Moçambique a várias cores

O recente crescimento económico de Moçambique levou dezenas de nacionalidades ao país. Mas três comunidades já têm bilhete de identidade. São negros, descendentes de portugueses e de indianos. E a mescla dos seus costumes, tradições e crenças construíram um país tolerante e único

 

 

Texto Marta Curto, em Moçambique 

 

Moçambique tem várias cores e cheiros. E tudo se mistura com naturalidade, como se sempre tivesse sido assim. As chamuças fritas pela mulher de capulana à cintura, a mesquita que chama enquanto a curandeira lança os búzios, o cliente do restaurante indeciso entre o bacalhau com todos e a matapa (prato tipicamente moçambicano com folhas de mandioca e amendoim). Sim, Moçambique tem vários cheiros, várias cores, vários deuses. Todos convivem como amigos, mas raramente chegam a familiares. Partilham mesa, locais de trabalho, receitas e sorrisos, mas não se casam. A raça é algo sagrado, que se mantém com orgulho nos antepassados.

Moçambique é branco, é negro e moreno. Mas é sempre Moçambique, com um forte sentido da moçambicanidade, e, sobretudo, de pertença. O país dos avós, lá longe, pouco ou nada diz. Alguns ainda iam lá de férias quando eram meninos, obrigados pelos pais, mas em adultos, já o esqueceram. Agora são moçambicanos. São todos moçambicanos.

E o que é ser moçambicano? É ter a nacionalidade? Um papel que diz que sim? Bilkiss diz que ser moçambicano é sentir-se daquele sítio, onde nasceu e cresceu. É ver as notícias e querer mais para o seu país. João Jamal diz que é ter a identidade moçambicana, expressar os seus valores culturais, sentir que a pátria está em primeiro lugar. Para Manuel Gonçalves, é sentir-se da terra e trabalhar para resolver os grandes problemas do país.

Num país onde o nacionalismo de Samora Machel não morreu, todos carregam o peso do desenvolvimento aos ombros. Esse é o principal ponto em comum. É que o crescimento económico, a erradicação da pobreza, o fim da fome, não é um problema político. É um problema de todos.

 

Quando o Ramadão fecha mais cedo as lojas

Bilkiss Gulamo tem 50 anos e a sua irmã Fátima Gulamo, 56. Nasceram e cresceram na Ilha de Moçambique com mais oito irmãos. Bilkiss casou e mudou-se para Maputo, onde criou quatro filhas. Fátima fugiu do desejo do pai de vê-la casada e rumou a Portugal, onde ficou 22 anos. Bilkiss separou-se e casou as quatro filhas. Fátima regressou ao seu país ainda solteira. Moram agora juntas num apartamento de Maputo, com um enorme quintal, onde os netos de Bilkiss brincam aos fins-de-semana.

Mesmo recém-regressada, Fátima já está bem inserida na comunidade indiana de Moçambique, onde todos se conhecem e sabem a vida uns dos outros. Lá Fátima encontra tudo o que precisa para seguir as tradições dos pais e dos avós. As roupas bordadas e pouco decotadas, a carne halal (talhos onde os animais foram mortos após uma reza muçulmana), as mesquitas que habitam qualquer rua, qualquer bairro e chamam, sempre às mesmas horas, os fiéis para a oração. Em qualquer botequim há chamuças à venda. Em qualquer mercado, frascos de achar (picles de fruta ou legumes picantes) caseiro se vendem ao lado das mangas e das papaias.

Foram os seus bisavós que chegaram da Índia e se instalaram no norte do país. No seu pais natal tinham machambas (quintas agrícolas) e gado. Os avós casaram entre primos direitos para manter o sangue, já que, naquela altura, a comunidade indiana não era numerosa. Ainda hoje preferem casar entre si para manter os costumes, as tradições. É importante que a mulher saiba o seu lugar, que a sexta-feira seja santa para ambos, que as pernas e os braços delas estejam cobertas. As tradições muçulmanas perpetuam em Moçambique, e, ainda que a comunidade não seja tão rígida como noutros países, onde o islamismo é a religião principal, a verdade é que também ninguém quer uma nora ou um genro que não conheça os costumes e não os cumpra.

Ainda é o pai que escolhe o noivo da filha, ainda há mulheres que preferem andar de burka, os casamentos ainda são comemorados com os géneros separados por um lençol. E nada disto é visto com estranheza em Moçambique. É tudo natural e da terra, como se sempre tivesse sido.

O comércio tradicionalmente a eles pertence. São donos das maiores lojas do país e mestres a vender. Bilkiss é agente imobiliária e acaba por ser amiga dos seus clientes, perpetuando a relação com bolinhos e ofertas no Id (último dia do Ramadão). No mês de jejum, todos sabem que mal escurece as lojas hão-de fechar. E no Id serão raros os estabelecimentos abertos. Também não é raro ver um descendente de indianos num cargo político. E ninguém estranha ou aponta o dedo. Porque é visto como moçambicano.

Pelo contrário, a comunidade pouco tentou absorver os costumes do Moçambique negro. A tradicional capulana (pano tradicional usado pelas mulheres à cintura sobre a roupa) nunca é usada e ao curandeiro só vão às escondidas, como afirma Bilkiss, com desdenho por ser um pecado imperdoável.

 

Quando os espíritos ditam os destinos

“De dia, o moçambicano negro pode ser a pessoa mais moderna da cidade, com o seu blackberry e o seu carro de última geração. Mas à noite está envolvido em fumaça no curandeiro. O negro tem sempre a crença, tem sempre o espírito. Há muita gente que vai ao curandeiro para perguntar se o banco vai emprestar dinheiro, se o filho vai passar no teste, se o marido trai. São os espíritos que orientam a nossa vida e família.”

João Jamal é moçambicano negro. Conhece bem os costumes mais tradicionais da sua terra. Não afirma abertamente frequentar os adivinhos, mas admite que muitos lá vão quando a noite cai. De facto, há duas formas de uso dos espíritos em Moçambique. E qualquer moçambicano conhece ambas. Existem os curandeiros e existem os feiticeiros. Todos gostam de ir ao curandeiro e todos temem o feiticeiro. O primeira cura dos males da vida, da doença, do coração e da alma. O segundo enfeitiça, engana, sabota. Se tem uma dor, uma pergunta, um medo, vai ao curandeiro. Se quer engarrafar um homem (mantê-lo preso a uma mulher), prejudicar o seu chefe para ter a promoção ou matar sem uso das mãos, é ao feiticeiro que tem de ir. Há placas a publicitar curandeiros um pouco por todo o país, no trânsito meninos distribuem panfletos com o telefone deste ou daquele. Pelo contrário, os feiticeiros estão escondidos.

Não, João Jamal não admite ir ao curandeiro, nem ao feiticeiro. Mas, por pertencer à classe média alta, muitos diriam que vai. Tem seis filhos, como ditam os costumes tradicionais moçambicanos. Nos tempos em que a terra era o sustento, queriam-se mais braços para trabalhar a terra. Hoje quase metade da população vive nas cidades, mas manteve-se os hábito das famílias numerosas. E quem não as tem, é visto com estranheza e pena.

Para João, a educação está em primeiro lugar, e por isso, os filhos mais velhos estudam fora de Moçambique, enquanto os mais novos frequentam escolas internacionais em Maputo. Mas nem estas influências estrangeiras cortam o cordão umbilical com as tradições ancestrais moçambicanas. Maria Irene, a sua mulher, tem sempre capulanas em casa, como qualquer negra moçambicana. “A menina, ainda antes de se tornar mulher, tem uma capulana. Quando apresenta o namorado, tem de ir de capulana. Se trabalha na casa, está de capulana”. Maria Irene ensina as suas cinco filhas a amarrar bem a capulana. Se o pano está bem seguro, quer dizer que a mulher é séria, não tira a capulana em qualquer esquina. Por mais estudos que as filhos tenham, hão-de também fazer um lobolo quando casarem. “Lobolo é um casamento tradicional, tem mais peso para nós. Se não faz, não se casou. Mesmo se não estiver em Moçambique tem de fazer um lobolo, porque senão terá problemas no casamento.”

Para tudo há uma cerimónia, tudo tem o seu jeito e preceito. Há um ritual ao nascer e outro ao morrer. Há para casar, para namorar. E, para tudo, o objectivo é o mesmo: respeitar os antepassados, para que estes os protejam dos maus olhados.

 

Quando o changana sai da boca de um branco

Manuel Gonçalves tem 65 anos e é presidente do Conselho Administrativo do Fundo de Fomento Pesqueiro. Anita, sua mulher, nasceu em Moçambique. Ele é de Melgaço, em Portugal. Moçambique entrou-lhe na vida aos quatro anos.

Só em 1977, aos 31 anos, Manuel visitou a sua terra pela primeira vez. Gostou, sim. Gostou de ver a terra do pai, a terra onde nascera, tios e primos que nunca vira. Mas não encontrou o seu amor por aquele país.

O pai havia ido para Moçambique em 1946 e mandara juntar a família três anos mais tarde. Manuel cresceu sem ouvir um lamento de saudade, uma nostalgia. O seu pai guardava no peito a mágoa de não ter estudado e de lhe ter morrido de tifo uma filha, ambos pela falta de dinheiro. Assim, o pequeno já cresceu sem terra, pensando, sentindo Moçambique como seu.

Na independência, em 1975, despediu-se dos pais que voltaram para Melgaço, mas nunca pensou seguir-lhes as pisadas. “Foi uma decisão de cariz político. Eu tinha uma grande integração e entrosamento nesta sociedade. Não tive medo, nem precisava de ter.” Nunca o país havia precisado tanto dele e ele quis ficar para construir um Moçambique novo. “Na altura só 300 mil pessoas em Moçambique falavam português. As chefias foram todas para Portugal. Ficámos completamente desarmados. Não havia quem avançasse com este país”, recorda.

Manuel só chegara ao sétimo ano de escolaridade e foi um concurso que lhe abriu as portas do laboratório de química da faculdade de Veterinária. Por sorte do destino, fazia-se na altura um estudo sobre aproveitamento do tubarão e assim começou a conhecer a vida dos mares. A pesca era um assunto completamente esquecido e enterrado em Moçambique, um país com 2500 quilómetros de costa. Portugal preferiu que o país fosse consumidor dos seus excedentes de bacalhau e sardinha, que, antes da independência, eram a comida dos pobres e nunca desenvolveu as pescas. Quando Moçambique quis fundar uma Direcção Nacional de Pescas, o assunto era desconhecido e entraram os que sabiam alguma coisa da vida marinha: um chileno exilado e Manuel Gonçalves.

Hoje, é das pessoas que mais entende de pescas em Moçambique e a sua maior ambição é ver aberto um Museu das Pescas. Num armazém, está a juntar redes de pesca de tubarão feitas com fibras de embondeiro (enorme árvore tipicamente africana), cabos de fibras de coco, réplicas de diversos tipos de barcos, berbequins manuais, anzóis de espinhos de árvores, fotografias antigas da faina e bóias artesanais.

Quando se fala de costumes, tradições ou cor da pele, Manuel Gonçalves limita-se a encolher os ombros. Gosta de bacalhau e do seu café, mas também gosta de chamuças, de achar e de matapa. Portugal está lá longe e só lhe trouxe a dor do pai e a cor da pele. Uma cor que, para ele, pouco significa. Só um detalhe num homem para quem Moçambique é muito mais do que o país que o recebeu. Manuel Gonçalves participou activamente na construção do país e é esse orgulho, que não mostra facilmente, que o faz sentir-se da terra.

Embora não seja de terceira ou quarta geração, Manuel Gonçalves faz crer que esta primeira fornada de Gonçalves em Moçambique deixe marca nas gerações futuras. Os seus filhos entendem e falam changana (dialecto de Maputo) tão bem quanto o português e, quando esta língua sai da boca de um branco, em Moçambique, os olhos abrem de espanto. Este não é como muitos que andam aí. Este é mesmo de cá, pensam.