Ícones | Frasquinho de rapé chinês

Os frasquinhos de rapé, ou bi yan hu (鼻烟壶), entraram na China pela porta de Macau, conquistando imperadores e senhores, que os exibiam como troféus. As encomendas não pararam de aumentar século XX adentro, assim como o esmero dos artesãos que fizeram dos frasquinhos a mascote dos coleccionadores, a epítome da arte chinesa

 

 

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Texto Patrícia Lemos

 

Foram os portugueses que apresentaram o tabaco aos orientais no século XVI. Os japoneses logo o cultivaram e a China pode muito bem ter sido o destino da nova lavra, com os coreanos a fazerem a ponte no Oriente. Se não foi pelo norte, foi pelo sul, mais precisamente por Macau, que os chineses tomaram o gosto às folhas de tabaco vindas do Brasil.

Acredita-se que o rapé tenha entrado na China através de Macau por volta de 1530. E sem restrições, porque era declarado como produto medicinal, supostamente capaz de curar cólicas, dores de dentes, matar lombrigas e até piolhos. O tabaco dos portugueses, o Amostrinha, era o mais apreciado dado o seu aroma e alta qualidade, sendo vendido a peso de ouro. Era a novidade que os chineses esperavam dos novos mercadores vindos do mar. A fórmula ebriática, que incluía tabaco, ervas aromáticas e especiarias, cedo se transformou num negócio da China, porque era leve e fácil de transportar e muito desejada por ser rara e exótica.

O rapé chegava acondicionado em caixas e frasquinhos de cristal da Boémia, que logo chamaram a atenção pela beleza e requinte. Inspirados por estas miniaturas, os chineses lembraram-se de reciclar as igualmente pequenas garrafinhas medicinais, conhecidas como yao ping (藥瓶), mudando-lhes a tampa e inserindo um espigão para retirar do interior a dose certa de rapé, a chamada “pitada”. É que as caixinhas da Europa, por mais populares e preciosas que fossem, não protegiam o tabaco da humidade asiática.

Os yao ping eram diferenciados, decorados de acordo com a imagem de marca das farmácias. Estimulavam não só a reutilização como fidelizavam a clientela, passando rapidamente a ser cobiçados por coleccionadores. Convertidos em bi yan hu, estes frasquinhos tornaram-se peças de luxo, de culto, verdadeiros símbolos de estatuto e personalidade.

 

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Espirros com estilo

No século XVII homem distinto que se prezasse não saía à rua sem o seu frasquinho de rapé. Ora se aconchegava na palma da mão, ora se enrolava nas mangas dos changshan (長衫), à moda da dinastia Qing. Era de bom-tom no norte da China oferecer um pouco de rapé para saudar amigos e parentes. E se uma onda de espirros se soltasse, os demais a viam como uma manifestação elegante de prazer, de libertação do corpo de impurezas e doenças.

Os bi yan hu começaram por circular no perímetro diplomático, dos académicos e dos mais abastados e foi pela mão dos jesuítas que chegaram à corte chinesa. Despertaram de imediato o interesse do imperador Kangxi (1662-1722), que chamou os melhores artesãos do reino para formar várias oficinas de produção de frasquinhos, para uso pessoal e para oferecer como estima imperial. Terá sido nesse período que se produziram alguns dos mais belos e valiosos exemplares, muitos deles fruto dos ensinamentos passados por jesuítas que deram a conhecer novas técnicas, como a pintura do esmalte sobre vidro e sobre o metal.

Entalhe, embutidos, caligrafia ou pintura, são tantas as artes aplicadas a estes minúsculos receptáculos que muitos os consideram a epítome do trabalho artístico chinês. Podiam ser de marfim, madrepérola, tartaruga, metal, porcelana, e uma série de outros materiais, embora o mais comum fosse o vidro. A produção era muito diversificada e algumas províncias especializaram-se mesmo em determinadas matérias-primas. Se em Liaoning a ágata tinha prioridade nas oficinas, no Tibete a preferência ia para o metal e na Mongólia Interior a prata era uma recorrência obrigatória.

 

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Pintura no avesso

Enquanto alguns frascos eram minimalistas, outros surpreendiam pelo detalhe dos ornamentos tradicionais representando lendas, episódios históricos, com símbolos auspiciosos, para dar sorte ao seu dono. Mas os que suscitavam maior curiosidade eram os nei hua bi yan hu (内画鼻煙壺), os tais que incluem pinturas no interior e não tanto o rapé. Acredita-se que esta técnica tenha emergido entre os anos 20 e 30 do século XIX.

Os nei hua bi yan hu eram verdadeiras preciosidades e davam uma trabalheira aos seus mestres, que se dividiam em quatro escolas. A de Jing, oriunda de Pequim, fazia destas miniaturas verdadeiros poemas, recorrendo à caligrafia e à pintura. Alguns dos seus maiores mestres eram Zhou Leyuan e Ma Shaoxuan. O estilo Lu de Shandong, criado por Bi Jiurong em finais do século XVII, destacava-se pela pintura do esmalte em cerâmica. Os frasquinhos da escola Yue, de Guangdong, chamavam a atenção pelo seu colorido e os da mais moderna Ji, de Hebei, primavam pelos retratos e pelo hibridismo, convidando a pintura chinesa tradicional e a técnica a óleo ocidental para animar o interior dos frasquinhos.

No século XVIII a produção era elevada e na China oitocentista o rapé entrava no quotidiano do seu povo. Assim foi até à implantação da república, em 1912, altura em que o tabaco ralado perdeu popularidade para os cigarros enrolados. Enrolado estava também o Império do Meio, mergulhado em grandes convulsões políticas e sociais. A produção de frascos manteve-se e a procura aumentaria em meados do século XX, sobretudo da parte dos coleccionadores estrangeiros. Os artesãos serviram o novo público de entusiastas, animando a face das miniaturas com materiais semipreciosos, como o quartzo rosa, o coral ou o lápis-lazúli.

 

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Bi yan hu à lupa

Se tiver nascido de uma boa pedra de jade ou tiver o selo das oficinas do imperador, o frasquinho de rapé pode custar uma exorbitância, deixando qualquer um de queixo caído. Todos menos os coleccionadores que sabem também que o preço dum bi yan hu de porcelana do tempo dos imperadores Kangxi, Yongzheng (1678 – 1735) e Qianlong (1711 – 1799) pode estar pela hora da morte. Mas nem todas as peças centenárias são valiosas. É o caso das que foram produzidas nos anos em que reinavam Xianfeng (1831 –1861) e Guangxu (1871 – 1908), períodos de menor criatividade e que são compensados na mesma medida. Como diz o connoisseur chinês Zhao Ruzhen, o mais importante não é nem o material nem a data de produção, mas a genuinidade da peça e o seu valor artístico. Ainda assim, essa não é regra absoluta. É que há quem valorize o toque e a ergonomia, ou o simples facto do frasquinho ainda conter um fundo rapé.

 

Extensa colecção em Lisboa

Uma das melhores colecções de frasquinhos de rapé do mundo foi criada por Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), antigo Chefe de Estado português. São mais de 600 exemplares de materiais diversos que se encontram em exposição no Museu do Oriente, em Lisboa.