Jorge Álvares: Visto pelos historiadores chineses

Os académicos consideram Jorge Álvares uma figura importante que assinalou o início das relações entre o Oriente e o Ocidente. Já a generalidade da população chinesa de Macau apenas conhece a estátua do mercador português, mas desconhece os seus feitos

 

Jorge Alvares

 

Texto Luciana Leitão e Cecília Lin | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Nos meios académicos, Jorge Álvares, o primeiro ocidental a chegar à China por mar há 500 anos, é amplamente estudado por ter contribuído para o início das relações entre o Oriente e o Ocidente. Já a comunidade chinesa do território pouco conhece dele, além da estátua que se encontra na Avenida da Praia Grande, em Macau, e das breves referências nos livros de História.

O professor assistente de História na Universidade de Macau, Vincent Ho, concorda que o mercador português assume uma grande importância no arranque das boas relações entre os dois povos. “Jorge Álvares é o primeiro navegador português a alcançar a costa chinesa e inicia os contactos de quase cinco séculos entre os chineses e portugueses.” Enquanto primeiro português a chegar à China, actuando em representação de Afonso de Albuquerque, então governador da Índia Portuguesa, o académico destaca que a sua visita à China, em 1513, favoreceu negócios em Tamão e na Ilha de Sangchuan (Sanchoão).

E, apesar de nunca ter chegado a pisar Macau, muitos académicos acreditam que foi o trabalho por ele desenvolvido de aproximação dos povos que levou à fundação de Macau como entreposto. Christina Miu Bing Cheng, no livro Macau: A Cultural Janus, vai ainda mais longe e defende que foi ele que abriu caminho a jesuítas influentes como Matteo Ricci, Francis Xavier e Ignatius Loyola.

Por seu turno, o historiador Wu Zhiliang afirma que apesar de o nome do mercador ser sobejamente conhecido entre os académicos não o é entre a comunidade chinesa. “É uma referência [para os académicos] para as relações com os chineses, porque foi o primeiro ocidental a chegar ao Delta do Rio das Pérolas.”

Nas aulas de História de Macau, o nome de Jorge Álvares surge quando se mencionam as relações sino-ocidentais, mas é “uma referência neutra”, sem conotações positivas ou negativas. “No ano tal chegou Jorge Álvares ao Delta do Rio das Pérolas, foi o primeiro ocidental a chegar à costa da China. Não há mais comentários”, explica Wu Zhiliang.

Nos manuais escolares do Interior da China o nome do português nem figura. “Pelo que sei, até agora, o nome de Jorge Álvares não consta dos registos chineses”, aponta o historiador Huang Qinghua, autor de uma História das Relações Sino-Portuguesas.

 

A viagem

Antes de partir para a China, Jorge Álvares era um oficial júnior que acompanhou Afonso de Albuquerque na sua viagem a Malaca, em 1511. Lá, trabalhou como tesoureiro. Segundo se lê no livro de Christina Miu Bing Cheng, após conquistar a estima dos oficiais seniores, acabou por ser destacado pelo governador da Índia, Afonso de Albuquerque, para representá-lo na viagem até à China, na qualidade de oficial e capitão de um dos barcos. Entre os motivos que lhe garantiram tal oportunidade encontrava-se a sua personalidade “amigável” e a facilidade no trato com os comerciantes chineses. Assim, acabou por chegar à China, acompanhado do filho Duarte Coelho, que serviu de escrivão durante o périplo.

A China fazia então parte de um objectivo estratégico do povo lusitano de definir as suas rotas comerciais. “Na era dos Descobrimentos, os portugueses consideravam o comércio asiático como o mais rentável”, lê-se na obra Macau: A Cultural Janus. Assim, a viagem tinha o objectivo de prospecção de mercado. Jorge Álvares tinha de apurar questões relativas ao comércio de mercadorias, mas também ao potencial militar do gigante asiático, bem como a aparência física dos seus habitantes, a estrutura política e organizacional, religião, ritos locais e geografia.

No barco de Jorge Álvares, vinham também alguns produtos como especiarias que faziam parte do comércio português na região asiática, além de sedas, porcelana, pérolas, enxofre e salitre. O objectivo era usá-los como moeda de troca ou pagar tributos ao rei. Partindo de Malaca, Jorge Álvares acabou por chegar a uma ilha no Delta do Rio das Pérolas, conhecida em cantonês por Lintin, que é traduzida para português como “Ilha Solitária”.

 

O colonialismo

As relações da altura de Jorge Álvares entre os portugueses e os chineses eram amigáveis e puramente comerciais. “Quando, em 1511, os Portugueses conquistaram Malaca, as boas relações entre os comerciantes chineses e os novos conquistadores continuaram”, afirma Christina Miu Bing Cheng.

Na China, porém, estava-se em plena dinastia Ming (1368-1644), que impunha uma política isolacionista austera. Assim, durante a era Ming recorria-se ao sistema tributário para dividir os estrangeiros entre aqueles que se encontravam na lista tributária e os que ali não figuravam. Portugal não figurava na tal lista, gerando alguma suspeição quando o mercador desembarcou em Lintin.

Mesmo assim, Wu Zhiliang declara que nem sequer faz sentido que se refiram a ele como o precursor do colonialismo português, já que na altura tal conceito nem existia. “De facto, houve confrontos entre a frota portuguesa e a armada chinesa, mas ele, Jorge Álvares, penso que não é conotado com o colonialismo”, declara.

Conforme descreve Wu Zhiliang, a chegada dos portugueses à China foi apenas vista com alguma “surpresa”, já que nessa altura ainda se desconhecia a existência de “uma nação tão forte”. Além disso, foi a primeira vez que se cruzaram com ocidentais “de nariz grande e olhos azuis”.

Já o professor e coordenador do departamento de Sociologia da Universidade de Macau, Hao Zhidong, acrescenta que Jorge Álvares merece um reflexão mais profunda sobre o impacto do colonialismo na China, que, por ora, ainda não foi feita no território.

 

O legado

No fim da sua primeira missão, entre Abril e Maio de 1514, Jorge Álvares deixou Lintin com valiosos produtos e abriu a possibilidade de outros ocidentais lá voltarem. Regressou a Malaca, mas acabou por estar sempre ligado à China, já que em 1517 partiu com Fernão Peres de Andrade para Cantão e o primeiro enviado português à China, Tomé Pires, que iria estabelecer uma oficial relação comercial com o gigante asiático.

Veio a acompanhar novamente, dois anos depois, como oficial, Fernão Peres de Andrade em 1519, mas, desta vez, a missão não foi bem sucedida. “O comportamento de Andrade e o dos seus homens levaram os chineses a acreditar nos rumores que tinham ouvido da forma feroz e predatória como os portugueses tinham tratado os mouros e os malaios em Malaca”, diz a historiadora Christina Miu Bing Cheng. Graças a tais comportamentos, foram precisos muitos anos até que os chineses pudessem confiar nos portugueses.

Assim, antes que as negociações fossem concluídas, Peres foi expulso de Pequim e quando chegou a Cantão todos os outros elementos da embaixada foram tornados prisioneiros. Porém, Jorge Álvares já havia voltado para Malaca antes que os acontecimentos tivessem este desfecho, nunca sendo confundindo com Tomé Pires e Fernão Peres de Andrade.

Na sua última viagem a Lintin, feita para reparar as relações com a China, acabou por vir a perecer. Foi enterrado junto ao padrão que ele próprio havia erigido oito anos antes.

 

A estátua em Macau

Se hoje em dia Jorge Álvares é visto pela comunidade como uma figura neutra e conhecido apenas pela sua estátua, nem sempre foi assim. O nome de Jorge Álvares acabou por estar envolvido num dos momentos mais importantes da história de Macau, o incidente 1-2-3.

Erigida em Macau pelo escultor português Euclides Vaz, a estátua situava-se no cruzamento entre a Avenida Dr. Mário Soares e a Avenida da Praia Grande. No memorial, figura uma réplica do seu padrão nas suas costas, enquanto o braço direito está erguido da direcção de Lintin.

Dada a conhecer a 16 de Setembro de 1954, a 3 de Dezembro de 1966, durante os incidentes conhecidos por 1-2-3, um motim levantado pelos residentes chineses pró-comunistas no dia 3 de Dezembro de 1966 para protestar contra o Governo de Macau, a estátua foi atacada e destruída por jovens revoltados.

Posteriormente à restauração da ordem pública, a estátua veio a ser reparada. Ainda hoje continua erguida, apesar de a localização ser ligeiramente diferente, agora na curva da Avenida da Praia Grande.

 

Terra de ninguém

Em pleno Delta do Rio das Pérolas, a norte de Macau, Neilingding – adjacente ao município de Zhuhai – é vista pela maioria dos académicos como o local onde terá desembarcado o mercador português Jorge Álvares e é referida em documentos históricos como a ilha de Lintin. Grande parte da área é ocupada, desde 1984, por uma reserva natural, com mais de 1200 macacos. Além de cobras venenosas, galinhas e cabras,  Neiglingding tem uma densa vegetação com mais de 600 espécies de plantas. À fauna e flora juntam-se os poucos habitantes que não são mais do que alguns trabalhadores migrantes. Neilingding é pouco conhecida até entre os próprios chineses, frequentemente confundida com a vizinha Wailingding. Porém, o potencial turístico e os ricos recursos naturais põem-na no centro de uma disputa entre Shenzhen e Zhuhai.

 

Todos os nomes

Nem todos concordam com a tese de que Jorge Álvares chegou à ilha de Tamão, identificada como a actual ilha de Neilingding. Por exemplo, os historiadores Wu Zhiliang e Jin Guo Ping defendem que a primeira terra onde aportaram os portugueses na China é perto do novo aeroporto internacional de Hong Kong, Chep Lap Kok. 

Citando fontes náuticas, o duo afirma que Tamão onde chegou Jorge Álvares foi o canal e o porto de Tonqiong, entre as ilhas de Chep Lap Kok e de Lantau. Referem que se trata de um braço do mar paralelo ao Canal de Tunmen, do tal deriva o topónimo português Tamão.

No livro Revisitar os primórdios de Macau: Para uma nova abordagem da História, os historiadores chineses escrevem que Jorge Álvares chegou primeiro a Tamão, e que a localização definitiva de tal ilha continua “longe de ser satisfatória”. Citando o sinólogo japonês Fujita Toyohachi, os investigadores defendem que a inicial identificação do sueco Anders Ljungsetdt, que propôs Sangchuan (Sanchoão) como correspondente a Tamão, está errada e que Tamão é Tunmen.

Por seu turno, o jesuíta Mauro Fan Hao defendeu que Tamão se situa na província de Zhejiang, algo que a dupla rejeita, por achar que a identificação se baseou apenas na homofonia entre Tamão e Damaoshan.

Nos estudos ocidentais, normalmente a identificação mais corrente é Lingding, lançada por José Maria Braga, no fim da década de 1930. O livro de Wu Zhiliang e Jin Guo Ping refere que existem ainda hoje duas ilhas Lingding: “A Lingding de José Maria Braga é a Xiaolingding (Pequena Ilha Solitária) ou Neilingding (Ilha Solitária Interior)”. Porém, segundo os autores, não há qualquer referência sobre a presença portuguesa em Xiaolingding entre os manuais chineses.

 

Português para negócios

Há 500 anos, chegava um português pela primeira vez à China e dava-se então início a uma relação duradoura. Hoje em dia, segundo os dados da Direcção dos Serviços de Educação e Juventude de Macau (DSEJ), mais de 5000 alunos da RAEM estão a aprender português como disciplina regular ou extracurricular.

A língua portuguesa também integra a oferta do programa de formação contínua promovido pelo Governo, contando-se 77 cursos de português com um total de 998 alunos em 2012. Além de iniciativas de curta duração, como o programa dos cursos de verão, a língua de Camões é também promovida quando os estudos superiores são prosseguidos em Portugal.

Actualmente, o número de alunos do Instituto Português do Oriente ascende a 1600 o que, de acordo com o director João Laurentino Neves, “confirma a tendência crescente”. Além disso, considerando que tal crescimento se reflecte ao nível dos alunos nos cursos gerais e nos cursos específicos, o dirigente afirma que tal significa que “há uma aposta das entidades (sobretudo públicas) na formação linguística dos seus quadros, no que à língua portuguesa diz respeito”.

Não considerando negativa nem limitativa a associação do interesse pelo português à rota dos negócios, João Laurentino Neves afirma que “constitui um desígnio para a afirmação internacional da língua portuguesa pelo que importa conferir-lhe toda a importância e todo o apoio”.

O director do recém-criado Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau, Carlos André, acredita que o interesse pelo português vai além dos negócios. “Uma língua vive do uso. Quando deixa de ser usada, continua a ser uma língua de cultura, mas perde o seu lugar entre as línguas faladas. A Tradução e o Direito são importantes; mas não concordo que a apetência pelo português se resuma a isso. Há a economia, a política e há, também, a cultura.”