Por Cabo Verde – Do Trapiche do Paul à Boca de Pistola

Boca de Pistola, Cabo Verde
A pequena embarcação em largo círculo aproa à embocadura. Uma, duas vezes. Marcha à ré! Ainda não é desta. Sente o piloto não estar no momento. Contam-se as ondas, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete! Motor a toda a força, ou braços nos remos em movimentos ciclópicos, e a pequena embarcação parece voar sobre os negros pedregulhos e os remoinhos denunciados na espuma branca. Esta está a salvo!

 

Boca de Pistola, Cabo Verde

 

Texto e fotos Fernando Sales Lopes

 

Chovia água miudinha. Bagas mais fortes já tinham enlameado o quintal desarrumado, onde se misturavam jerricans de plástico com cabritos, patas e suas crias, cachorros, e gente da casa, cercado por paredes altas de pedra, construção medieva que deixava enxergar as vacas leiteiras motor de tracção da peça que aqui atrai gentes de fora, que os da terra o consomem em fuscas grogais –  o Trapiche que ao centro domina o espaço.

Tem mais de 400 anos, dizem.

A um canto as garrafas reaproveitadas de coca-coleiras conhecidas marcas, e de outras que daqui se mostram ao mundo encerram no seu interior grogue, ponche, e caipirinha de goiaba, modernice que para ser mais real é vendida por jovem sotaqueando brasileiro apresentado como da família.

Parecendo suspenso nos ares sobre este cenário raiando o bíblico, impondo-se sobre o átrio de entrada, que antecede a porta mais recente anunciando as regras de novos tempos – entrada 100 escudos – uma enorme imagem de Santo António denuncia a fé das gentes do Paul no seu padroeiro. Em terras de Santo Antão.

Santanton como aqui se diz.

Ilha imponente, esta. Aqui a natureza escreveu os mais sublimes e belos poemas, em escarpas abruptas, sobre desfiladeiros onde as águas – sempre arredadas do arquipélago – correm em marulhar constante na sua limpidez cristalina. E no verde. Benção das sagradas azáguas. No frondoso da conquista dos homens que construíram com o seu suor estes socalcos barrados por pedras que unem o céu ao mar. Na marca do homem vencedor. Na cova. Cratera de vulcão esquadrinhada em tonalidades de verde saídas das mãos de quem sobre a fornalha tira do solo fértil o pão multiplicado.

Há algo que nos transcende nestas paisagens. Cores, cheiros, sons. Agudos, graves, como os que saíam do coração de Travadinha, que aqui viu a luz do dia.

Tudo é belo nesta ilha. O mar sempre, claro! As montanhas. As gentes. No olhar das crianças e dos velhos que em qualquer altitude se encontram caminhando nos trajectos de seus afazeres, cruzando-se com jovens e velhos de outros mundos caminheiros por prazer e lazer.

Os anciãos sentados sobre os muros de pedra, olhando os infinitos, de um lado e do outro da montanha, conversando, descansando. O futuro indo e vindo das escolas. Fardados. Porque aqui todos são iguais. Jovens tantas vezes em dupla caminhada para alimentar o tchúc – como na língua da terra se dá nome ao suíno –  no isolamento da montanha longe das aldeias e lugares.

Boleias que uns e outros, velhos e novos, pedem a quem passa. “Não vou para aí, mas sobe lá, ficas mais perto e depois apanhas outra”. Quando o condutor olha pelo retrovisor, é vê-los saltar para a caixa do jeep, na agilidade da idade. Lentos com outra agilidade, lá sobem os mais velhos. Uns e outros sempre com um sorriso nos lábios quando a viagem termina. Não viram costas sem agradecer a boleia. “Obrigado, muitas felicidades!”

Gente corajosa e orgulhosa das suas conquistas. De rejeitar a adversidade domando a natureza, sem a dominar, sem a transformar.

É a Pónta d’sol. É a ponta do mar. Não é fácil o mar de Santanton. Tem tanto de bravo como de belo. Se na montanha o braço construiu socalcos de vida, aqui o conhecimento ancestral, e a fé, que os nomes das embarcações denunciam, fazem o milagre de as trazer seguras ao pequeno cais. A corrente puxa, a ondulação varia mas a vaga é quase sempre forte. O canal de entrada é estreito caminho entre enormes pedras negras que bem se notam quando as águas recuam. O sufoco da Boca de Pistola.

A pequena embarcação em largo círculo aproa à embocadura. Uma, duas vezes. Marcha à ré! Ainda não é desta. Sente o piloto não estar no momento. Contam-se as ondas, uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete! Motor a toda a força, ou braços nos remos em movimentos ciclópicos, e a pequena embarcação parece voar sobre os negros pedregulhos e os remoinhos denunciados na espuma branca. Esta está a salvo! Conseguiu passar a barreira. Mas no interior da pequena doca as águas saem com mais força do que aquela com que entraram, arrastando a embarcação para fora. Se a luta da entrada não fora fácil, quando tudo parece acabado começa uma outra muito maior. Aqui cruzam-se forças, e é preciso a todo o custo que o barco não seja arrastado para fora. Seria o fim, estilhaçando-se nas rochas.

Na rampa um pequeno grupo de homens tenta alcançar o cabo que é atirado do barquito. A custo, a muito custo é agarrado. O barco é puxado e rapidamente levado para cima para estar defeso. No paredão de onde se assiste a esta luta, admiram-se agora os peixes chegados, que transportados por mulheres ali são pesados em lota, rapidamente transformada em mercado. Na rocha negra um enorme peixe-serra é esventrado por mãos hábeis. No alpendre no cimo do paredão, mãos calejadas, olhando o mar, jogam cartas, num passar de tempo que vive de outros tempos em boas e más recordações.

A vitória sobre o mar traz-nos ao molhe da Pistola a calma embalada na Mazurca da meia-noite, num choradinho de Nhô Kzik, e num balancear de ancas da deusa crioula que passa como um poema. Como o poema de João Miranda um emigrante que como milhares de outros cabo-verdianos andam pelo mundo, e que a assim canta:

 

“Olhos ávidos

Face rosada e tranquila

Cor de azevime

 

No desabrochar da sua juventude

Já mãe…

Assim a beleza das moças da minha ilha

 

Na simplicidade da sua morabeza

O sorriso é constância,

Calma e solarenga como a ilha.

 

É Ana, menininha de Ponta do Sol.”