Em Taishan, bebendo em taças de nuvens

A morte de um homem pode ser tão pesada como a montanha Tai, ou tão leve como uma pena. Sima Qian (145 a.C. – 85 a.C)

 

 

Taishan

 

Na China as montanhas são divindades, associam-se aos majestosos poderes da natureza e actuam protegendo ou condicionando a existência dos homens. Devem, por isso, ser reverenciadas, honradas com preces e oferendas. Algo de semelhante, no que à sua importância diz respeito, tem acontecido por outras paragens. Recordemos apenas o velho Moisés a receber o Decálogo, os Dez Mandamentos, no monte Sinai, directamente das mãos de Deus, ou os 12 deuses da mitologia grega a reunirem-se nas alturas do monte Olimpo. Acredita-se que as montanhas chinesas trazem a paz, a estabilidade, a força serena aos incontrolados movimentos da terra. Graças ao seu poder e dos deuses que as habitam, os rios não inundam os campos na planície, a terra não treme nem abala os dez mil lares. As nuvens nascem no céu, descem do topo dos montes e caem com a chuva, para humedecer a terra, levar a água aos homens, enrijecer o arroz e o trigo.

Taishan ou a montanha Tai, classificada como Património Mundial pela UNESCO desde 1987, levanta-se na grande planície da China do Norte, no oeste da província de Shandong. A montanha não é muito alta, tem apenas 1547 metros que culminam no pico do Imperador de Jade coroado com um pequeno templo em homenagem à divindade suprema do taoismo religioso.

Três vezes a pé subi e desci a montanha Tai, a mais sagrada das cinco montanhas associadas ao taoismo. A primeira vez, apenas para conhecer, a segunda para sentir a terra, a terceira no encontro com uma mulher chinesa.

A escalada começa em Tai’an, uma cidade no sopé da montanha, apenas a 167 metros de altitude. Pouca gente sabe que Tai’an é a terra natal de Jiang Qing, a radical “revolucionária”, quarta esposa de Mao Zedong e membro destacado do “bando dos quatro”, o grupo esquerdista que dominou parte da política chinesa durante a Revolução Cultural, entre 1966 e 1976. Não se sabe se Jiang Qing – que, condenada a prisão perpétua, acabou por se suicidar na prisão, em 1991 – alguma vez subiu Taishan, a montanha abrupta e mágica que se levanta diante de Tai’an, o lugar onde nasceu. Se não o fez, passou-lhe diante dos olhos, mas à distância, o afago das bênçãos dos deuses que povoam os espaços do vazio, entre penedias e névoas.

Vamos então, desde o grande templo de Tai’an, iniciar a escalada da montanha Tai, na longa caminhada pela Rota do Centro ao longo de 11 quilómetros que contemplam 7200 degraus, por trilhos ora suaves, ora pedregosos e empinados. Serão oito horas bem medidas de percurso com algumas paragens para descansar, enfiar umas sandes, beber umas garrafas de água e, sobretudo, estender os olhos pela paisagem que vai subindo e crescendo em redor conforme avançamos.

A ascensão vale todas as penas. Há bosques, cascatas e pontes suspensas, pinheiros solenes cravados na rocha, o canto dos pássaros, o deslizar dos perfumes da vegetação rara que cresce nas encostas, há pórticos e arcos, torreões e altares, pavilhões e pequenos templos, um ou outro abrigo para monges de eras passadas, tudo velho e gasto pelos séculos. Lá mais em cima, encontramos estelas e pedras lisas rasgadas pela mão do homem para nelas se gravarem caracteres, inscrições, orações, frases auspiciosas, poemas, relatos da ascensão a Taishan feita por imperadores e mais gente ilustre, tudo em escrita elaborada, requintada. De resto, os grandes rochedos e penhascos que sobressaem nos lugares mais elevados correspondem aos ossos da montanha. Alguns levam a marca depurada da passagem dos homens.[1]

Em Maio de 1980, a minha segunda subida a Taishan prolongou-se por dois dias, mais um dia inteiro para descer. Tive o tempo que quis para fruir a montanha e por ali fiquei a embeber em mim a singular majestade dos espaços da serrania. A meio da primeira tarde, cheguei a Zhongtian Men, a Segunda Porta do Centro do Céu, ainda longe dos cumes dos montes. Chamou por mim um hotelzinho aconchegado em restos restaurados de um antigo templo. Encontrei jantar e quarto, sem banho. Arranjaram-me uma habitação espaçosa, desafogada. Comi uma tijela de arroz, uns legumes cortados, uns fiapos de carne, bebi duas canecas de chá. E, exausto pela escalada, dormi esplendorosamente numa cama pequena, na companhia de mais 11 camas semelhantes onde se deitaram outros tantos chineses, esquecendo por completo os odores de gente suada e mal lavada – a começar por mim -, e o ressonar glorioso de uns desirmanados filhos do Império.

No dia seguinte, na subida final, acompanhei um grupo de anciãs, mulheres vindas do campo, algumas ainda com os pés pequeninos por terem sido enfaixados nos anos de juventude, a fim de corresponderem ao ideal de beleza outrora cobiçado pelos homens. Apoiadas em bastões ou bengalas de bambu, as velhas trepavam com dificuldade pelos caminhos, pelos degraus, mas iam decididas e determinadas. Perguntei a uma delas. Porquê subir Taishan? Resposta: “Kan tu”, para “ver a terra.” Subir para contemplar os meandros do mundo, também, sobretudo, para lá no alto, no  templo das Nuvens Azuis que tem mais de 2000 anos de idade, queimar incenso e pedir à deusa, à princesa da montanha, a protecção, as bênçãos para todos os seus, ascendentes e descendentes. Também longa vida porque acredita-se que quem sobe esta montanha chegará aos cem anos.

Conta o filósofo Mêncio (372 a.C. – 289 a.C.) que, no século VI a.C., quando Confúcio subiu Taishan entendeu finalmente a pequenez do mundo. Qin Shihuang, o primeiro imperador, unificador do Império do Meio – famoso pelos 7000 guerreiros de terracota que mandou enterrar em Xi’an para sua guarda  numa outra vida -, fez igualmente a ascensão no ano 219 a.C., não a pé, mas num palanquim levado às costas por quatro homens. No alto, mandou construir um altar para render homenagens ao Céu. Ao descer, já em Tai’an, deu ordens para se levantar um outro altar, agora para reverenciar a Terra. Tudo para o bom governo do Império, com o soberano unindo os poderes do Céu com os poderes da Terra, e beneficiando da sua protecção.

Du Fu (712-770), um dos maiores poetas dos 30 séculos de poesia chinesa, subiu Taishan e escreveu no ano de 737:

 

Eis a montanha das montanhas,

            um mar de verdura entre dois reinos,

            criação, esplendor da natureza,

            madrugada e entardecer, luz e sombra.

            De coração aberto para os terraços de nuvens,

            os olhos com as aves de regresso a casa.

            Ao alcançar o cume da montanha, um olhar:

todas as outras montanhas, tão pequenas!…

 

Hoje, trepar a montanha Tai é diferente do que acontecia há 30 ou 40 anos. Construiu-se uma estrada alcatroada que conduz à Segunda Porta do Centro do Céu e existe um teleférico que leva diariamente milhares e milhares de turistas chineses até ao topo da serra. Já quase não vemos os carregadores que transportavam até aos dois hotéis do cume, apoiados nos seus ombros rijos e calejados, todo o tipo de mercadorias penduradas nas duas extremidades de uma tensa vara de bambu, oscilando pelas escadarias montanha acima em passos rápidos. Era duro o labor desses homens, hoje em dia felizmente substituído pelos novos caminhos rasgados pelo progresso.

A montanha é enorme e resiste aos desconcertos dos homens. Basta sair dos caminhos e trilhos principais, e procurar a tranquilidade nos muitos recantos escondidos por entre a penedia. Em paz, descansar sob dois ou três pinheiros. Era o que faziam os poetas e pintores do passado que na solidão, no silêncio dos montes encontravam a serenidade para desdobrar, voltear palavras e emoções, para o deslizar colorido das tintas espalhando-se graças à sensibilidade no extremo do pincel.

Na minha terceira subida a Taishan – ainda e sempre a pé -, fiz os 500 quilómetros de comboio desde Pequim, a norte, até Tai’an. Depois, num iluminado mês de Outubro, na estação dos caminhos-de-ferro de Tai’an, foi a longa espera pelos comboios vindos de Xangai, 700 quilómetros a sul. Um deles, nas profundezas da noite, trazia Yu Ping, mulher de jade e seda, para subirmos ambos todas as montanhas, no renascer e renovar da vida. Um dia inteiro na ascensão à montanha Tai, a direito pela Rota do Centro, também por sinuosos atalhos, esconsos na vegetação. Debaixo do céu, um homem, uma mulher ao encontro da carícia dos deuses.

Ao nascer o sol, delicada, ondulante, Yu Ping veio ao meu encontro. Estendeu-me as mãos brancas e ofereceu-me de beber em taças de nuvens.



[1] Cento e dois anos após ter sido publicado é ainda notável o monumental trabalho de Edouard Chavannes, Le T’ai chan, Essai de monographie d’un culte chinois, Paris, Ernest Leroux Editeur, 1910. Tive a sorte de comprar esta obra num alfarrabista em Liulichang, Pequim, em 1981.