Sombras para a eternidade

O teatro de sombras chinês é, desde o ano passado, Património Imaterial da Humanidade. A tradição chinesa entrou para a Lista Representativa da UNESCO devido à sua forte história cultural, crenças sociais e costumes locais. Viaje pela história da arte que combina marionetas, canto, literatura oral e artesanato

 

 

Texto e fotos José Simões Morais

 

O teatro de sombras, uma arte folclórica tradicional chinesa, já soma quase 2000 anos de história, mas só agora, depois da sua inscrição na lista de Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO em Novembro de 2011, dá mostras de que o seu risco de extinção faz parte do passado. A eleição internacional deu um novo fôlego à preservação da tradição das sombras, especialmente em zonas rurais da China, onde se tem notado um esforço pelo resgate de conceitos esquecidos através de gerações.

Consideradas como um precursor do cinema moderno, as sombras chinesas são peças teatrais encenadas por figuras de papel, couro de búfalo ou de burro projectadas numa tela branca. O actor manipula as marionetas por trás do ecrã enquanto canta o enredo do conto.

Em Xian, tivemos o primeiro contacto com as silhuetas usadas no teatro de sombras. Foi também nesta cidade, conhecida antigamente por Chang’an, que viemos à procura do museu das silhuetas recortadas em couro transparente, trabalhado e pintado. Na Província de Zhejiang, na aldeia de Wuzhen, assistimos à representação de uma peça de teatro projectada num ecrã improvisado com um lençol, que escondia os actores que cantavam a história enquanto as figuras resplandeciam sobre o branco.

Nos bastidores desta tradição, observamos como as varas eram manejadas com uma vivacidade que, combinada com a disputa entre a voz e os sons da música, dava magia aos movimentos das sombras. Já em Chengdu, capital da Província de Sichuan, fomos contemplados com um  espectáculo didáctico a narrar não uma estória, mas sim a história desta arte milenar.

Com uma fonte luminosa e mãos à sua frente, criam-se sombras de figuras que parecem ter vida. O teatro de sombras de couro, ou pi ying xi como se diz em mandarim, é um dos três tipos de espectáculos que usa bonecos. Já os outros géneros recorrem a fantoches, bonecos de luva ou títeres.

Os espectáculos tiveram uma origem anterior à Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.). Mas foi nesta corte que o uso de sombras, com formas de figuras humanas e de animais através de folhas de árvores recortadas, servia já para entreter as crianças. Entre 445 e 396 a.C., Zi Xia, discípulo de Confúcio, conjugava sombras e música durante as suas palestras nocturnas na Província de Shanxi, como forma de agarrar a atenção dos espectadores.

No início, os raios de sol criavam a silhueta desejada. Mais tarde, as sombras ganharam novos contornos com fogueiras no interior de grutas. A noite é propícia às sombras, graças à luminosidade da lua. Milhares de anos passaram desde que se começou a ter consciência dos diferentes tipos de sombra e, consequentemente, a forma de serem usadas para fins de diversão ou de ensinamentos.

Diz uma lenda que o filho do primeiro imperador da Dinastia Qin (221 a.C. a 206 a.C.), Shi Huang Di, só parava de chorar quando via vultos a passar pelas janelas. Os criados foram então mandados passear pela escuridão para entreter a criança. A partir dessas sombras, foram recriadas figuras em madeira tridimensionais. Mais tarde, desenvolveram-se silhuetas bidimensionais de fácil manejo, construídas com seda ou papel e controladas por varas de bambu.

Conta a história que Wu Di, o sexto imperador da Dinastia Han do Oeste, que governou entre 141 e 87 a.C., estava deprimido com a morte de uma das suas  concubinas favoritas, Li. Mandou então fazer um retrato da senhora e a cerimónia fúnebre foi realizada como se tratasse de uma imperatriz. Das 18 mil concubinas da corte do imperador, Li pertencia ao círculo mais restrito das mulheres que com ele intimamente se relacionavam, tendo-lhe dado um dos seis filhos varões. A princesa morreu jovem e o imperador caiu num estado de profunda tristeza. Foi quando alguém se lembrou de chamar Li Shao Weng, um criador de ilusões, para lhe fazer uma surpresa e aliviar-lhe do desgosto.

No palácio de Chang’an, montaram-se duas tendas brancas, uma ao lado da outra. O imperador foi transportado à noite para um dos recintos e teve instruções para jamais sair de lá. O ilusionista projectou então a silhueta da concubina esculpida em madeira no pano da tenda. Ao ver a sombra da sua dama a passear no outro lado da tenda, o imperador levantou-se e correu para a porta a chamar por Li. Mas logo a luz se apagou e a imagem desapareceu. Assim, o imperador deixou de sofrer e com esta última recordação dedicou-lhe um poema. Foi o primeiro espectáculo de teatro de sombras a ficar registado na história.

Durante a Dinastia Tang (618 a 907), os budistas serviam-se desta arte para contar a história de Buda. Mas foi apenas durante a Dinastia Song (960-1279) que as sombras se tornaram um popular método de entretenimento. Antes disso, os livros focavam-se em determinados pormenores desta arte e durante a Dinastia Song do Norte, muito se escreveu sobre o teatro de sombras.

Por exemplo, 都城纪胜 – 瓦舍众伎 (Du Cheng Ji Sheng – Wa She Zhong Ji), escrito por Nai De Weng, 梦梁录- 百戏伎艺 (Meng Liang Lu – Bai Xi Ji Yi), de Wu Zi Mu, ou 事物纪原 – 影戏 (Shi Wu Ji Yuan – Ying Xi), de Gao Cheng, fazem uma descrição detalhada do teatro de sombras, referindo o aparecimento dos primeiros grupos profissionais no reinado do imperador Ren Zong (1023-1063).

Naquela altura, o teatro de sombras era exibido em dias de festa e nas casas de senhores ricos, com temas sobretudo históricos, passando a ser também uma presença constante na vida cultural da sociedade. Quando em 1126, Kaifeng, a capital da Dinastia Song do Norte foi conquistada pela Dinastia Jin, entre os quase 3000 prisioneiros levados da corte Song para Harbin, havia 150 pessoas que trabalhavam nos teatros de sombra.

No século XIII, durante a Dinastia Mongol dos Yuan, os diferentes teatros de sombra das províncias do Oeste (Gansu, Ningxia e Shaanxi) foram levados para a capital, onde se fundiram, integrando as melhores características de cada género.

Com a mobilidade facilitada pelo amplo espaço do território mongol, que se estendia às portas da Europa e às fronteiras com os nómadas do Sudeste Asiático, as representações para distrair as tropas – até então limitadas ao interior das tendas – passaram a ser realizadas pelos caminhos do Oeste, desde a Ásia Central ao Império Otomano e no Sudeste da Ásia, onde encontrou um terreno profícuo.

A sociedade do Sudeste da Ásia, que prezava o decoro e não via com bons olhos manifestações de afecto em público, acabou por encontrar no teatro de sombras um lugar para representar e mostrar tais sentimentos, já sem o elemento humano a limitar.

Durante a Dinastia Ming (1368-1644) havia mais de 40 grupos só em Pequim e alguns dos dramas representados noutras formas de teatro tiveram origem no teatro de sombras.

O jesuíta J. B. du Halde (1674-1743), através do livro Descrição do Império da China, levou para a Europa um relato sobre o teatro de sombras chinês. “Fiquei admirado ao ver delicadas figuras trabalhadas com delicados padrões cheios de imaginação em pele fina e colorida e o trabalho do manobrador que consegue fazer as figuras andarem, os cavalos galoparem…”, narrava.

O religioso descreveu como tal resultado era possível. “Além do manipulador, existe em cada grupo de cinco a seis pessoas. Um cantor cria todas as vozes das figuras e toca gongo e tambor. Os outros tocam 16 instrumentos musicais. Cada figura está ligada a um som próprio e a um estilo de movimentos.”

Em meados da Dinastia Qing, esta forma de arte atingiu o seu esplendor, mas foi também então que surgiram problemas. Muitas vezes os espectáculos serviam para fazer críticas acérrimas à governação.

Com a Revolução de 1911, muitas das melhores colecções de silhuetas foram vendidas para o estrangeiro. Actualmente, o Museu de Offenbach, na Alemanha, alberga a maior colecção de antigas silhuetas chinesas, contando-se entre elas a do imperador Qianlong.

Sem a concorrência de outras formas de entretenimento, como a televisão ou o cinema, o teatro de sombras foi uma forma de divertimento muito apreciada por diferentes gerações. Mesmo após a fundação da República Popular da China, o primeiro-ministro Zhou Enlai (1949-1976) chegou a brindar os seus convidados, tanto estrangeiros como locais, com espectáculos de sombras chinesas. No entanto, a seguir a Revolução Cultural este género de arte quase deixou de existir. Os bonecos tiveram que ser escondidos para não serem destruídos.

Actualmente, o teatro de sombras é muito popular na Província de Shaanxi, onde está dividida em duas escolas: Nanlu (do Sul) e Beilu (do Norte). As silhuetas dos bonecos de Nanlu têm 33 centímetros e estão todas decoradas da mesma maneira. As da escola Beilu foram influenciadas por tradições de Pequim.

Os bonecos provenientes daquela região têm a cabeça exageradamente grande, onde sobressaem olhos enormes com as sombras abertas em grandes proporções. A boca é trabalhada de acordo com o sexo: o homem fica com os lábios fechados e a mulher, com eles abertos. Também os teatros de sombras das províncias de Hebei e de Liaoning são muito famosos.