Quando as boxes eram “um carnaval”

Belmiro Aguiar, Rui Valente, Danilo Antunes, Herculano Dillon. Os nomes podem ser diferentes, mas a paixão, essa, é igual: o desporto motorizado entrou-lhes cedo no coração e de lá não saiu até hoje. A participação no Grande Prémio de Macau começou nos anos 1960 e para alguns ainda continua

 

59 GRANDE PREMIO DE MACAU

 

Texto Andreia Sofia Silva | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

 

BELMIRO AGUIAR

“Gosto mesmo muito de guiar”

É numa oficina escondida numa rua perdida, junto ao Canídromo, que encontramos o piloto Belmiro Aguiar. O seu carro está parado, pronto para mais uns arranjos que o levarão a mais uma corrida do Grande Prémio. O gosto pelo automobilismo está-lhe no sangue desde cedo, e este homem, que já foi mecânico, começou a correr em 1976. “No início era piloto de motas. Naquela altura participei nas corridas para iniciados, com motas de 250cc. Por sorte fui o segundo classificado. Era jovem e pensei, como se diz em chinês, que ‘não tinha nascido para correr, mas não era burro’”.

Foi assim que Belmiro Aguiar começou a competir, primeiro só com motas, depois também com carros de turismo. “Nas motas tive sempre boas classificações. Em 1983, na terceira vez em que participei em corridas de carros, na prova do Automóvel Clube de Portugal (ACP), fiquei em segundo. Mas fiquei muito contente porque naquela altura só três portugueses ficaram nos três primeiros lugares: primeiro foi o José Lobo, o segundo fui eu, o terceiro foi o João Severino.”

Quando Belmiro Aguiar atingiu os 40 anos, em 1998, achou que o perigo das duas rodas já espreitava, e nesse ano realizou a sua última corrida. A partir daí, apenas as quatro rodas passaram a fazer parte da sua vida como piloto. “Nunca aprendi numa escola de condução, aprendi sozinho. Gosto muito de conduzir, não sei se é por causa do meu apelido (risos). Gosto muito das máquinas, do cheiro do escape e do barulho dos escapes.”

Olhando para o passado, recorda tempos “muito felizes”, não só nas boxes, que ainda eram junto ao hotel Mandarim Oriental (hoje Grand Lapa), como fora delas. “Nos anos 1970 ou 1980 parecia um carnaval. A maior parte dos pilotos, dentro do circuito, no pódio ou nas boxes, andava nas conversas, eram todos muito amigos. Fomos muito felizes e eu gostava muito. Agora juntamo-nos mas só andamos a trocar palavras, há mais coisas em segredo. Como as vidas são desiguais, cumprimentamo-nos, perguntamos pelo carro e pela inspecção, e pronto. Já não há convívio.”

Questionado sobre o que ainda o faz participar nesta competição, Belmiro Aguiar usa a palavra adrenalina e diz que quer continuar sempre ligado ao Grande Prémio de Macau de uma maneira ou de outra. “Se eu deixar de correr a minha vida vai mudar, e não sei o que posso fazer mais. Não quero dizer que continue a ser jovem, mas no pensamento e nas sensações está tudo controlado. Se eu deixar de correr não vou pegar numa cana e começar a pescar. Não vou.”

 

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RUI VALENTE

“Desde miúdo que tenho paixão pelos carros”

“Morava num sítio onde os carros que vinham de Hong Kong desembarcavam nas oficinas navais. O meu pai era mestre dos serviços da marinha e eu andava sempre por lá. Todos os anos via os carros e desde miúdo que tive uma paixão por eles.” É assim que Rui Valente recorda o momento em que o automobilismo começou a fazer parte do seu ADN.

Começou no karting com cerca de 15 anos, até que surgiu o Grande Prémio, em 1988.  “Só se concretizou quando eu comecei a trabalhar. Inicialmente a minha mãe estava contra, e ainda hoje ela não gosta. Depois ela soube pelos jornais, e já não havia nada a fazer.”

Nos últimos 25 anos em que foi piloto de carros de turismo, Rui Valente só fez uma pausa de seis anos por motivos pessoais. “Mas tive sempre muita vontade de regressar às corridas. É uma coisa que fica em nós.”

Logo no primeiro ano em que correu ficou em segundo lugar, até que entrou na Corrida da Guia, hoje prova de WTCC. Isso durou até 2002, ano em que “desistiu”. Chegou a correr também na Taça Macau. “A possibilidade de acabar nos três primeiros da Taça Macau era maior. A minha melhor classificação na Corrida da Guia foi o sétimo lugar, na geral, em 1993.”

Rui Valente deixou a função pública e conseguiu montar duas oficinas, juntamente com um stand de venda de automóveis. Vai continuar a ser piloto até que “chegue à conclusão que já não está lá a fazer nada”, apesar de considerar que “ultimamente as coisas têm mudado muito”. “Vai haver alteração das regras e normas, somos obrigados a trazer carros novos, movidos a turbo, e isso implica fazer mais investimentos. Sempre que houver possibilidades, corro na Ásia, mas tenho de pensar na possibilidade de deixar de fazer Macau.”

Rui Valente sente que hoje “o desporto motorizado em Macau está a parar”, porque “não há uma nova geração de pilotos locais”. Panorama bem diferente de quando começou. “Sou do tempo em que nos primeiros anos de existência do Automóvel Clube de Macau íamos com os nossos carros, sem as matrículas, para Coloane. A estrada entre o istmo e o alto de Ká-Ho era vedada em conjunto com a polícia de trânsito, e fazíamos testes em grupos de dois. Depois saíamos de lá às oito da manhã e parávamos os carros na Taipa para tomar um café. Uma coisa que hoje é impossível, porque nem a polícia nos deixa andar com os carros na cidade.”

Apesar das mudanças, Rui Valente diz que ainda “gosta de correr em Macau”. “A cidade transforma-se, parece que o circo veio para a cidade. Conhecemo-nos quase todos uns aos outros e para mim isso é que faz a chama do Grande Prémio. Já estou numa fase em que participo por participar, porque gosto, não tenho que provar nada a ninguém.”

 

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DANILO ANTUNES

“Nos anos 80 eram todos amigos”

 

Para falarmos da participação de Danilo Antunes teremos de deixar o ano do Jubileu de Diamante e recuar à data em que o Grande Prémio comemorava apenas o 29.º aniversário. Danilo tinha então 20 anos e meteu-se à séria na prova de carros de turismo, já depois de ter passado pelo ciclismo.

“Em 1982 tive a competição da ACP e fiquei em segundo lugar. Em 1983 comecei a correr no Circuito da Guia, onde era impossível competir com os carros de fábrica. A Corrida da Guia era a mais importante e os carros tinham de ter muitas alterações. Eu tinha um Toyota que não estava preparado.”

Depois veio o BMW. “Em 1984 fiquei em segundo lugar na minha classe. Depois disso fui correr com um turbo e consegui o troféu para o melhor piloto de Macau, em 1987.”

Orgulho? Mais ou menos. “Em poucas participações que tive tenho mais troféus do que participações. Penso que das quatro vezes em que participei levei seis troféus. Foi uma coisa boa, e única. É um recorde que ninguém me tira, porque um bom corredor que vai para competições tem sempre o azar de um pneu rebentar ou de ter um acidente.”

Apesar de ter terminado todas as provas, Danilo Antunes chegou a ter a vida em risco em 1983, quando ainda se faziam os testes à revelia das autoridades. “O meu carro caiu da montanha abaixo e foi bater noutro carro, também conduzido por um piloto macaense. Foi um milagre não ter morrido. O carro dele salvou a minha vida. Estavam lá centenas de pessoas e aquilo era uma festa, estavam lá todos para ver os treinos nocturnos e ilegais. Hoje é impossível acontecerem essas coisas.”

O piloto, que chegou a ser modelo em Hong Kong, recorda a época em que a profissionalização não era palavra de ordem. “Em 1982, 1983, os carros eram muito limitados, e as pessoas usavam os carros que também conduziam nas estradas, e só metiam uns pneus novos. Depois não havia tantas câmaras e as pessoas podiam puxar pela velocidade. Naquela altura era possível fazer treinos no circuito, hoje é impossível por causa do trânsito”, recorda. “Nos anos 1980 éramos todos amigos e não havia grandes rivais. Muitas vezes à noite, antes das corridas, as pessoas davam voltas em grupo até Coloane. Tive muitas experiências dessas”, recorda.

 

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HERCULANO DILLON

“Em 1961 meti-me na primeira corrida”

Quem passa diariamente pela Praia Grande decerto já se cruzou com Herculano Dillon sentado em cima de uma mota, enquanto conversa com quem passa na rua. Dillon é hoje proprietário do restaurante Lagoa Azul, mas a paixão pelos tachos não é a única da sua vida: as motas estão lá desde sempre.

“Tive a minha primeira mota quando tinha 14 anos, dada pelo meu irmão. Mas antes disso já andava de mota sem carta e fui preso aos 11 anos (risos).” A presença no Grande Prémio seria inevitável. “Em 1961 meti-me na primeira corrida ainda sem carta de motas, e tirei só uma carta de condução para as corridas, que tinha as categorias para os pilotos principiantes e consagrados. Foram duas semanas de corridas, e corremos com muitas equipas estrangeiras. A mota pegava de empurrão e corria assim, era muito giro na altura.”

Desde aí que a paixão das motas não o largou. Ainda correu com carros durante três anos, mas a sensação não era a mesma. “Mostrei alguma coisa às pessoas e os meus amigos mais velhos começaram a emprestar-me as suas motas para eu correr. Uns davam dinheiro, outros motas. Eu era estudante e não tinha dinheiro para essas coisas.”

Herculano Dillon recorda o tempo em que “não havia mecânicos a sério em Macau” e onde as máquinas eram afinadas entre amigos. “Entre a malta que brincava, houve alguns que foram correr para o estrangeiro. Muitos acabavam numa posição dentro dos dez, e já era muito bom.”

Dillon chegou a correr, no início dos anos 1990, em Hong Kong e até no Japão, mas houve uma altura em que decidiu parar. “Ausentei-me de Macau e a vida também não me permitia isso. Competi dos 16 até aos 19 anos. Só voltei a competir de novo nos anos 1990, com mais de 30 anos.”

Desses tempos recorda “histórias feias” de acidentes, mas, sobretudo, de “camaradagem”, apesar de sempre ter havido “mais ou menos rivalidade”. “Eram corridas feitas a dinheiro. Entre nós não apostávamos, mas os pilotos de Hong Kong apostavam entre eles. Vinham com bons automóveis e bons mecânicos.

Hoje a paixão pelo desporto motorizado ainda lhe consome grande parte dos dias, e se não fosse a idade, ainda competia. “Tive no kartódromo e perguntei se me davam autorização para correr, mas dizem que a FIA não dá licença para motas depois dos 60 anos.”

Nas boxes do Grande Prémio ainda é costume verem-no por lá. “Gosto de ver e dou assistência no que puder aos meus amigos. Vou mesmo lá dentro e dou ajuda a pessoal como o Sérgio Lacerda ou o João Fernandes, e depois tenho uns amigos chineses novos também.”

 

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