizou os textos nos tempos em que vivemos. Ou seja, “onde há uma forte componente financeira, onde a crise já é um lugar comum. Portanto é esta mobilização que ele faz à necessidade de reagirmos seja pela via espiritual, da reflexão, seja pela reacção política, é uma série de propostas que me parecem muito interessantes”, avança o actor. “É sobretudo um divertimento e um desafio a uma certa reacção apática aos momentos complicados que atravessamos.”

Momentos complicados que inclusive ditaram a retirada de Diogo Infante da direcção artística do Teatro Nacional D. Maria II (e antes do Teatro Maria de Matos), mas que são também incontornavelmente inspiradores. Além do teatro, o actor acaba de terminar um telefilme da Rádio e Televisão de Portugal (RTP), Há sempre um amanhã. Fez de Paulo Lima, engenheiro responsável por uma multinacional que a crise económica arrasta para o Brasil.

“É um reflexo dos tempos que estamos a viver e é natural que a arte, a ficção, se preocupe com estes temas. São temas que estão em cima da mesa e sobre os quais temos todos de pensar. Não só para nos entreter mas também para pensar de que forma é que nos queremos posicionar e o que é que estamos dispostos a fazer”, diz. “A arte tem sempre essa grande vantagem. É um espelho do homem, da sociedade, e aponta. Não dá soluções mas aponta, aponta os problemas, denuncia estados de espírito, e portanto não é por acaso que isto está tudo a acontecer. Há uma ebulição latente.”

O actor diz que foi movido pela paixão por essa mesma arte que saiu do D. Maria II, perante a impossibilidade de “continuar um projecto artístico de qualidade e com dignidade para um teatro nacional”, numa altura em que o Estado “não assegurava as mínimas condições financeiras”. Mas olhando para trás Infante garante que o saldo de cinco anos dedicado à direcção artística é “francamente positivo”, e não descarta a hipótese de assumir novamente um cargo semelhante, apesar de admitir que até lá é preciso “mudar a forma como os políticos e os governantes portugueses encaram a cultura na sociedade”.

 

Mil ofícios

Já dissemos que esteve recentemente a braços com um telefilme mas há mais. Depois de oito anos afastado da representação no pequeno ecrã, Infante também está a gravar uma série. Chama-se Depois do Adeus e retrata a sociedade portuguesa pós-25 de Abril, mais concretamente os retornados das ex-colónias. O actor encarna um desses retornados, Victor Castro, invisual. Como é que consegue fazer tudo? “É uma gestão delicada mas apesar de tudo muito planificada. A gestão dos ensaios [de Preocupo-me, logo existo!] é feita alternadamente com esta ocupação, sendo que não consigo ensaiar mais do que quatro horas porque sendo o único actor no fim de quatro horas estou absolutamente esgotado”, confessa. A peça vai ter a duração de pouco mais de uma hora.

Para trás ficam papéis marcantes para o actor como Hamlet, Rei Édipo e mais recentemente Salieri na peça Amadeus; também a colaboração com nomes incontornáveis do teatro português como Ruy de Matos ou Carlos Avilez; no cinema João Botelho, Luís Filipe Rocha, Joaquim Leitão, sem contar com a encenação de peças de Harold Pinter, Tenesse Williams e Kaufman; e dezenas de séries, telenovelas e programas de televisão.

Para a frente prefere esperar para ver o que traz a maré, mas há um papel à espreita na gaveta. “É um projecto que tenho com o João Mota que é o Cyrano de Bérgerac. Uma personagem que gostava de fazer enquanto tenho energia.”

Aos 45 anos, o actor lisboeta, que cresceu no Algarve e começou a vida profissional como guia-intérprete, confessa que, apesar de todos os problemas, deixar Portugal nunca foi uma opção. Admite que o país “padece de uma pequenez de mentalidade”, mas é lá que ainda acredita que pode “fazer a diferença”.

A Bogosian seguir-se-à um projecto de leitura da Ode Marítima de Álvaro de Campos musicada ao vivo por João Gil. Mais um registo a solo e deveras existencialista, desta feita poético e com assinatura pessoana. Chegará também a Macau? “Quem sabe.”