Macau com estatuto multilinguístico

São várias as línguas a cruzarem o passado e o presente de Macau. Um estatuto multilinguístico que pode fazer a diferença na Grande China, acredita o presidente do Centro Científico Cultural de Macau, Luís Filipe Barreto. É exactamente para aprofundar esse conhecimento fruto da multiculturalidade que Lisboa acolhe, em Outubro, o II Encontro sobre a História da Tradução em Macau

 

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Texto Patrícia Lemos | Fotos Paulo Cordeiro

Em Portugal

 

 

Depois de debutar com sucesso no Instituto Politécnico de Macau (IPM) em 2011, o Encontro sobre a História da Tradução em Macau viaja até Lisboa, sob o lema China/Macau: Tradução e Interpretação – Passado e Presente. Esta segunda edição, a decorrer entre 12 e 14 de Outubro no Centro Científico Cultural de Macau (CCCM), vai ser mais abrangente e contar com novos convidados.

Co-organizado pelo CCCM, IPM e Fundação Macau, o Encontro pretende “aprofundar o conhecimento do estatuto multilinguístico de Macau, articulando-o mais e melhor à China, Japão, Filipinas, etc. e à disseminação na Europa de informação e cultura material chinesas em múltiplas línguas ocidentais”, explica o presidente do CCCM, Luís Filipe Barreto, revelando ainda que “um dos conferencistas presentes vai abordar traduções e impactos na Filosofia e Ciências Sociais chinesas a partir do alemão – muitas vezes via prévia tradução japonesa”.

O responsável acredita que “o estatuto multilinguístico é muito importante para a RAEM a nível estratégico, porque a potencialidade nessa área em Macau é um dos filões da região na China”, aquilo que pode demarcá-la das restantes regiões chinesas. E não se refere apenas ao chinês e português: “Existem potencialidades ao nível das línguas latinas, do inglês e do japonês”. Por essa razão, elege a afirmação do estatuto multilinguístico de Macau como o projecto mais importante do CCCM ao nível da cooperação com as instituições da RAEM, a realizar num horizonte de cinco a dez anos, através de estudos de passado e de presente.

Segundo o presidente, este enfoque na tradução em Macau faz todo o sentido. Afinal, já nos idos séculos XVI e XVII, “era o único sítio do mundo onde se seleccionava, aprendia, editava e acumulava em biblioteca documentação em chinês e japonês, juntamente com latim, português e línguas ocidentais e asiáticas”. Macau sempre foi um lugar de diversidade, de pluralidade. “A maioria dos portugueses que chegou ao território nos séculos XVI e XVII já é fruto da experiência com o mundo malaio e com a Índia, ou seja são filhos de mães desses países. Por isso, até a condição portuguesa de Macau é plural. E são muitos os espanhóis e italianos a passarem pela região”, justifica.

 

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Motivar a investigação sobre Macau

A par da crescente projecção da China no mundo, a RAEM tem encontrado forma de se destacar além da sua monumental indústria do jogo. “Tem suscitado cada vez mais o interesse dos investigadores”, o que se prova na “qualidade e quantidade de edições em várias línguas”. Barreto considera que “aquela ideia de que Macau se reduzia aos casinos está muito ultrapassada”, existindo agora “uma maior consciência por parte das pessoas de que a região foi uma placa estratégica essencial entre a China e o Japão, bem como com o Índico e o Pacífico”.

Para aumentar a produção da investigação nas áreas de interesse que envolvem a China, Macau e Portugal e outros países europeus, o CCCM tem trabalhado com as universidades para motivar os alunos a fazerem mestrados e doutoramentos sobre muitos temas relacionados que precisam de ser estudados e podem ser depois aproveitados.

Desenvolvido “em rede”, o trabalho de investigação do Centro tem ganho profundas raízes desde 2006 e 2007, conforme explica o historiador, salientando que hoje em dia só é possível fazer investigação com sucesso num espírito de cooperação lato. Aliás, “uma parte significativa das nossas edições é vendida para o estrangeiro, graças às recensões críticas a nível universitário e em revistas de divulgação em várias línguas”. As parcerias do Centro de maior destaque incluem a Fundação Jorge Álvares, a Fundação Macau, Verlag, universidades como as de Munique e Coimbra, Lisboa, Macau, Lovaina e IPM.

“As edições do CCCM em parceria internacional são cada vez mais a regra”, garante o responsável, como foi o caso da obra de Roderich Ptak e Baozhu Hu – The Earliest Extant Bird List of Hainan: Annotated Translation of the Avian Section in Qiongtaizhi, uma co-edição CCCM/Harrasowitz Verlag-Wiesbaden.

O Centro tem cada vez mais acordos e relações de cooperação: na Alemanha, Espanha, Inglaterra, Itália, nos Estados Unidos e até no México, porque não é possível reduzir o trabalho à dimensão da escala Portugal-China-Macau, exactamente porque “uma das funções mais notáveis de Macau foi potenciar muitas articulações”, uma capacidade que se manifestou pelo papel que teve no comércio internacional.

 

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Articular conhecimento e interesses

Na RAEM as parcerias do CCCM também têm vindo a ser reforçadas, resultando daí, por exemplo, só para este ano várias co-edições, tanto com Universidade de Macau, no caso da obra de Carmen Amado Mendes – As Negociações de Macau (1986-1999), como com a Fundação Macau no que se refere ao livro de Lucio de Souza – The Jewish Diaspora and Phillipines, and the Americas (16th Century), entre outras. São frutos da relação estreita do CCCM com as instituições de referência de Macau, com quem tem trabalhado em equipa ao nível da investigação das relações luso-chinesas e do estudo de Macau. Esse trabalho tem sido “bem-sucedido”, qualifica Barreto que logo sublinha: “Esse é o caminho a seguir”.

O responsável acredita que os grupos de trabalho a formar para a investigação sobre Macau terão de ser “multilinguísticos, multidisciplinares e comparativos”, não só incluindo chineses e portugueses como também outros europeus e asiáticos. Barreto refere-se a um estudo multifacetado de várias disciplinas e consequente convergência, bem como uma abordagem multilinguística dos vários saberes. É um diálogo de conhecimentos que o CCCM pretende continuar a fomentar. O bilinguismo em que o governo da RAEM está a apostar poderá ter também um contributo futuro importante na área da investigação, salienta.

À semelhança do que acontece noutras partes do mundo, esta investigação tem de ser igualmente articulada com questões contemporâneas de utilidade social. Hoje em dia, é muito importante reunir esses interesses. “No presente quadro europeu os institutos públicos de ciências sociais e humanidades, bem como muitas outras instituições, públicas e privadas, vivem um difícil desafio de sobrevivência”, lamenta, explicando que “é cada vez mais importante captar outros apoios e patrocínios, internacionais e nacionais, privados e públicos, que viabilizem actividades de referência científicas e culturais, programas de investigação, formação, edições, exposições, etc.”

O CCCM pretende aproveitar não só as referidas articulações internacionais da história de Macau, mas também as relações sino-lusófonas que a região tem protagonizado. Organizou inclusivamente colóquios que abordam essa temática, como foi o caso de Património Cultural Chinês em Portugal, em 2013, que teve participação brasileira, porque o interesse do Brasil na China não é só dos nossos dias. Barreto recorda as palavras dum português do Brasil em Pernambuco que, nos inícios do século XVIII, dizia que a porcelana chinesa era a ‘droga’ que mais se consumia no Brasil. O presidente explica que a partir dos séculos XVII e XVIII as colecções de porcelana, populares na América do Sul, passam a servir muito de moeda de troca para adquirir o tabaco brasileiro que vai depois de Macau para Cantão.

Apesar de nos últimos anos se ter acentuado o papel estratégico de Macau no Atlântico da língua portuguesa, estas relações não são recentes. “O impacto da dimensão chinesa por via de Macau naquilo a que chamamos hoje de PALOP é muito mais antigo do que pensamos”, garante o académico, que chama a atenção para a existência de muito trabalho de investigação a fazer nessa área, por exemplo ao nível da ecologia, da economia e da cultural material.

 

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Mais chinês para os portugueses

Valendo-se da sua experiência no ensino da língua portuguesa na Universidade de Macau, em 1992 e 1994, Barreto considera que houve “um grande salto” no interesse do nosso idioma por parte das potências asiáticas, considerando que muito se deverá à globalização económica mundial. Afinal, “o multilinguismo é tanto mais forte quanto maior for a dimensão económica e a riqueza do que está em jogo”. Mas nem sempre foi assim. “Nos anos 1990, essa importância estratégica na articulação com o Brasil, países de expressão portuguesa em África, na Ásia e até com as comunidades migratórias portugueses nos Estados Unidos não era por vezes tão visível a muitos dos decisores.” As línguas chinesa e portuguesa são hoje em dia as que mais crescem no século XXI, também pelo potencial demográfico internacional.

Apesar do interesse nas línguas chinesa e portuguesa ter vindo a aumentar com a necessidade de intercâmbio económico, também o desenvolvimento do sector turístico, tanto em Macau como em Portugal, tem contribuído para a crescente importância do multilinguismo. A terra de Camões recebe cada vez mais visitantes asiáticos, daí que haja “uma crescente solicitação de traduções nessas línguas, o que também se reflecte em termos comerciais”, explica o presidente do CCCM. E não é só o chinês a despertar o interesse dos portugueses, garante logo adiantando: “É cada vez maior a procura de ensino das línguas asiáticas, incluindo o japonês, o coreano ou o híndi”.

O interesse dos chineses em Portugal, em termos turísticos e económicos, tem estimulado uma corrida às salas de aula do CCCM. Para além do Curso livre de Língua e Cultura Chinesa, vão ainda decorrer aulas sobre os Jesuítas na China Ming e Qing, em Junho, estando ainda nos planos outro curso sobre Património e Mercados de Arte Chinesas. Merece ainda destaque, na área da formação em 2015, a parceria do CCCM com as universidades de Lisboa e Católica Portuguesa na área dos Estudos Asiáticos (licenciatura e mestrado).

 

 

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Actividades para 2015

Exposição de cerâmica “Paz e Serenidade – Cerâmica Song da Colecção Qingjingtang”, acompanhada por um catálogo em português, inglês e chinês, com mais de 300 páginas.

 

Colóquio Internacional China-Macau: Tradução e Interpretação – Passado e Presente, conjuntamente com a Fundação Macau e o Instituto Politécnico de Macau.

 

Publicação de Macau: Past and Present, editado por Luis Filipe Barreto e Wu Zhiliang, numa edição CCCM/Fundação Macau.

 

Publicação de Património Cultural Chinês em Portugal, editado por Luis Filipe Barreto e Vitor Serrão, numa edição CCCM/Fundação Jorge Álvares

 

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Biblioteca plena de Macau

É um dos melhores repositórios de livros sobre Macau. A Biblioteca do Centro Científico e Cultural de Macau (CCCM) tem contribuído “para aumentar o interesse sobre Macau, a China e a Ásia Oriental, sobretudo ao nível dos estudantes do ensino secundário terminal e universitário”, garante Luís Filipe Barreto, presidente do CCCM. Em sala própria na Biblioteca do CCCM desde 2012 estão os mais de 1500 livros doados, que pertenceram ao investigador e advogado Francisco Gonçalves Pereira, sobre Macau, China e Ásia. Barreto acredita que este “devia ser o único caso português de posse de uma biblioteca tão especializada em termos de China contemporânea”. Esta é uma das várias doações importantes que o CCCM tem recebido ao longo dos anos. Para além de parte do espólio documental de Monsenhor Manuel Teixeira, o Centro também guarda material de Ana Maria Amaro e do arquitecto Manuel Vicente.