Na mansão do príncipe Gong

A sudoeste da pitoresca zona de Shichahai em Pequim, há uma longa e tranquila rua encoberta por árvores, onde se localiza o Gongwangfu. Trata-se do conjunto melhor preservado de casas de príncipes da dinastia Qing. As obras de reparação levaram 31 meses e custaram cerca de 200 milhões de yuans. São mais de 230 anos de história a explorar

 

Lago

 

Texto António Graça de Abreu

 

Nos meus primeiros quatro anos de vida em Pequim, de 1977 a 1981, tive uma bicicleta a pedal, grande, verde, pesadona mas funcional. Tal como os seis milhões de chineses então habitantes do burgo, contava com duas excelentes rodas para pedalar por dentro da imensa, e na altura calma, capital da China. Entrava no infindável pelotão de velocípedes – em 1978 existiam três milhões de bicicletas em Pequim -, e deixava-me rolar na companhia dessa vasta mole humana que dia e noite circulava por dez mil ruas e avenidas.

Deixava Haidian, o grande bairro da cidade onde então vivia, e partia à descoberta dos lugares de que ainda hoje mais gosto, a velhíssima Pequim, os becos, as ruelas compridas entre os houtong, os vetustos quarteirões de casas baixas com pátios quadrados no interior e muros cinzentos a tudo rodear.

No final dos anos 1970 começavam a surgir, timidamente, os primeiros arranha-céus que mudariam o horizonte da capital mas estes bairros, os houtong mantinham – mantêm, por bem, até hoje, pese embora alguma destruição – toda a cor dos séculos, a pequena arquitectura, os cheiros, os quotidianos da Pequim imperial das dinastias Ming e Qing (1368 a 1911), como pude comprovar uma vez mais no Verão de 2011.

Na parte norte da capital, na cidade tártara ou manchu onde os carros não entravam, nem entram, havia sempre recantos a descobrir. Eram as vielas em redor do Gulou, as torres do Tambor e do Sino, os Shichahai, os pequenos lagos a norte do parque Beihai onde então, no Verão de 1980, a gente dos houtong fazia praia e tomava banho, e que hoje se encontram rodeados de restaurantes, discotecas e de animada vida nocturna. Por detrás dos muros altos, bordejando as ruas pequenas, adivinhavam-se residências de gente importante do Partido Comunista, Guo Moruo, o intelectual famoso, Soong Qiling, a viúva de Sun Yat-sen, Hua Guofeng, o breve sucessor de Mao Zedong, afastado do poder por Deng Xiaoping.

Apercebi-me nessa altura da existência, logo ali quase na margem dos lagos, da grande mansão do príncipe Gong e fixei o lugar. Estava fechada, durante a Revolução Cultural foi parcialmente aproveitada para fábrica de aparelhos de ar condicionado. Não era possível visitá-la mas adivinhavam-se grandes obras para breve e lá dentro sabia-se da existência de mil maravilhas. Com as aberturas registadas na sociedade chinesa, com o fim da catalogação pejorativa de muitos monumentos antigos até então associados a um passado considerado reaccionário e feudal, a mansão do príncipe Gong acabou por ser  impecavelmente reconstruída e restaurada.

 

A descoberta

Numa noite de Verão de 1995 – longe iam os tempos da minha bicicleta pedalando pelo meio dos houtong -, o programa era ópera de Pequim a ter lugar exactamente no teatrinho de finais do século XVIII da mansão do príncipe Gong. Que fascínios! Os tons verdes, creme, dourados e rubros da decoração dos espaços interiores, as lanternas, a música estridente e sincopada, o canto, a voz de falsete dos actores, as máscaras, as pinturas, os trajes coloridos de seda e brocado, os saltos acrobáticos, e três excertos de óperas, as aventuras de Sun Wukong, o macaco que provocava distúrbios no céu, a formosa menina da Bracelete de Jade, e a Fada das Flores salpicando a terra com pétalas. Do outro lado do teatro, junto ao lago e aos pavilhões havia holofotes, gruas, câmaras de cinema suspensas no ar e sobre tripés. Toda uma equipa de produção e realização de cinema trabalhava, filmando, com actores impecavelmente maquilhados e vestidos ao modo do século XVIII. O cenário natural era magnificente, o lago bordado a folhas e flores de lótus, as rochas perfuradas, os corredores de madeira pintada, os jardins debruados a bambu, o Pátio das Peónias, o pavilhão da Neve Perfumada. Mais um extravagante jogo de luzes e de sombras. Eu saltitava entre a ópera de Pequim e o cinema, as filmagens, com os actores, de um e de outro lado, reinventando magia em cenários falsos e reais.

Solitário entre os encantos da ópera e as fantasias do cinema, passeei-me depois sereno pela mansão do príncipe Gong. A lua a faiscar no céu e o teatro do mundo, aqui, no meu ser sensível, e diante dos olhos. Uma saudação ao príncipe. Em breve, pelos caminhos do nada, pelos atalhos do Céu, viajarei ao seu encontro.

Mas afinal quem foi o príncipe Gong? Sexto filho do imperador Dao Guang (1782-1850), nasceu em Pequim, no actual Palácio de Verão no ano de 1832. Inteligente, estudioso e determinado, irmão do imperador Xian Feng, sucessor de Dao Guang, estavam-lhe destinados importantes cargos governativos. Desempenhou, a partir de 1861, um posto algo semelhante ao de ministro dos Negócios Estrangeiros e, até morrer em 1898, era tido como um dos mais hábeis negociadores e governantes do império.

 

O grande secretário

A sua mansão, em Pequim, tem uma longa história, que começa em He Shen, o gelao, o grande secretário imperial que em 1777, nos finais do reinado do imperador Qianlong (1736-1796), a mandou construir. He Shen, primeiro proprietário deste esplendoroso palácio, é uma das figuras mais curiosas da história moderna do Império do Meio. Em 1775, Qianlong havia descoberto entre os pequenos oficiais da sua guarda pessoal o jovem He Shen, então com 25 anos. O imperador perfazia 75 anos. Uma paixão súbita inflamou o coração ainda pujante do soberano chinês. Qianlong adivinhou em He Shen uma reencarnação da primeira mulher que partilhara o seu leito, uma concubina de seu pai chamada Xiangfei, a Concubina Perfumada, que decidira iniciar o rapaz nos segredos de alcova, conceder excelsos prazeres ao filho mais simpático e brilhante do imperador Yongzheng. Descoberta a relação incestuosa – o jovem Qianlong tinha por amante uma concubina que pertencia ao pai -, a imperatriz-mãe sugeriu a Xiangfei que se suicidasse. Dias depois a bela concubina enforcava-se com um laço de seda.

Qianlong jamais esqueceu a companheira da sua adolescência que lhe desvendara, pela primeira vez, sublimes carícias. Reencontrava-a agora reencarnada na figura de He Shen.

Rapidamente o oficial da guarda imperial foi promovido a general das tropas manchus, comandante da guarnição de Pequim, ministro dos Assuntos Civis, vice-ministro das Finanças com a responsabilidade de controlar as taxas e impostos a pagar por muitas das mercadorias que circulavam no império. Logo depois era gelao, um dos quatro grandes secretários, na prática política quotidiana a desempenhar funções de primeiro-ministro.

Como costuma acontecer nestas situações, o relacionamento sexual entre o imperador e o favorito sempre careceu de comprovação, mas era voz comum na época e tem sido referido por quase todos os historiadores chineses e ocidentais. Nos últimos 15 anos de vida de Qianlong, com o velho soberano debilitado pela avançada idade, He Shen tornou-se, mais do que “os olhos e ouvidos” do imperador, o verdadeiro centro do poder.

Venal, corrupto e desonesto, He Shen era senhor de uma fortuna fabulosa que ultrapassava a do erário imperial. Durante 25 anos, a gestão dos negócios da corte, as promoções, as nomeações para os cargos mais importantes do aparelho de Estado, a gestão dos exércitos haviam passado pelas mãos e pela cabeça do grande secretário. E tudo tinha um preço, elevado. Foi com esse dinheiro que He Shen, logo nos primeiros anos de poder, mandou construir o seu sumptuoso palácio, hoje conhecido apenas como mansão do príncipe Gong.

O imperador Qianlong faleceu a 7 de Fevereiro de 1799. Cinco dias depois da morte do pai, o imperador Jia Qing mandou prender He Shen. “Benevolente e justo”, considerando que o império estava de luto, concedeu ao grande secretário o especial privilégio de se suicidar.

Toda a corte sabia que o crime de alta traição de que He Shen era acusado tinha a ver com o facto de o favorito do falecido monarca haver acumulado uma enorme fortuna, dinheiro que o imperador precisava agora para si e para revigorar a economia. Não por acaso, nesta altura foi inventado um oportuno e esclarecedor trocadilho He Shen die dao, Jia Qing chi bao, isto é,“He Shen cai, Jia Qing enche-se.”

 

Riqueza exuberante

É difícil imaginar o que são 60 milhões de onças de prata, 27 milhões de onças de ouro, 9 mil ceptros em ouro pesando cada um quarenta e oito onças, 3900 ceptros em jade, 18 estátuas de discípulos de Buda em ouro maciço, um serviço de mesa em ouro com 4283 peças, 144 sofás decorados a ouro e laca, 744 rubis, 4283 safiras, 10 árvores de coral, 140 relógios de ouro, 38 relógios de parede europeus cobertos de pedras preciosas, 1907 peles de raposa, 67 mil outras peles, 28 mil peças de joalharia de diferentes dimensões, etc., etc. São alguns dos números recenseados após a prisão de He Shen, no primeiro inventário feito aos seus bens. He Shen possuía tudo isto e muito mais, uma fortuna avaliada em 900 milhões de taéis. Cada tael são 37,5 gramas de prata.

A riqueza colossal de He Shen corresponde a uma imagem depurada da abastança, luxo e privilégios dos grandes do império. Entendê-la-emos melhor se considerarmos a quase miséria em que vivia a esmagadora maioria do povo, se pensarmos no mundo chinês – para citar Fernand Braudel – como “uma sociedade onde a pobreza era latente, omnipresente.”

Hoje quem se lembra de He Shen, ou sabe sequer da sua existência quando visita a mansão do príncipe Gong? Eu próprio só há meia dúzia de anos soube mais sobre a história deste excelente palácio. Tenho, no entanto, comprovado que é um lugar com um bom feng shui, associado à boa sorte e à fortuna. Lá dentro existe um pequeno lago com forma de morcego e também um pavilhão do Morcego. Ora morcego em chinês diz-se 蝠 que é homófono de 福 , que significa “felicidade, fortuna”. Na mansão do príncipe Gong, no pavilhão do Morcego, no antigo palácio do riquíssimo He Shen vendem-se bem cópias do ideograma fu福, na caligrafia da imperador Kangxi (1654-1722).

Mas eu gosto mais do conjunto de pavilhões, telhados de porcelana, torreões, corredores, varandins, balaustradas, escadarias de mármore, pátios, jardins, pontes, lagos, árvores e flores, da harmonia dos espaços, gosto mais da mansão do príncipe Gong quase vazia, da serena solenidade do lugar.