Cozinheiros precisam-se

O glamour associado à profissão de cozinheiro, o crescimento dos restaurantes de luxo e a falta de profissionais de culinária em Macau são algumas das razões que fizeram aumentar o interesse pela jovem licenciatura em Gestão de Artes Culinárias do Instituto de Formação Turística. Este ano, o estabelecimento de ensino público, que oferece um programa virado para a gastronomia ocidental, lançou os primeiros 25 licenciados no mercado. Poucos profissionais para muita oferta

 

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Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Todos falam alto quando entramos na cozinha. Marieta, a professora, pede silêncio. Os alunos viram-se para as longas bancadas metálicas, iluminadas por luzes brancas, e frias, próprias de uma cozinha multiusos, estilo industrial. Ao alto, um labirinto de tubos dá forma ao sistema de ventilação. Num quadro branco à esquerda alguém desenhou um peixe e descreveu a caneta preta as características que diferenciam as várias espécies destes animais aquáticos. Raia maxilar, banda lateral, mancha em forma de sela, sinais e listras, pode ler-se em inglês. “Hoje em dia compra-se tudo pronto a cozinhar e, quando se mostra aos alunos um peixe inteiro, nem sabem reconhecer um salmão”, conta Mark Gibson, coordenador do programa de Gestão de Artes Culinárias do Instituto de Formação Turística (IFT). O britânico, que trabalhou como chefe de cozinha em vários países europeus ao longo de mais duas décadas, chegou a Macau há quatro anos para redesenhar o curso. “Está a assistir-se a uma desqualificação da indústria”, aponta Gibson, que vê esta jovem licenciatura como uma forma de “regressar às origens”.

“Compramos porcos inteiros ou borregos e passamos algumas semanas a talhar a carne”, explica o responsável, que destaca a vertente mais “prática” do programa. “No Ocidente segue-se uma carreira de chefe, mas na Ásia muitos profissionais migram da cozinha para a área principal do restaurante e nós treinamos os nossos alunos nos dois sentidos”, realça.

 

Aposta na culinária de raiz ocidental

O IFT forma os futuros chefes de Macau, e esta licenciatura, frequentada sobretudo por alunos locais, está focada na culinária ocidental, embora inclua um semestre de gastronomia asiática. “Se um hotel de cinco estrelas tiver apenas um restaurante, este será ocidental”, afirma Mark Gibson, sublinhando que, com a abertura das grandes unidades hoteleiras, chegaram a Macau novas tradições. Observa-se, além disso, uma mudança dos hábitos alimentares e um crescente interesse por produtos de alta qualidade.

Em Macau, Wong Keng Ip, finalista do quarto ano da licenciatura do IFT, gosta de frequentar os restaurantes de hot pot (o fondue chinês). Mas o futuro profissional, sublinha, deverá passar pela gastronomia japonesa ou pelos sabores ocidentais. O estudante, que ambiciona juntar-se a uma cadeia hoteleira de cinco estrelas, reconhece que falta à licenciatura “uma base mais teórica e de ciência gastronómica”. Mark Gibson não descarta a hipótese. Salienta, porém, que a teoria não se vai “sobrepor à prática”.

De regresso à cozinha, os alunos do primeiro ano preparam-se para o exame final. Vestem uma bata branca, um avental listrado, uma touca escura; as mulheres prendem o cabelo ao alto da cabeça – são a minoria num curso e profissão dominados por homens. A turma foi dividida em dois grupos, e cada um prepara uma entrada, um prato principal e uma sobremesa. Nas bancadas, vai-se compondo uma musse de morango, uma salada de camarão com toranja e um tabuleiro de almôndegas de carne com mozarela.

 

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Da televisão para o mundo real

Gerir uma cozinha é hoje uma profissão de prestígio. E, muito graças à televisão e aos programas culinários transmitidos em todo o mundo, o cozinheiro foi elevado a celebridade. Este lado glamoroso da profissão tem contribuído, em parte, para um crescente interesse no sector.

Na RAEM há ainda outra variável que entra nestas contas: o mercado precisa urgentemente de mais profissionais de cozinha. O IFT é um dos estabelecimentos que oferece estudos superiores nesta área – o outro é a Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau. Mas é uma missão praticamente impossível. Por ano, são admitidos na licenciatura de Gestão de Artes Culinárias apenas 25 alunos e, por cada vaga disponível, inscrevem-se oito pessoas. “Não conseguimos formar profissionais suficientes para trabalhar na indústria”, constata Mark Gibson.

E na hora de entrar no mercado de trabalho, a realidade em nada se parece a um programa de televisão. Os salários baixos, os dias longos de trabalho, a natureza repetitiva do trabalho e o tempo que se leva a subir na hierarquia de uma cozinha são elementos apontados pelos especialistas como decisivos na permanência dos jovens licenciados no sector. O coordenador do programa do IFT salienta: “Há um grande choque cultural quando saem daqui para a indústria e seria interessante ver onde estão daqui a uns anos”.

Ruan Xiao He tem 21 anos e é um dos recém-licenciados do programa do IFT. É natural de Xiamen, na Província de Fujian. Macau não era a escolha número um para seguir os estudos universitários, não fosse o pequeno território oferecer na altura o único grau de licenciatura do género na China.

Ruan – Joe é o nome inglês – mantém o boné virado para trás e as mãos presas aos bolsos enquanto atravessa a praça do Tap Seac, no centro histórico da cidade. Trabalha no restaurante Terrace, no sexto andar do Hotel Okura, situado no Cotai – longe daqui, deste banco de dois lugares que dá as costas ao Hotel Estoril, antigo e abandonado. Ruan senta-se, ajeita a mochila no colo. Hoje é terça-feira, e é o único dia de folga.

Há poucos meses, quando terminou o curso, pegou na extensa lista de restaurantes de Macau e começou a enviar o currículo por ordem de interesse. Eram todos estabelecimentos de luxo: os franceses Robuchon au Dôme e o Aux Beux Arts, nos hotéis-casinos Grand Lisboa e MGM, respectivamente, e o 8½ Otto e Mezzo, o restaurante italiano que abriu as portas no Galaxy em Junho do ano passado.

É fácil entrar para uma cozinha, o difícil é encontrar o emprego ideal, problematiza. “Existem poucos estabelecimentos de fine dining, as cozinhas estão completas e, por mais interesse que tenham, podem não ter quotas para funcionários estrangeiros”, diz o jovem cozinheiro, referindo-se à política local de contratação de trabalhadores não residentes.

Ruan acabou por integrar a cozinha do Terrace, onde trabalha na secção de comidas frias por um salário mensal de 14 mil patacas. “É muito bom quando comparamos com o Interior da China”, diz. Mas o início também pode ser “duro”, principalmente quando não há espaço para materializar ideias que “podem ser diferentes das defendidas pelas chefias”.

O restaurante, frequentado principalmente por turistas chineses, oferece gastronomia ocidental, chinesa, japonesa e de fusão. “A nova geração de chineses começou a apreciar a culinária de fora”, nota. “Eu cá também gosto dos sabores italianos”. E para responder à questão de Mark, daqui a uns anos Ruan quer estar em Itália a fazer um mestrado. “Quero aprender a preparar a genuína culinária italiana e dar-lhe o meu próprio cunho”.

 

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Sector em crescimento

No final de 2014, estavam em funcionamento em Macau 2043 restaurantes e estabelecimentos similares (mais 200 do que em 2013), para além de 69 lugares de comidas e bebidas nos mercados municipais (menos seis), segundo dados da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos (DSEC), que atribui o crescimento global ao aumento constante do número de visitantes e à “generalização” das aquisições de refeições fora de casa. O sector empregava então 30.269 pessoas (mais 16,8 por cento) e registou receitas de 9,59 mil milhões de patacas. As lojas de sopa de fitas e canjas (815) continuam a ser o tipo de estabelecimento predominante no sector, seguido dos restaurantes chineses (504).

 

 

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Receita de Mark Gibson

Haggis, Neeps e Tatties

(cozinha escocesa)

 

Para: 4 pessoas

 

Ingredientes:

1 estômago de ovelha

1 fígado de ovelha

1 língua de ovelha

1 coração de ovelha

3 cebolas médias picadas

225 g de banha

225 g de aveia/cevada seca

1 colher de chá de sal

Meia colher de chá de pimenta preta moída

1 colher de chá de tomilho

Folha de louro

 

Modo de preparação:

  1. Deixe a cevada de molho durante 3-4 horas e reserve
  2. Limpe e ponha de molho o estômago da ovelha em água fria e com sal durante três horas e reserve
  3. Moer o fígado, a língua (sem pele e limpa), o coração (sem veias) e as cebolas
  4. Enxagúe a cevada e o estômago
  5. Misture todos os ingredientes e coloque-os no estômago
  6. Feche o estômago e coza a vapor a 100 graus durante 3 horas

 

Junte nabos suecos (neeps) e puré de batata (tatties). Sirva com molho de pimenta.

 

 

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Receita de Ruan Xiao He

Lombos de lebre com bolo e óleo de salsa em método sous vide

Creme de tomate seco com gema de ovo ralada e curada

(cozinha contemporânea francesa)

 

Para 2 pessoas

 

Ingredientes:

Para a lebre:

1 lombo de lebre

30 g de salsa

50 g de banha de porco

Sal e pimenta q.b.

Para o bolo de salsa:

60 g de salsa

60 g de pinhões

190 g de claras de ovo

120 g de gema de ovo

60 g de farinha simples

5 g de açúcar

6 g de sal

 

Para óleo de salsa:

250 g de salsa

25 g de azeite

100 g de grainhas de uva

Creme de tomate seco:

120 g de tomate seco

240 g de vinho branco

1 chalota

2 dentes de alho

1 raminho de tomilho

180 g de natas

Sal e pimenta qb

Para decoração:

1 gema de ovo curada

2 framboesas

 

Modo de preparação:

  1. Junte banha de porco, salsa picada e tempero ao lombo de lebre e selar numa

embalagem em vácuo; coloque em banho de água quente a 58 graus por duas horas.

  1. Para o bolo de salsa, misture a salsa bem picada com farinha, ovos inteiros e sal e pimenta, passe por uma peneira, despeje a mistura num sifão, carregue com dois cartuchos de gás, esprema para um copo de plástico e aqueça no microondas durante 30 segundos.
  2. Para o óleo de salsa, aqueça o azeite e o óleo de grainha de uva até 60 graus

celsius, triture a salsa e enquanto o faz adicione o óleo. Passe a mistura por uma

peneira de malha fina.

  1. Para o creme de tomate, refogue ligeiramente a cebola, o alho e o tomilho, depois adicione o tomate e refogue por mais 3 minutos. Junte vinho branco, leve a cozinhar e reduza a lume médio. Continue a cozinhar por 15 a 20 minutos até os tomates ficarem macios e misture com um liquidificador. Volte à panela e junte natas. Mantenha 10 minutos em lume brando até engrossar. Tempere com sal e pimenta. Passe por uma peneira fina para dar uma textura suave.
  2. Para a decoração mergulhe as framboesas em azeite por 10 minutos, com um palito mexa a framboesa e separe a polpa em pedaços. Coloque a gema curada em cima do lombo.