Guerreira das letras e de causas

Deolinda da Conceição (1913 – 1957)

 

DESENHO DEOLINDA

 

Texto Maria de Lurdes Nogueira Escaleira

Professora-Adjunta da Escola Superior de Administração do Instituto Politécnico de Macau

Doutorada pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Ilustração António Conceição Júnior

 

 

Deolinda da Conceição, escritora, nasce em Macau numa época conturbada pelas guerras mundiais e pela guerra sino-japonesa. É essa vivência que retrata em Cheong Sam (A Cabaia – obra que reúne vários contos), e nas crónicas, publicadas no jornal Notícias de Macau, onde trabalhou como jornalista e responsável da Página Feminina.

Nos contos, Macau é descrito como uma cidade onde os extremos se tocam num dualismo carregado de branco e preto. Macau é o “cantinho abençoado”, um “oásis de paz”, uma “terra privilegiada e de promissão”, um “cantinho onde se podia desfrutar de uma relativa paz”, de calma, sossego, beleza, encantamento e onde o silêncio das ruas é quebrado, de vez em quando, pela “buzina de um automóvel” ou pelo relógio que bate as 12 badaladas. Noites tranquilas e belas, em que imagens encantadoras povoam o sono dos inocentes, fazem a autora sentir-se feliz e considerar que é uma maravilha viver em Macau.

De repente, toda esta felicidade é bruscamente abalada por “rostos amarelecidos pela fome constante” e pelo desespero de um presente cruel mas, sobretudo, pela visão de um futuro sem qualquer réstea de esperança. As ruas de Macau tornam-se palco no qual desfilam corpos e almas marcadas de forma profunda por uma guerra feita por homens que “de humano só têm a forma”.

Cidade de contrastes onde as padarias exibem pão quentinho e os mendigos, dia e noite, vagueiam em grupo[1] à chuva e ao frio, enfrentando a escuridão da noite e das suas vidas, na esperança que uma mão caridosa lhes estenda um pedaço de pão ou uma moeda para comprar algo que lhes mitigue a fome.

É neste cenário de desespero e profunda miséria que a solidariedade e a compaixão das gentes de Macau suaviza a vida dos inúmeros refugiados de guerra e de todos os que aqui procuram um refúgio que os abrigue e os afaste do trágico destino a que as tradições sociais os tinham votado.

A mulher é a personagem central da maior parte dos contos: a mulher chinesa que sofre a discriminação e que tenta libertar-se da condição de inferioridade a que estava sujeita (concubinato, filho varão e venda das meninas); a mulher vítima da guerra que enlouquece de dor perante a impossibilidade de salvar os filhos da fome e da miséria; a mulher que, na sociedade fechada de Macau, tenta conquistar a sua liberdade e assumir-se em pé de igualdade com o homem, a nível profissional e social.

Ao lermos a biografia da autora podemos concluir que ela própria, enquanto jornalista, escritora, professora e tradutora, participa activamente neste movimento emancipatório da mulher, tendo-se afirmado, a nível profissional, num meio exclusivamente masculino.

Deolinda, mulher divorciada, sente a fragilidade feminina e a incapacidade de lutar contra a crítica mal-intencionada, destruidora de sonhos e que atinge tanto os que transgridem os códigos sociais como as pessoas de bem. A crítica e a hipocrisia são impossíveis de conter e a autora pensa nunca ser possível viver numa sociedade isenta destes males que “todos os dias causam danos incalculáveis”. De facto, a hipocrisia e a crítica social são afloradas em alguns dos contos, no entanto é na crónica O Carnaval da Época e a Época de Carnaval que a autora faz uma crítica clara e aberta à sociedade de Macau, a criticar o facto da maioria das pessoas usar uma máscara todos os dias para agredir os outros com a sua maldade e perfídia. Na época, não deve ter sido fácil a Deolinda, macaense, divorciada e casada pela segunda vez, afirmar-se numa sociedade católica e que via o divórcio como algo de abjecto e condenável. Apesar de toda a amargura que podemos sentir na sua voz, quando fala da crítica e da hipocrisia, os relatos de colegas de trabalho e amigos, como Patrício Guterres e Adé dos Santos Ferreira, revelam admiração e apreço por uma mulher inteligente e instruída, que prestou um valioso contributo no campo das letras.

Macau é o lugar de encontro com o outro, que provoca estranheza, atracção, aceitação e, não raras vezes, rejeição. São vários os casos de atracção pelo estrangeiro, contudo, destacamos o encontro entre o homem português, normalmente soldado, e a mulher chinesa e o convívio entre ambos, mesmo não dominando a língua um do outro e possuindo culturas tão diferentes. A mulher chinesa aparece submissa ao homem e desculpando-lhe atitudes que a magoam, pelo facto de não conhecer a sua cultura e acreditando que, talvez, no mundo dele as coisas sejam assim mesmo. No conto A Esmola retrata esta situação, ao dar-nos conta dos sentimentos do filho do casal que vive insatisfeito e se sente inferiorizado por não ter uma família normal e o seu ambiente familiar ser povoado de atritos criados pelo conflito entre duas pessoas com vivências culturais raramente conciliáveis.

O amor leva-nos, novamente, à mulher que ama, mas esse sentimento nobre provoca-lhe grande dor, traz-lhe sempre desgraça: o marido mata Chan Nui por ciúmes; Ling Fong é abandonada grávida; em Conflito de Sentimentos a personagem feminina é contra os “homens terem mais do que uma mulher”, mas vê o seu sonho de felicidade arruinado a partir do momento em que o marido traz a primeria concunbina para casa; Sam Lei suicida-se quando o homem que ela ama decide casar com outra, entre muitos outros exemplos.

O amor maternal é descrito de forma intensa e, perante o infortúnio dos filhos, a mulher-mãe ultrapassa-se a si mesma e é autora de actos de abnegação que lhe toldam o olhar e a sujeitam a uma forte violência interior, conduzindo-a, não raro, à loucura.

Deolinda da Conceição descreve de forma clara e muito sentida o ambiente da época, principalmente no que respeita aos sentimentos humanos. Num estudo feito com um grupo de alunos chineses sobre A Cabaia, os contos surpreenderam-nos pelo facto de não terem finais felizes e as vítimas serem quase sempre mulheres. Mesmo nos contos O Modelo e O Sonho de Cuai Mui o final só aparentemente é feliz porque, no primeiro caso, o acidente muda-lhe por completo a vida e obriga-a a abandonar o seu sonho e, no segundo, Cuai Mui ganha a lotaria quando está às portas da morte e acaba por morrer pouco depois de receber a notícia pela qual ansiou toda a vida.

A linguagem clara e acessível, bem como o facto de tanto os contos como as crónicas serem textos breves, fazem com que em nosso entender possam ser abordados nas salas de aula, principalmente dos ensinos secundário e superior.

No centenário do seu nascimento prestamos o nosso singelo contributo a uma mulher que ultrapassou a crítica, que gela as almas e o coração e tolhe os sonhos e assumiu a sua condição de mulher que luta pela sua felicidade, que trouxe para as páginas dos jornais, de forma frontal, o debate sobre usos e costumes, a guerra e as suas consequências e a situação da mulher numa sociedade onde o homem se assume como ser superior e a mulher tem um papel secundário e de submissão ao pai e, mais tarde, ao marido.



[1] “A população de pouco mais de 200 mil almas passou, de repente, para mais de meio milhão”. (Botas, s/d: 25).

 

 

Referências Bibliográficas

Conceição, D. (1995). Cheong-Sam – A cabaia. Macau, Instituto Cultural de Macau.

Conceição, D. (1949)  “A Mulher Moderna” in Jornal “Notícias de Macau”, 19 de Novembro de 1949.

Gazeta Macaense. (23-09-1987). Evocação de Deolinda da Conceição. Disponível em http://www.arscives.com/deolindaconceicao/depoimentos1.asp