Sólido como uma rocha

O Jornal Tribuna de Macau fez 30 anos, sempre liderado pelo seu fundador. José Rocha Dinis explica a solidez actual do projecto e recorda como a Síndroma Respiratória Aguda Severa salvou o jornal da crise

 

 

Texto Nuno G. Pereira | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

José Rocha Dinis podia ser um daqueles bonacheirões que se deliciam a apertar as bochechas dos netos e a levá-los a passear ao parque. Ou mais um avozinho a dourar a barriga nas praias tailandesas, com uma nativa em cada braço. Aos 66 anos, não só está distante desses estereótipos como se diz a milhas da reforma. Para ele, o dia-a-dia faz-se de jornalismo, tal e qual como em 1982, ano em que fundou o então semanário Tribuna de Macau. Quando chegou para dirigir o novo projecto, trouxe também a família. Hoje, está separado da mulher e tem a filha a viver na Suíça. Do jornal, agora como há 30 anos, mantém-se inseparável.

A ideia de criar um jornal de referência em Macau, de língua portuguesa, pertenceu a Jorge Neto Valente, conceituado advogado (é o actual presidente da respectiva associação em Macau). Sabia que Carlos d’Assumpção, também advogado com intervenção política (foi presidente da Assembleia Legislativa) ia lançar um diário e pretendia antecipar-se, pois estava em pólo ideológico oposto – era de esquerda, Assumpção de direita.

Para fazer o seu jornal, Neto Valente foi a Lisboa recolher informação. Quis ver como se fazia um jornal, da criação à impressão, e encontrar o homem para dirigi-lo. Segundo contou, chegou ao nome de Rocha Dinis depois de consultar algumas opiniões. O director da publicação diz que ainda desconhece a razão da sua escolha. Embora tenha uma ideia. “Algum tempo antes, tinha vindo a Macau fazer um trabalho para um programa sobre turismo, da minha autoria, para a Rádio Televisão Portuguesa. Como estive aqui dez dias, aproveitei para fazer mais trabalhos. Uma das pessoas com quem tentei falar foi Neto Valente, que me indicaram como ‘líder da oposição’ ao Governo local. Tentei encontrá-lo, deixei várias mensagens, mas nunca respondeu. Foi com a maior surpresa que depois, já em Lisboa, recebi um telefonema dele a dizer que queria falar comigo.” Rocha Dinis achou que seria por causa da entrevista pedida, mas a intenção do interlocutor era outra: convidá-lo para fundar um jornal. “Julgo que me escolheu por ter falado com pessoas que me conheciam e por eu ser uma pessoa moderada politicamente, não de extrema esquerda, o que poderia ‘assustar’ quem estava em Macau, onde o Governo era tradicionalmente de direita.”

O desafio foi aceite e o público pôde comprar o Tribuna de Macau pela primeira vez a 30 de Outubro de 1982. Dois dias antes tinha saído o Jornal de Macau, diário de Carlos d’Assumpção, dirigido por João Fernandes, jornalista também vindo de Portugal. Logo no início, gerou-se uma animosidade entre as duas publicações, que incluiu troca de palavras pouco amigáveis entre os directores. A relação, porém, iria desenvolver-se de forma surpreendente.

 

Futebol e história

Antes de aterrar em Macau, Rocha Dinis já tinha feito muita coisa, até mesmo antes de perceber que seria jornalista. “Embora sempre tenha gostado de escrever, não pensava nisso. Nem quando fui tirar o curso de História. Depois de estar na profissão, de já estar envolvido, aí é que percebi. Achei que ser jornalista era a melhor coisa do mundo e nunca mais tive dúvidas sobre o que queria ser. Ainda tive um convite para ser professor assistente, mas achava os académicos uns chatos [risos]. Sempre fiz muita coisa. Participei activamente em acções políticas – nos movimentos académicos de 1969 em Coimbra até estive engavetado, por andar a distribuir panfletos – dei aulas, fui treinador de futebol.”

Entre trabalhos para poder adiar a ida à tropa e o serviço militar que acabou por cumprir, o curso foi sendo adiado. Em Agosto de 1975, pouco mais de um ano depois do 25 de Abril, saiu da tropa. “Fui acabar o curso de História, que entretanto tinha levado uma volta curricular no pós-revolução, ganhando várias cadeiras de teor marxista. Pelo meio, comecei a colaborar com o Diário de Notícias, dirigido então pelo Mário Mesquita. Combinei que enquanto estivesse a acabar o curso colaborava a partir de Coimbra. Só depois fui para Lisboa.”

Quando Neto Valente foi procurá-lo a Portugal, Rocha Dinis era já subchefe de redacção no jornal Tempo. “Pensei: ‘Macau? Por que não?’. E vim. Tinha 36 anos.”

 

Rivais unidos

Com dois jornais acabadinhos de sair, no final de 1982, João Fernandes, director do Jornal de Macau, mandou umas “bocas” ao semanário. Rocha Dinis não gostou e respondeu-lhe à letra. “O João julgou que eu vinha cá para defender o Governador. Até fiquei muito surpreendido, mas comigo quem bate leva logo.” O arranque tenso da relação durou pouco. “Nem sequer tive de explicar o que quer que fosse. O João é que percebeu, porque logo ao terceiro número pus o Governador aos saltos com uma manchete do jornal. Ele atirou-se ao ar, dizendo que não eram os jornais que faziam o Governo.”

Como os dois jornais sofriam uma oposição feroz por parte do Governador Almeida e Costa, puseram de lado as suas diferenças ideológicas. Tal como João Fernandes e Rocha Dinis. “Nunca escondi que era do Partido Socialista, ele também sempre foi claro sobre as suas convicções ideológicas de direita. E nenhum de nós cometeu o erro de tentar converter o outro. Houve um grande respeito mútuo, que foi crescendo naturalmente. Nos anos 1980, Macau era uma sociedade muito conservadora. Mesmo assim, houve um jantar de desagravo contra o Governador, em 1984, que juntou mil pessoas, algo nunca visto em Macau. Só falou um reformado, eu e o João. Aliás, fui eu que acabei por conseguir que o Dr. Assumpção e o Neto Valente se juntassem. Cada um estava com medo de dar o passo. Como eu estava um bocadinho de fora, tive essa oportunidade. E quem me ajudou a fazer isso foi o João.”

A aproximação entre os dois homens foi mais longe pouco antes da transição. “Em 1997, comecei a pensar no que iria acontecer. Ainda havia muito amadorismo na imprensa de Macau. Era importante que se mantivesse um jornal responsável, regido por regras profissionais. Não sei quanto dinheiro o Neto Valente já gastara com o jornal, mas sabia que tinha sido um valor considerável. O Dr. Assumpção, entretanto, tinha morrido e havia alguma indefinição no Jornal de Macau, que estava em queda. Falei com o João para saber o que ele pensava fazer. Eu estava preocupado.”

A conversa foi frutuosa e os dois acertaram um passo arrojado: a fusão das publicações. A 1 de Junho de 1998, num formato similar ao actual, nasce o Jornal Tribuna de Macau, um diário que depressa se torna referência. Rocha Dinis afirma que em momento algum pensou regressar a Portugal. “Até porque tinha combinado com o João que ficava no jornal durante o ano, mas ele iria dirigi-lo no mês das minhas férias. O problema é que teve um AVC e o plano teve de ser alterado.”

O que já era um cenário desafiante – a sobrevivência de um jornal em língua portuguesa depois da passagem do território para administração da China – ficou assim mais difícil. E as más notícias continuaram, poucos anos depois. “Foi a altura em que surgiu a Síndroma Respiratória Aguda Severa (SRAS). Macau estava às moscas, com ruas vazias, em Hong Kong ainda era pior. Mas eu a ganhar posso sair, a perder nunca.”

 

Fim da crise

O quadro preocupante na entrada do novo milénio obrigou Rocha Dinis a medidas drásticas. Os colaboradores do jornal, garante, foram ainda assim protegidos. “Tinha estado dois meses em Portugal, a descansar, estava cá outra pessoa que deixei a tomar conta do jornal. Quando voltei, resolvi ir para uma casa muito barata. Mantive pessoal, um grupo restrito que trabalhava comigo há muito tempo. Uma dessas pessoas, de origem chinesa, era quem fazia as contas. Veio ter comigo e pediu-me para lhe baixar o ordenado. Mas não aceitei. Durante os anos 1990 estive na faculdade a dar aulas, fiz vários outros projectos, consegui ganhar bastante dinheiro em Macau. Tinha uma reserva.”

As finanças pessoais do director seriam poupadas. A luz ao fundo do túnel começou a brilhar, estranhamente, graças à SRAS. Um drama com alguns sorrisos como efeito secundário. “O momento difícil acabou por ser curto, porque os jornais começaram a ganhar com a SRAS. Houve um episódio que marcou a situação. O jornalista Paulo Azevedo foi a uma reunião oficial sobre a SRAS em que os responsáveis presentes só falaram em chinês, sem direito a tradução. Ele saiu em protesto e escrevi um editorial a dizer que ou o Governo sabia que a gripe não atacava os portugueses ou estava a fazer um mau trabalho. Depois disso, os directores dos jornais foram chamados a Santa Sancha. O então chefe do Executivo, Edmund Ho, pediu desculpa e disse que tal não voltaria a suceder. Pediu-nos também para ajudarmos a combater o problema, informando os nossos leitores. A partir daí, o Governo começou a enviar anúncios para a imprensa portuguesa. E depois anúncios dos tribunais. Começámos assim a levantar a cabeça. Da degradação até à recuperação financeira acabou por ser pouco tempo. E percebeu-se melhor que a comunidade portuguesa é uma parte integrante de Macau.”

As alterações continuariam, em ritmo cada vez mais acelerado, especialmente depois da concessão das novas licenças de jogo. Como é que se acompanham tantas mudanças? “Foi preciso alterar muita coisa. Mas nada de repente. A grande ideia que tive foi fazer um acordo com a Faculdade de Letras de Coimbra, trazendo os melhores alunos para estágios curriculares. E pagando ordenado, viagem, estadia. O contrário do que se faz em Portugal. Assim, tive oportunidade de refrescar a comunidade jornalística em Macau, não só na Tribuna mas noutros sítios, porque muitos jornalistas ficaram cá e estão agora noutros órgãos de comunicação social. Veio gente nova, muito bem preparada e que se adaptou bem. Além disso, tive um grande apoio, que foi o Sérgio Terra, director-executivo do jornal.”

Com o aniversário dos 30 anos do seu jornal, Rocha Dinis sublinha que quis chamar a atenção para a importância dos média portugueses no território, mas também para a continuidade do modo de ser de Macau, “a dupla afirmação portuguesa e chinesa, que já tem muitos anos de história”. Olhando para o futuro, fala de uma estratégia de crescimento utilizando as plataformas digitais. “Vídeos e Internet. Como não há cá mais leitores, vou projectar isto para fora. E tenho planos, em associação com outros jornais, para crescer no mundo lusófono.”