Arquitectura do detalhe

O projecto da sala de leitura da Escola Portuguesa de Macau, da autoria de Rui Leão e Carlotta Bruni, foi distinguido pela UNESCO. O arquitecto guia-nos por grandes ideias num espaço pequeno

 

Biblioteca da Escola Portuguesa, Macau

 

Texto Hélder Beja

Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O sol do começo de tarde reflecte na vegetação em volta da pequena sala de leitura da Escola Portuguesa de Macau (EPM) e o arquitecto Rui Leão explica que aqui nada acontece por acaso.

O projecto arquitectónico assinado por Leão e Carlotta Bruni, que adicionou uma sala de leitura ao edifício desenhado por Chorão Ramalho nos anos 1960, foi distinguido pela UNESCO, vencendo a categoria “Inovação” do Prémio de Conservação da Herança Cultural Ásia-Pacífico. Os detalhes, como a luz que entra por toda a parte, fizeram a diferença neste espaço que mantém a ideia de continuar a ser um pátio.

“São coisas muito pequenas mas deliciosas, que têm que ver com a aprendizagem que fiz no atelier do Vítor Figueiredo, em Lisboa, onde estagiei. Havia sempre nele uma curiosidade em ancorar os grandes gestos com as pequenas coisas”, conta Rui Leão. São coisas como os degraus que descemos e que fazem a sala ganhar mais pé alto, coisas como o branco e o preto que se conjugam e dão um toque japonês ao espaço. “No fundo é dessas pequenas coisas que são feitas as maravilhas de todos os sítios onde as pessoas vivem e que ocupam, e que são acumulações de camadas de tempo e de sabedoria”, acrescenta.

É essa sobreposição de camadas que faz o arquitecto amar cidades como Veneza, dizer que podia ficar a contemplá-la para sempre. Macau não é Veneza mas também por cá se vai construindo uma e outra vez sobre o que já existe. Leão diz que “essa relação com o património, com uma pré-existência, tem muito que ver com o encantamento que é a gente ficar a olhar para as coisas e perceber que só as vai conseguir apreender se ficar a pensar nelas. Não é nada que a gente possa estar a perceber num atelier, à frente de um computador noutra cidade qualquer”.

 

Redescobertas

Para construir a sala de leitura agora distinguida pela UNESCO foi preciso perceber tudo e, principalmente, o edifício de Chorão Ramalho. “Para nós era primordial que as coisas viessem todas da malha do edifício que já cá estava”, assegura o arquitecto. A matriz nota-se em quase todos os elementos do novo espaço: as paredes de vidro, as vigas metálicas, as formas geométricas.

No atelier, Rui Leão entregou-se à construção da sala de leitura, pegou na planta de Chorão Ramalho e pôs-se a redesenhar tudo, a assimilar cada linha, cada detalhe. “Tive uma grande necessidade de perceber o que é que lhe passava pela cabeça quando fez isto. Lembro-me que a menina que estava a trabalhar comigo havia de pensar que eu estava maluco, porque eu falava com os desenhos, falava com o imaginário, com a redescoberta de uma série de coisas que estavam próximas mas não estavam descobertas”, recorda o arquitecto. Isso foi “muito importante” para que se sentisse à vontade para actuar sobre o espaço e o edifício. “Quis saber o que é que estava aqui, mas do que saber o que é que eu queria. Acho que este exercício não é muito afirmativo e é isso que gosto neste projecto”, acrescenta.

Trabalhar em equipa tem vantagens e há etapas que Rui Leão diz-se incapaz de cumprir sozinho. Mas também dá muita discussão. “Neste caso, o que deu grande diálogo foi uma coisa um bocado mais afectiva. Tenho uma memória de infância deste edifício, de passar nele, de entrar cá dentro. Eu estudava do outro lado da rua [no Liceu de Macau] mas a gente vinha muito aqui. Tenho a convivência com o Vítor Figueiredo, com o Manuel Vicente, que não são desta geração mas vêm logo a seguir, e depois com aquela gente toda do Porto onde apesar de tudo havia uma certa continuidade. Tenho uma relação com isto, não só por estar em Macau mas também pelo percurso que fiz de escola. E havia uma série de coisas que, ao olhar para o desenho do edifício, para mim eram um exorcismo.”

Rui Leão admite ter sido apanhado de surpresa pela distinção da UNESCO, apesar de gostar muito do projecto e de ter sido vontade sua levá-lo a apreciação. “Eu queria muito submeter o projecto [à UNESCO], porque gosto imenso deste trabalho. Tem uma coisa que às vezes é difícil: a relação com o cliente. Mas com a direcção da escola correu lindamente, a gente conseguiu chegar a um ponto de entendimento quase no início do projecto. A construção foi simples, feita durante mês e meio, dois meses de férias de Verão – começou o ano lectivo e isto estava pronto. A gente depois começou a passar por cá e a olhar para a sala de leitura, e era um prazer ver os miúdos a usar isto. Os professores também reagiram muito bem”, conta.

 

Distinções

Não é a primeira vez que o atelier de Rui Leão soma prémios. Em 2006 recebeu uma medalha de ouro da ARCASIA pelo projecto da Praça Nam Van; e em 2010 foi distinguido com uma medalha de excelência pelo parque urbano junto ao acesso à ponte Sai Van. Só que o projecto da EPM foi “um exercício total”. “O programa permitia-o, o lugar permitia-o, o cliente permitia-o. Havia condições para fazer aqui uma coisa que fosse plena.”

O resultado foi agora reconhecido pela UNESCO e Leão aplaude a distinção de projectos privados e de pequena escala. “O facto de não ir aos projectos promovidos pelo Governo, tem mesmo essa intenção de reconhecer o esforço das comunidades em relação ao património. Esse é que é o exercício mais difícil.” O arquitecto diz que “o Instituto Cultural tem mantido uma actividade exemplar a nível de património”, mas adita que “a parte institucionalizada do património não chega, porque há uma quantidade enorme de património que está nas mãos de privados e, se não houver uma acção emancipatória de quem tem a gestão desses edifícios, realmente é grave”.

Para o arquitecto, é “muito importante” que a UNESCO olhe “para estes projectos, onde se pode fazer alguma diferença”. “Há operações mais institucionais em que se vai implementar uma coisa num edifício antigo mas, por muito bom projecto que haja, é difícil ter uma atitude sensível em relação ao contexto. Aqui houve todas as condições.” Em casos como o da construção da sala de leitura da EPM, Leão considera que “se o processo não for bem instruído, é sempre um desastre”. “O que acho – e acho que esta operação é um exemplo – é que nunca tem de ser um desastre, pode ser sempre ganho.”