Análise | Vizinhança distante

Os países independentes ou os territórios autónomos situam-se não só em espaços geográficos mas também em linhas de trânsito. A importância estratégica dessas entidades pode ser medida em termos vizinhanças e afastamentos em relação umas às outras. Contudo, num mundo moldável as verdadeiras proximidades e distâncias são construídas. Isto é, não são um dado estático: são uma variável estratégica.

 

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Texto Sandro Mendonça*

 

 

A globalização é líquida

O mundo não é simétrico. Cerca de 70 por cento do planeta é coberto por água. Mas cerca de 90 por cento do comércio mundial de mercadorias circula por via marítima.

Depois de muito esquecimento a água está de regresso como um elemento económico e estratégico de primeira importância. Porém, a água é mais que um recurso, é um meio que permite ligar recursos a usos: é um a infra-estrutura.

A presença neste elemento é um activo estratégico. E pode haver “escassez” ou “excesso” de acesso a ele.

 

O tabuleiro mundial é assimétrico

Existem 206 Estados listados pelas Nações-Unidas. E variam bastante em termos da sua relação com a auto-estrada da globalização que são os mares e os oceanos. Por exemplo, quase metade dos países do mundo são completamente cercados por água ou terra: 95 países ao todo.

Por um lado, temos países completamente cercados por terra. Quase 25 por cento dos países estão nesta condição: 48 Estados não têm costa marítima, nenhum deles lusófono. Exemplos são a República Checa na Europa, a Zâmbia em África, o Paraguai na América Latina, a Mongólia na Ásia. Em geral, embora com excepções como a Suíça, estes são países muitas vezes com uma inserção constrangida na economia-mundo. Ao todo representam apenas 11,4 por cento da superfície terrestre e 6,9 por cento da população.

Para cerca de 12 destes Estados, aliás, a situação ainda é mais vincada: dez Estados só têm fronteiras com um ou dois países (como o Nepal, com a China e a Índia) e dois são duplamente cercados por terra (caso do Uzbequistão, país cercados por países que eles próprios não têm acesso ao mar).

Por outro lado, para cerca de 47 países a água é tanta que os cerca por completo. Estes países são ilhas-nação (ou então ocupam parte de ilhas ou arquipélagos, 9 dos 47). Podem ter superfícies muito grandes (Austrália) ou muito pequenas (Cabo Verde). Varia muito também em termos de população (populosos como Cuba ou pouco habitados como Tuvalu). No seu conjunto explicam 9,9 por cento da população mundial e 9,4 por cento da superfície terrestre.

Alguns países arquipelágicos podem ser considerados ricos (Japão ou Nova Zelândia), mas muitos dos outros são países em desenvolvimento (São Tomé e Príncipe) ou mesmo por vezes considerados inviáveis (Nauru). Ou seja, “penúria de acesso” marítimo é um obstáculo ao desenvolvimento, mas “excesso de acesso” também pode ser uma barreira.

 

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A globalização é interconexão

Existem países entre continentes e entre oceanos. São países que estão nas passagens, no feixe dos intercâmbios. Cerca de um quarto de todos os países do mundo beneficiam de uma condição inter-oceânica ou inter-continental.

Existem países com acesso a mais que um mar ou oceano. Existem 25 países com este tipo de fronteiras marítimas. Por exemplo: no continente africano temos a África do Sul (Atlântico e Índico); na Ásia temos, por exemplo, a Indonésia (Índico e Pacífico); nas Américas, entre outros, o México (Pacífico e Atlântico).

Existe um conjunto de países que podem ser descritos como trans-continentais. Temos uns 8 países nestas condições. Exemplos são a Rússia, que cobre a plataforma continental euro-asiática, e também o Egipto, que liga a África à Ásia.

Contudo, podem ainda acrescentar-se a estes cerca de 20 outros países que possuem territórios descontínuos em outros continentes. Um caso especialmente curioso é o de Portugal. Neste caso a Madeira está, por um lado, associada ao continente africano e os Açores, por outro, têm duas ilhas (o Corvo e as Flores) que estão adstritas à placa tectónica Americana. Estas circunstâncias fazem de Portugal um caso raro de país tri-continental. Outra instância de um país a conseguir reclamar-se do mesmo é o Chile (América, Oceânia, Antárctida).

Pensar o mundo como uma interligação de fragmentos

Em resumo, apesar do muito que se já disse sobre a globalização é possível perceber que não existe uma inserção “típica” ou “normal” neste processo complexo e em transformação. Cerca de metade dos países estão “isolados”, seja em terra seja em mar. A outra metade nem uma coisa nem outra: contudo, metade desta metade consegue ligar continentes ou unir mares-oceano, articulando plataformas massivas de água ou terra.

A imagem a que chegamos é, por isso, a de um mundo ele próprio arquipelágico: uma distribuída poeira de centros e periferias.

Assim, encontrar o nosso lugar no mundo não é uma escolha estática: é uma navegação dinâmica. Existem várias noções de proximidades e distâncias. Influenciar que definições serão essas é o domínio da visão estratégica e dos grandes desenhos de posicionamento nas malhas dos interesses internacionais.

 

Jogadas de estratégia num mundo fragmentado

Se o mundo é uma concatenação de cacos, mais ou menos grandes/pequenos e mais ou menos próximos/distantes uns dos outros, então a sobrevivência e o sucesso podem depender da capacidade de tirar partidos das massas (de dimensão continental) e dos fluxos (que passam pelos mares-oceano). Alguns países sempre fizeram assim como aposta nacional: especializaram-se em actividades que capitalizam relações longínquas. Isto é, fizeram da gestão da distância física um “modelo de negócio”.

O Vaticano, ocupando uma posição central no Mediterrâneo, desenhou-se há dois mil anos como ponto de concentração de uma rede global de unidades religiosas. É uma sede de uma actividade de serviços espirituais com um sucesso ímpar.

O Panamá foi inventado no início do século XX como modo para levar a cabo a construção do canal. Ainda hoje as receitas do negócio de logística inter-oceânica representam uma proporção significativa do seu rendimento alimentando também actividades auxiliares como a finança, o turismo e o comércio.

Singapura concebeu-se no imediato pós Segunda Guerra Mundial como um “neo-entreposto”, soberano e sofisticado. Com uma estrutura política musculada ou uma democracia rígida, a cidade-Estado ofereceu-se aos mercados e investidores como um nicho seguro para serviços como a finança, actividades marítimas e indústria do jogo.

 

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Um conceito para posicionamento global

Nos domínios da disciplina das relações internacionais existe um conceito conhecido como “o estrangeiro próximo” (o near abroad). Este refere-se a uma cintura de países geograficamente próximos (por exemplo, as ex-repúblicas soviéticas) em relação aos quais uma grande potência (neste caso, a Rússia) tem uma atenção chegada (aquilo se denomina por “esfera de influência”).

Por reversão de analogia, territórios pequenos podem ter longe das suas fronteiras países que são culturalmente próximos. Macau situa-se entre as maiores massas gigantes de terra e água do mundo: além a Ásia e o Pacífico, aqui a China e o mar da China. Nesse interstício está Macau em boa posição para se especializar tirando partido da proximidade histórica e simbólica com outras localizações longínquas. Macau pode tirar partido daquilo, então, que se poderia denominar também de “esfera de empatia”.

Os países da lusofonia (espalhados pelos quatro outros continentes, banhados por vários mares-oceano) podem ser exactamente essa “vizinhança próxima” (uma faraway neighbourhood). Isso mais que justificaria a viabilidade da identidade e da prosperidade de um território tão especial como Macau por mais uns tantos vindouros séculos.

 

 

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Casos-limite: enclaves e istmos

Um país ou território completamento envolvido por outro é um “enclave”. Três casos existem nestas condições: Lesoto (rodeado pela África do Sul), São Marino (república muito antiga e cercada pela Itália) e Vaticano (Estado religioso na cidade de Roma, capital da Itália). Em contraposição, há um caso particular de um país que deve a sua existência precisamente a ser um istmo: o Panamá, delgada faixa entre dois imensos oceanos e que simultaneamente liga duas gigantescas massas continentais.

 

 

*Professor de Economia, ISCTE Business School – Instituto Universitário de Lisboa. Lecciona em programas doutorais ministrados em universidades da China Continental.