Análise | Rota da Seda: Descobertas e reinvenção

Uma das mais inesperadas coisas que a China criou foi Portugal. No século XV um grande “best-seller” na Europa de então era o livro de viagens Marco Polo, o célebre mercador-aventureiro veneziano apelidado de “o homem das mil histórias” pelos seus contemporâneos. Por estas e outras vias se difundiu por entre os europeus a conhecimento (e a obsessão) sobre a Ásia Central e a Oriental.

 

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Texto de Sandro Mendonça*

 

 

À Europa chegavam as notícias sobre riquezas distantes. As riquezas concentravam-se em Veneza, a Cidade-Estado que efectivamente monopolizava o estatuto de maior beneficiário desse grande e longo caminho terrestre. O sonho de chegar ao Oriente crescia bem como a sede de escapar ao atraso e isolamento europeus.

E essa camoniana epopeia aconteceu; uma tentativa de alcançar activamente por mar o que outros recebiam passivamente por terra. Um projecto animado por um instinto de concorrência económica e pelo ânimo de encontrar uma alternativa inovadora.

A China através da Rota da Seda provocou que, no outro extremo da Eurásia, Portugal se superasse. Sem os “Descobrimentos” esse país possivelmente não existiria hoje. O processo de expansão que se iniciou tornou o português uma língua global e mais rica, de ciência e de negócios. E ganhou-se também resiliência. Por exemplo, aquando da hegemonia filipina, Macau foi o único ponto do império que não cedeu, o derradeiro foco de resistência.

 

Mas a própria Rota da Seda é uma “invenção” recente

O nome “rota da seda” designa uma via de comunicação terrestre com quase 2500 anos. Atravessa o ventre da plataforma continental euro-asiática num percurso de cerca de 4000 quilómetros que compreende desertos e cordilheiras, historicamente trilhado por caravanas de mercadores e peregrinos. Por esse circuito se distribuíam bens preciosos, como sedas e especiarias, e tecnologias, como a bússola a que os navegadores dariam novos usos.

Contudo essa rota não é só um facto histórico; tem estado também envolta em mistérios, mitos e mal-entendidos. A “rota”, por exemplo, não era um percurso pré-definido; ela evoluía com o passar das gerações. Não era uma “linha” mas sim uma “rede”: um sistema de actividades multi-direccionais que integrava várias geografias.

Mais interessante: trata-se de expressão artificial de cunhagem recente. O autor foi o académico alemão Ferdinand von Richthofen (1833-1905), um perito em geografia que trabalhou como consultor em projectos que pretendiam explorar recursos minerais na China com a ajuda de caminho-de-ferro e de portos industriais. No enorme livro em cinco volumes que publicaria em 1877 aparece, então, o termo “Seidenstraße” pela primeira vez, o qual acabou por se popularizar no século XX.

 

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A re-emergência de um conceito-desafio

Em Setembro de 2013, numa visita ao Cazaquistão, o Presidente Xi Jinping anunciou o plano para um “Cinturão Económico da Rota da Seda”. No mês seguinte, durante a cimeira da ASEAN (Association of Southeast Asian Nations) na Indonésia, anunciava a “Rota da Seda Marítima”. Em Maio de 2014, quando a China assumia a coordenação bianual da CICA (Conference on Interaction and Confidence-Building), a ideia foi a noção orientadora: uma forma pacífica e produtiva de “reconectar países que partilhavam um passado comercial comum” (segundo a TV oficial).

Muitos projectos económicos têm sido enunciados entretanto: programas de ferrovia de mercadorias até à Europa, de transporte de gás com a Rússia, de corredores económicos com a península indostânica, etc. Não há grande empresa chinesa, sobretudo de transportes e logística, e não há grande cidade ou província, sobretudo as do interior da China, que não ajuste os seus objectivos de médio e longo prazo a esta visão.

 

Uma faixa, um caminho, uma reinterpretação da globalização

Esta iniciativa estratégica, e o adensar espontâneo de interconexões que pode provocar, é financeiramente sustentado com a formação, em Outubro de 2014, do Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB), o qual agrega dezenas de países. A missão será alicerçar mega-projectos de infra-estruturas nas áreas das telecomunicações, energia e transportes. É complementado pelo “banco dos BRICS”, o New Development Bank, também com sede em Xangai.

Estas movimentações ocorrem ao mesmo tempo que se animam vários outros esquemas de re-configuração global. Ao nível das movimentações institucionais os EUA tentam dar corpo a tratados de livre comércio como o Trans-Pacific Partnership (TPP) e o Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP). Este último é visto em Washington como sinal da “viragem para a Ásia” (pivot) que a Administração Obama tem anunciado.

Por seu lado, o que a “nova rota da seda” tenta fazer é uma vertebração da Eurásia e uma reactivação do Índico, ou seja, uma espécie de “viragem para Ocidente e para o Sul”. Esta estratégia deve igualmente ser vista no contexto mais alargado de outros planos intra e inter-regionais: o eventual alargamento da passagem inter-oceânica da América Central, a possível rota Andina conectando ambas as costas da América do Sul, a corrida pela passagem marítima no Ártico. Isto é, a redefinição da globalização para o século XXI está em curso, mas ainda nos seus anos formativos.

 

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Variedades e complementaridades das “novas Rotas da Seda”

Evidência de que o conceito “One Belt, One Road” é tomado como operativo é que a todo o tempo surgem extensões ao mesmo. Pode falar-se, portanto, de uma “rota da seda financeira”. Fala-se também de uma “rota da seda aérea” que reorganizará a governança da malha de ligações aéreas na região. Fala-se, ainda, de uma “rota da seda epistémica” para designar os processos de cooperação de ciência e educação que podem surgir no quadro de uma cooperação alargada e mais intensa virada para o capital humano e para a inovação. De facto, a Rota da Seda nunca foi apenas comércio: foi conhecimento e cosmopolitismo.

A terminologia “rota da seda” é, assim, uma linguagem tão descritiva como propositiva. É tanto uma designação de um passado de laços identitários como uma agenda transformacional para um futuro de novas interconexões económicas e tecnológicas.

 

* Professor de Economia, ISCTE Business School – Instituto Universitário de Lisboa. Lecciona em programas doutorais ministrados em universidades da China continental. É gestor do CYTED – Programa de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento na região ibero-americana