Chá Gordo | Uma ‘pitada’ de modernidade na tradicional mesa macaense

Ritual enraizado no seio da comunidade macaense, o Chá Gordo figura como um dos mais apreciados costumes de uma cultura de sabores de distintas influências. Outrora servido como tradicional lanche festivo em casa de abastadas famílias, hoje conquista um lugar à mesa de modernos restaurantes.

Chá Gordo

 

Texto Diana do Mar | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O Chá Gordo faz parte da memória dos que abraçam a comunidade macaense seja por origem ou simples afinidade. Mesas fartas, toalhas rendadas e famílias aprumadas a pretexto de um momento festivo compõem a imagética, num passado não muito longínquo, das salas de estar de uma casa macaense. Hoje o Chá Gordo serve-se em modernos restaurantes para deleite de quem tem saudades e para surpresa de quem vai à descoberta de uma tradição que deixou de ser exclusiva.

“É como reviver a Macau antiga. Queríamos fazer algo sobre Macau e achamos isto realmente representativo”, explica Filipe Ramos que, com Miguel João de Souza, ‘cozinhou’ o conceito de recriar um Chá Gordo no restaurante Feast, do Hotel Sheraton, onde ambos trabalham. Do menu constam mais de 30 pratos, incluindo sobremesas, servidos em formato buffet, todos os fins-de-semana, entre as 15h30 e as 17h30, desde o princípio de Abril.

“A ideia era reavivar algo esquecido, trazer de novo, porque se não o fizermos ninguém mais o fará”, realçam os mentores, ambos macaenses. A definição do cardápio foi precedida, porém, por um trabalho de pesquisa, encetado em busca de receitas antigas de família, verdadeiros segredos para muitos clãs.

Os primeiros tempos, “sem grande publicidade”, afirmaram-se como um “teste” à adesão à iniciativa hoje sem data para acabar. “Queríamos ver primeiro. Inicialmente, eram mais turistas, mas sabíamos que os locais haviam de vir e hoje há cada vez mais. Eles gostam sobretudo porque não encontram com facilidade um Chá Gordo em Macau. Há até pratos que não se encontram em mais parte nenhuma porque algumas das receitas têm muito tempo”, sublinha Filipe Ramos, director do F&B, cuja família foi das primeiras a provar as iguarias.

Dos macaenses que por ali passam, a maioria de uma geração mais velha, espera-se a crítica, enquanto dos turistas, sobretudo chineses, o despertar da curiosidade. “Se os macaenses não gostarem vão ser os primeiros a dizer e isso é bom porque vamos aprendendo durante o percurso”, diz Ramos. Souza complementa: “Alguns turistas não entendem [o conceito] e somos chamados a explicar porque, às vezes, não conseguem diferenciar a gastronomia portuguesa da macaense”.

A adesão tem agradado, embora “se possa, naturalmente, fazer melhor”. Desde o arranque, o Chá Gordo tem atraído, aos sábados e domingos, uma média de 160 pessoas, embora o espaço tenha capacidade para mais do dobro, segundo dados do director do F&B e do chefe Souza, aliás, único macaense numa cozinha com cerca de meia centena de funcionários.

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Entre pratos

Reflexo da própria comunidade, o Chá Gordo apresenta-se com uma diversidade de pratos, consoante quem os dispõe sobre a mesa, fruto de variadas receitas e de distintas combinações de ingredientes e modos de confecção. Mas, no menu, há uma espécie de lista “obrigatória”, explica a investigadora macaense Cecília Jorge, autora do livro À Mesa da Diáspora (2004), elencando, entre outros, o apabico, o chilicote e o lacassá, a bebinca de rábano, o cheese toast, a tosta de camarão e doces como o bolo Minino, a bebinca (de leite), coqueiras ou o saransurável.

A esmagadora maioria marca presença no buffet, onde o minchi e a chacha também se afiguram incontornáveis. Na última etapa do buffet os mais gulosos encontram também serradura, alua, ladu e baji, num circuito que se fecha com a maltose sandwich, um par de crackers ligadas com melaço de cana e espetadas num pau, na imagem característica de um doce de criança que outrora os vendilhões apregoavam nas ruas de Macau. Para beber, e seguindo a rota do tradicional, a principal sugestão, em tempo estival, passa por um xarope de figo.

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Origens e coordenadas

Independentemente de como se recria, “aquilo que se designa hoje por o Chá Gordo não é o que originalmente havia, ou como julgo que terá começado”, considera Cecília Jorge, ressalvando que o costume “não é tão antigo” como se poderá pensar. “Ainda estou à procura de indícios que me consigam confirmar isso, mas tenho para mim que é mais uma influência britânica, sobretudo dos residentes ingleses e americanos a partir de meados do século XIX, e talvez também por via das famílias macaenses de Hong Kong e das que vieram de Xangai e de Cantão.”

A investigadora dá como exemplo disso mesmo o facto do Chá Gordo decorrer habitualmente entre as cinco e as sete da tarde, a fazer recordar o chá inglês (das cinco) e de haver referências ao high-tea em relatos da época. Dentro da própria comunidade macaense anglófona lá fora tal designação ainda hoje é utilizada para descrevê-lo: um “chá muito mais rico”, em que se serve finger food, coisas que se petiscam à mão e em pé. A própria designação de muitos dos acepipes da gastronomia típica macaense, como o famoso minchi, de minced (picado), derivará de palavras inglesas, acrescenta a investigadora.

Nos tempos que correm o Chá Gordo surge com maior regularidade, até como montra da gastronomia macaense – inscrita na Lista do Património Cultural Imaterial de Macau em 2012 –, mas nem sempre assim foi. Na sua génese, era costume próprio das famílias de classe média-alta e observava a ocasião. “O Chá Gordo era sempre um lanche festivo, em que se reunia a família alargada, parentes próximos e afastados e amigos mais íntimos ou vizinhos, em torno de um aniversário, baptizado, noivado ou até da inauguração de um negócio ou o fim do curso, no regresso de um filho emigrado”, frisa Cecília Jorge. “Começava pelas cinco horas, mas não era raro alongar-se e abarcar a refeição seguinte, servindo-se pratos mais suculentos”.

O macaense “sempre apreciou o prazer da comida, em ambiente de convívio e não se envergonha de o afirmar. A sua alegria de viver está ligada ao estômago e à comida saborosa”, diz. “Aliás, talvez esteja nesse deleite a razão principal do facto de a nossa gastronomia ter conseguido sobreviver até aos nossos dias, quando tudo o resto se perdeu”, complementa.

É que ‘lanchar, lanchamos todos’, mas com a tamanha fartura que o Chá Gordo encerra desde logo no nome apenas em ocasiões especiais.

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O ABC do Chá Gordo

Os pratos que não faltam à mesa

As receitas divergem de família para família e conhecem diversas variantes. A descrição apresentada tem como base explicações da investigadora macaense Cecília Jorge e o próprio livro da autora intitulado À Mesa da Diáspora, publicado em 2004.

 

 

Minchi

Carne picada (de vaca, porco, ou ambas), com batata frita em cubinhos, arroz branco e ovo estrelado (facultativo)

 

Apabico

Bolinho de massa de arroz glutinoso cozido em vapor, recheado com um picadinho de carne de porco e vegetais de conserva. Serve-se com sutate (molho de soja) e chili missó (picante)

 

Chacha

De inspiração malaia, é uma espécie de sobremesa líquida que junta feijão encarnado, tapioca, inhame, coco, jagra e, em algumas receitas, sementes de feijão mungo (verde)

 

Chilicote

A massa é um meio-termo entre a massa tenra e o rissol, fazendo-se, quando pastelinho frito e crocante, com farinha de trigo. É cortada em meias luas e o recheio leva minchi de porco, picante ou não. Quando cozido em vapor, o chilicote é feito de farinha de arroz, banha e água, sendo o recheio carne picada com chalotas e chung-chói (vegetal de salmoura). Cozido em invólucros de folha de bananeira dá-se-lhe o nome de chilicote-folha

 

Lacassá

Massa de farinha de arroz, semelhante à aletria (que é de trigo). Serve-se em sopa (caldo) ou frita. A sopa de lacassá (com balichão e camarões pequenos) é tradicional na véspera de Natal. A versão frita leva apenas um achar (conserva acidulada) de gengibre adocicado e vermelho, ovos mexidos, cebolinho e, por vezes, chá-siu (carne de porco assada), tudo cortado em tiras muito fininhas. É acompanhado do balichão (à base de camarão minúsculo, louro, sal, cravinho, pimenta preta em grão e vinho) ou chili missó (molho picante feito de feijão de soja, sal e chilis)

 

Cheese toast

Pão de forma cortado em triângulos barrado com uma pasta de queijo ralado, manteiga, açúcar, ovos e leite condensado. Vai ao forno a gratinar

 

Bebinca de rábano (Lo-pac-cou)

Cozido em vapor, ao rábano (ou nabo), ralado em tiras finas, junta-se farinha de arroz, chouriço fumado ou presunto chinês e sementes de sésamo. Tem a aparência de uma massa desfiada de abóbora-gila e pode levar coentros a decorar. Na versão chinesa tem mais ingredientes, como camarão miúdo seco e cogumelos, surgindo em forma de pudim compacto que se pode depois aquecer em vapor ou cortar em talhadas para fritar. Serve-se com tempero de chili missó e sutate

 

Bolo Minino

De textura muito fofa, é como um pão-de-ló enriquecido com coco, farinha de feijão e açúcar pilé, levando também pinhões e amêndoas.

 

Bebinca de leite

Uma espécie de leite-creme com consistência de pudim, junta leite de coco, fécula de milho, ovos, açúcar e leite. Também pode ir ao forno a tostar.

 

Baji

Arroz pulu (glutinoso) cozido em santã (ou calda de coco) e açúcar, com aspecto translúcido, é servido em travessa. Existem variantes, sobretudo na diáspora, que incluem leite condensado

 

Coqueira

Descendente directo do pastel de coco, é mais pequeno e apresenta uma ‘casquinha’ feita em massa finíssima

 

Alua

Doce da quadra natalícia, de origem goesa, leva farinha de arroz pulu (glutinoso), amêndoas e pinhões, coco, jagra e manteiga. Conserva-se várias semanas, ao contrário do Ladu, feito de arroz pulu torrado e moído, pinhão, coco ralado e feijão torrado em pó

 

Genetes (ou bicho-bicho)

Biscoitos de fécula de milho, ovos e manteiga, com essência de baunilha. A designação inglesa cornstarch é a mais comum hoje em dia para um biscoito que é conhecido, quando bem feito, pela facilidade com que se desfaz na boca.

 

Saransurável

Com designação de origem malaia, trata-se de um bolo feito com leite de coco, cozido a vapor e recoberto com coco ralado e pó de feijão torrado.

 

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