O intérprete-tradutor: Entre dois mundos

Cada vez que traduz a palavra – escrita ou falada – liga dois mundos, desencriptando a mensagem de chineses e falantes de português até nas mais simples coisas do dia-a-dia. É a voz que anuncia a próxima paragem no autocarro, é a ponte numa conferência ou numa sala de audiências, e também a mão por detrás de legendas de espectáculos culturais. A figura do intérprete-tradutor é, não raras vezes, tão invisível quanto imprescindível

 

01_Foto de Abertura da Reportagem ou Capa

 

Texto Diana do Mar e Fátima Valente | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

“É como conduzir um carro: Temos de olhar para diferentes direcções, o pé tem de mexer, e a mão e as orelhas também”. É assim que Inês Wu descreve a interpretação simultânea no interior de uma cabine. Na primeira vez, acabada de tirar a “carta”, nem um som foi capaz de emitir. Hoje, apenas três anos e meio depois, perdeu o medo e as palavras foram saindo com crescente fluidez.

Nascida numa família chinesa sem qualquer laço a Portugal ou outro qualquer país lusófono, Inês, de 27 anos, foi inicialmente introduzida à língua no jardim-de-infância, mas foi a “preciosa oportunidade” de fazer um curso de Verão de um mês, enquanto frequentava a escola secundária, que lhe fez descobrir afinidades. “Comecei a gostar da cultura, do ambiente, de tudo e a pensar que podia fazer algo com o português no futuro”, mas “nunca que um dia viria a ser intérprete-tradutora”. Concluiu a licenciatura em Estudos Portugueses na Universidade de Macau, enveredando por um rumo quase em contra-corrente atendendo ao boom da liberalização da indústria do jogo. “Toda a gente começou a dizer que eu devia fazer o curso de hotelaria, turismo ou algo do género, mas eu não gostava. Gostava mais de línguas, especificamente de português.”

 

Inês Cherry Wu_GLP_02

 

Sem se deixar demover, Inês levou a sua avante, crente de que “uma pessoa muito empenhada em algo um dia vai ter o seu espaço”. Depois de um estágio como tradutora e da passagem por uma empresa de vinhos portugueses, ainda “confusa” e “sem ter muitas certezas”, foi para Portugal frequentar cursos de Verão. Quando regressou viu no programa de formação de intérpretes-tradutores, dos Serviços de Administração e Função Pública (SAFP) em colaboração com a União Europeia, o derradeiro “teste” sobre a futura carreira. “Entrei e depois comecei a gostar.”

Já a história de Manuela Sousa Aguiar é bem diferente. Habituada a ser intérprete entre a mãe chinesa e a professora portuguesa, foi-se deliciando também nos tempos de escola com as estórias que um dos mestres de karaté lhe contava sobre o ofício de tradutor – do quanto se aprendia, mas também do quanto se sofria nomeadamente com os “horrores” de uma “branca”. Quando deu conta estava a entrar no curso básico de intérpretes-tradutores criado pela Direcção dos Serviços de Assuntos Chineses e, três anos depois, ingressava nos quadros da função pública. Em meados de Novembro deste ano, aos 46 anos, cumpriu as bodas de prata, com um ofício dividido entre a administração portuguesa e a chinesa. Se pensou em desistir? Sim, logo no início: “Não tinha confiança em mim própria porque ainda era muito jovem. Pensei duas vezes, e se não teria uma vida mais facilitada mudando de profissão, mas depois de entrar na cabine, e de ganhar o gozo pela interpretação fiz questão de ficar e ainda me sinto muito apaixonada pela profissão”.

 

Manuela Aguiar_GLP_01

 

Natércia Gil e Leonardo Correia também tiveram a mesma escola – a da Direção dos Serviços de Assuntos Chineses – e no serviço público que formava tradutores a primeira experiência profissional. E a curiosidade, despertada por amigos que se haviam inscrito foi um impulso comum – ainda antes de completarem os 16 anos –, mas existiam outras motivações em jogo. A primeira achava “giro” vestir a pele de tradutora para o avô materno, que não dominava o cantonês, enquanto o segundo queria “experimentar algo diferente dos colegas” uma vez não encontrada a “vocação”. “Eu era um dos poucos que nos testes pedagógicos não dava para nada, era um pouco de tudo.”

Ambos invocam avisos prévios de que ser intérprete-tradutor era mais difícil do que pensavam. E os primeiros tempos foram naturalmente os mais “desafiantes”. “Aprender direito, política, a organização do governo… Eram coisas de outro mundo para mim aos 16 anos. Naquela altura ainda nem tinha base para perceber notícias mais complicadas do telejornal”, recorda Leonardo. Natércia também revive em particular o primeiro ano, em que era preciso traduzir documentos de áreas como engenharia ou construção, relativamente às quais não tinha vocabulário, e em tempos em que, sem Internet, era preciso comprar dicionários e consultar livros na biblioteca.

Já no Gabinete de Comunicação Social (GCS), onde foi colocada em 1993 e permanece ainda hoje, recorda a estreia em palco. “A primeira diligência externa e foi logo em palco! Foi com o então secretário-adjunto para a Comunicação, Turismo e Cultura, Salavessa da Costa. Marcou-me também porque os destinatários eram diferentes, porque no caso dos jornalistas há margem de manobra. Isto é: Se não me lembrar de um termo ainda tenho tempo de falar com eles e explicar”. O GCS também lhe abriu a porta do Grande Prémio: há 22 anos que veste o equipamento da coordenação de tudo o que tem a ver com os média no âmbito do evento internacional que tem sempre lugar em Novembro. “É muito exigente e cansativo, mas gosto”, sendo que, neste caso, “o meu instrumento de trabalho não são duas mas três línguas, com o inglês”.

 

Natércia Gil_GLP_02

 

Interpretar e traduzir

Tal como Manuela, Natércia prefere a interpretação, à qual Leonardo também se dedica mais desde 1999. Embora não consiga escolher a área da interpretação que mais gosta, sabe que há temas que, por comparação, detesta. Inês Wu faz hoje em dia mais tradução, mas “de vez em quando” interpretação (simultânea ou consecutiva) em função das necessidades. Recentemente, mudou-se para o gabinete do secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, deixando os SAFP, serviço ao qual tinha regressado no início do ano, depois de uma passagem pelo Gabinete de Apoio ao Ensino Superior.

Já Liu Gang debruça-se sobretudo na tradução na Assembleia Legislativa, onde começou a trabalhar em meados de Setembro, fazendo uma dupla estreia. “É a primeira vez a tempo inteiro. Estou a gostar muito, é um pouco diferente do que imaginava mas está a ser muito interessante”, assinala o ex-professor do Instituto Politécnico de Macau, natural da China.

A mudança de profissão explica-se de forma simples: “Na escola ou na universidade, a tradução é mais um trabalho virtual, decorre num ambiente de laboratório e eu queria ver como é esta prática na vida real”, argumentou Liu Gang, que se formou em Pequim, mas também estudou e leccionou em Portugal. O primeiro impacto sente-o ao nível da “diversidade de temas”, por incluir muitos que não domina, ao contrário do que estava habituado, uma vez que cabe ao docente selecionar os materiais. Também já fez interpretação. Mas ao contrário dos colegas, uma vez que a sua língua materna é o mandarim, a dificuldade ganha outra dimensão, já que, de facto, “passa a trabalhar de uma e para uma língua estrangeira”. “Pensei que não seria tão difícil, mas a compreensão e mais demorada quando ouço o cantonês.”

 

Leonardo Correia_GLP_01

 

Uns são mais “talhados” para a interpretação, outros preferem a tradução. Mas todos sinalizam diferenças. “Na escrita é muito diferente, porque trabalhamos mas depois não sabemos o resultado. Na interpretação simultânea, percebe-se logo!”, atira Inês, sublinhando que “muitos factores” podem interferir o desempenho na interpretação, como o discurso do próprio orador, o facto de previamente não terem acesso aos materiais de uma reunião, ou a imprevisibilidade de perguntas de jornalistas sobre temas não relacionados com o trabalho a executar. Sem falar de condicionantes externas, como o barulho ou a distância em relação à voz a interpretar quando o exercício da profissão se faz fora da cabine, sem auscultadores, propiciando uma maior distração. Depois do bloqueio da estreia – em que ficou a ouvir e se esqueceu de falar – Inês descobriu que se trata, afinal, de alcançar um equilibro na distribuição da atenção: “Se nos concentrarmos 90 por cento a ouvir, só restam dez por cento para falar, e depois pode haver erros gramaticais, frases penduradas, ou outras coisas que não fazem sentido”. Mesmo a experiente Manuela faz a justa ressalva: “Consigo interpretar as pessoas que falam rápido, mas com um raciocínio confuso não!” Também se cometem erros e disparates, e muitos recordam-nos logo. Mas também se brinca dentro da cabine, como se percebe pelos risos que ecoam de um microfone que ficou ligado.

No trabalho com os jornalistas, Inês chegou a ter a sensação de que se criava a ideia de que se a resposta pretendida não chegara era porque a interpretação havia sido mal feita. Muitos acabam por compreender, no entanto, que o problema reside no interlocutor e não no tradutor. Leonardo Correia também realça a condescendência: “Percebo que temos defeitos, mas o essencial é sermos comunicáveis e eu tento ser assim. Claro, há uns que são mais tolerantes, há outros que acham que ser intérprete-tradutor não é nenhuma ciência ou especialidade.”

 

Gang Liu_GLP_02

 

Compreender e reconhecer

“Na realidade, são duas profissões. Há quem diga que são distintas, mas entendo-as com certa complementaridade”, diz Manuela que foi agraciada, em 2012, com a Medalha de Dedicação pelo Governo da RAEM, notando um maior reconhecimento da profissão nas duas últimas décadas: “Diria que tanto o governo como o sector privado começam a ter uma noção do que é o intérprete e o que é o tradutor, e do que é que eles precisam para fazer um bom trabalho”, indica, expondo que há uma maior preocupação em facultar os materiais antecipadamente, desde discursos a material de suporte nas reuniões.

Na opinião da tradutora-intérprete, isto aplica-se tanto à tradução como à interpretação. “Se um orador vier discursar de improviso, nós trabalhamos de improviso, mas se o orador vem cá fazer uma leitura de um discurso muito bem elaborado, mas nós não temos acesso a ele antecipadamente é complicado. Não vamos conseguir correr atrás do orador. Mesmo com largos anos de experiência é um trabalho árduo”, sublinha. Leonardo até compara o stresse a uma época de exames. “É difícil fazer face a tantas matérias diferentes e, além disso, estar todos os dias em época de exames. Ninguém aguenta exames durante 365 dias, mas estamos a aguentar”, diz o intérprete-tradutor dos SAFP.

Por outro lado, também “há quem pense que é um trabalho fácil – bastando ser bilingue. Mas há outras que dão valor ao nosso trabalho”, afirma Natércia. Liu Gang dá um exemplo de como não basta e de que a tradução também é cultural. “A simples palavra mesa: para a cultura portuguesa é quadrada, enquanto na chinesa é redonda.”

Embora sejam mais de 300 (ver caixa) não chegam para as necessidades. A carência de tradutores “não se prende com a capacidade de formação mas sim com a escassez de alunos de Macau visto que os da China, na sua grande maioria, regressam ao depois de estudarem em Macau” e, apesar de o número de alunos locais estar a aumentar isso pode não se repercutir totalmente no mercado de trabalho, porque a falta de confiança e a percepção que não dominam, suficientemente, uma das línguas ou ambas, aliado à facilidade de encontrar emprego bem remunerado noutras áreas afins, fazem com que os recém-licenciados procurem outros empregos”, avalia a investigadora Lurdes Escaleira, autora da obra Ensino da Tradução em Macau, que resultou da sua tese de doutoramento sobre o tema.

Em paralelo, como nota o presidente do Instituto Politécnico de Macau (IPM), Lei Heong Iok, “mesmo no governo, na máquina administrativa, sente-se falta de bons intérpretes-tradutores”, um cenário que exige mais medidas e maior investimento. Abrir mais vagas na Administração pode ser uma possibilidade: “Se um serviço público precisa de três intérpretes-tradutores, mas o quadro de pessoal só permite um, isso dificulta”, pelo que “a solução seria redefinir o quadro consoante as necessidades”.

Lurdes Escaleira, docente do IPM, também afina pelo mesmo diapasão quanto às dificuldades em entrar no sector público. “A procura de intérpretes-tradutores é elevada mas, em Macau a entrada para a carreira na administração pública não tem sido fácil e o processo de selecção é rigoroso, havendo licenciados em tradução que desistiram de tentar entrar na função pública.” Por outro lado, observa a “evolução muito positiva na formação de tradutores” no ensino superior público: “Passou-se de um curso técnico para bacharelato, licenciatura e, mais recentemente, mestrado. Talvez se tenha ‘academizado’ demasiado e perdido a parte prática e a ligação com a realidade de trabalho e é neste aspecto que, em meu entender, se deve investir”.

Profissão exigente, tanto no desempenho das capacidades como na mestria em responder a situações adversas ou imprevistas, é também um alvo fácil de críticas. “Em Macau o tradutor teve sempre um papel fulcral no convívio entre os povos e na viabilização da administração portuguesa, no entanto, facilmente se critica o resultado”, atenta Lurdes Escaleira. Na verdade, continua a docente, “o contexto de Macau é deveras complexo porque se espera que o tradutor seja um ‘super profissional’ capaz de ser, ao mesmo tempo, intérprete e tradutor, de traduzir em ambos os sentidos, revisor do seu próprio texto e, sobretudo, que seja capaz de traduzir/interpretar em qualquer área, desde a economia, ao direito, à moda, etc.”. Todo este rol de exigências leva a investigadora a questionar-se como formar um profissional com todas estas competências: “Quanto tempo seria necessário? Toda a vida bastaria?”

 

Lurdes Escaleira_GLP_01

 

*****

Intérpretes-tradutores português-chinês da Administração Pública em números

Ano                 2010               2011               2012               2013               2014

Total              252                 268                 287                 304                 325

 

Homens          34%

Mulheres        66%

 

Tutela                                                                         Total

Directamente dependente do Chefe do Executivo          12

Secretaria para a Administração e Justiça                      85

Secretaria para a Economia e Finanças                          31

Secretaria para a Segurança                                          47

Secretaria para os Assuntos Sociais e Cultura               44

Secretaria para os Transportes e Obras Públicas           39

Comissariado Contra a Corrupção                                 3

Comissariado da Auditoria                                              3

Assembleia Legislativa                                                   10

Tribunais                                                                        40

Ministério Público                                                           11

 

Total                                                                            325

 

*Fonte: SAFP. Dados até 31 de dezembro de 2014, não incluindo trabalhadores das fundações e de outros organismos públicos que se regem pelo regime de direito privado (Fundação Macau, Instituto de Promoção do Comércio e do Investimento de Macau, Autoridade Monetária de Macau, Universidade de Macau, Instituto Politécnico de Macau e Autoridade de Aviação Civil, bem como os contratados em regime de tarefa ou mediante prestação de serviços)