O culto a Chu Tai Sin

Durante três dias, de 20 a 22 de Junho, terá lugar nas águas do Porto Interior uma das mais características – e por ventura das menos conhecidas das gentes da terra – manifestações cultural-religiosas dos pescadores de Macau: o Da Jiu em honra de Chu Tai Sin, protector das gentes do mar, suas vidas e bens.

 

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Texto e Fotos Fernando Sales Lopes

 

Sem data certa, já que não se referencia como as outras festividades nos calendários solar ou lunar, os dias escolhidos para o culto a Chu Tai Sin são fruto de hermética tarefa da procura por divinação, elegendo-se os dias auspiciosos em honra da divindade, procurados no espaço temporal que medeia entre o terceiro e o quinto mês lunar. Nas águas do Porto Interior, em Macau, se realiza todos os anos a festividade envolvendo, hoje, algumas centenas de pessoas, já que a diminuição crescente da frota pesqueira, e a alteração do modo de vida da população piscatória, que se vem verificando desde a década de 90 do século passado, deixou para trás os tempos em que se contariam por milhares, os crentes que acorriam à festividade.

O navio de pesca é ainda, para alguns dos pescadores de Macau, para além de um meio de subsistência também a sua casa, o espaço familiar, onde se nasceu, se casou, teve filhos e netos, até se extinguir a sua vida. Isto foi assim por muitas e muitas gerações. Por isso não se estranhará que Chu Tai Sin seja venerado a bordo, e que contrariamente a outros patronos das gentes do mar como A-Ma ou Tam Kong, entre outros, não exista em terra nenhum templo a ele dedicado. Dos inúmeros templos de Macau apenas um tem uma representação da divindade. Também em Hong Kong apenas um templo existe em sua honra, o de Lung Ngam na aldeia piscatória de Tai O.

 

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O culto a Chu Tai Sin em Macau

O culto a Chu Tai Sin é originário de Pinghai, na Província de Guangdong, e dali foi trazido para Macau. Conta-se que, nos anos 20 do século passado, um pescador de Macau de apelido Ng, que por costume pescava nas águas adjacentes a Pinghai, num momento de aflição recorreu a um templo, tendo a monja por ele responsável aconselhado a que o pescador e a família pedissem a Chu Tai Sin pela resolução do problema de saúde que os atormentava. Assim fizeram e de imediato um deles teve cura milagrosa. Agradecidos e crentes nos poderes da divindade, trouxeram para Macau uma estatueta de Chu Tai Sin. Maan Sau Goo, assim se chamava a monja, terá então sugerido à família Ng a organização do primeiro Da Jiu em Macau, em honra do milagreiro. Certo é que espalhada pelas gentes do mar a notícia da cura milagrosa atestando os poderes da divindade, rapidamente o número de crentes nas suas virtudes curativas foi aumentando. Os milagres continuam a verificar-se, quer relativamente às questões da saúde como de protecção nas tormentas e nos perigos do isolamento daqueles cuja vida se passa nos longos dias do deserto mar tendo por luz o sol e as estrelas. Por protector têm Chu Tai Sin que marca presença em todos os navios de pesca.

Hoje a festa é organizada pela associação de pescadores Chek-lei. A importância do culto para os pescadores é perceptível na ritualização do espaço da festa, no desenrolar de sucessivas práticas visando os vivos, os antepassados, as inconstâncias da vida, o bem, o mal, e as interrogações e incertezas dos que enfrentam no dia-a-dia o inesperado dos elementos.

Não sendo tarefa fácil, pois durante três dias são constantes e variados os actos de culto profundos e por vezes enigmáticos, tentaremos dar ao leitor uma “visão” do desenvolvimento do Da Jiu a Chu Tai Sin em Macau.

 

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A festa e os rituais

O Da Jiu decorre durante três dias no Porto Interior, a bordo de um grupo de embarcações com funções distintas. Uma para a preparação das refeições, outra como centro administrativo e financeiro. Numa outra preparam-se materiais para as diversas queimas, ou os amuletos a serem distribuídos. Entre duas destas embarcações coloca-se a que se destina às práticas religiosas – o templo flutuante – cujo proprietário não esconde o orgulho que tal posição lhe confere como anfitrião deste espaço aberto ao sagrado. Sendo o Da Jiu um ritual taoista de veneração dos deuses, como festividade da religião popular o culto a Chu Tai Sin integra elementos do budismo e do culto dos antepassados. Aliás é preponderante a presença constante em todos os rituais dos Gui Si, leigos budistas, que oficiam, e das imagens de buda sakiamuny. O espaço onde se realizam os rituais, como espaço sagrado, terá que ser purificado. Este ritual marca o início da festividade. São os Gui Si que praticam há muito estes rituais, e que estão encarregados desta e de outras tarefas de culto.

Os participantes começam a chegar em tancares que fazem desde sempre o serviço de transporte entre a terra e as embarcações. Falta-lhes o encanto de outros tempos, mas cumprem a mesma missão. O som do La Ba, instrumento chinês de sopro, que será uma constante em todas as cerimónias religiosas, já se ouve em fundo. Os Gui Si estão frente ao altar principal, entoando cânticos. Percorrem a embarcação em fila indiana encabeçada pelo Gui Si principal, aquele que é responsável por todos os rituais. Com uma folha de toranjeira vai espargindo toda a embarcação, benzendo (limpando) o espaço. Detém-se frente a todos os altares deixando preces. Acendem-se pivetes, queima-se dinheiro de papel para apaziguar os espíritos. Fazer e distribuir por todos os participantes amuletos em pedaços de tecido e papel, onde se imprimiu um selo divino, é uma prática ritual desta festividade. Uma actividade que decorre na embarcação a isso destinada.

Ao largo os participantes lançam papéis-dinheiro para os espíritos, e em pequenos barquinhos de papel, o sustento para os que no mar perderam a vida. No barquinho segue lenha, simbolizada em pequenos pedaços de madeira, arroz, óleo, sal, chá, vinho e sementes de lótus.

Organiza-se o espaço. Na proa são colocadas as figuras de papel do Rei dos Espíritos, Tai Si Wong. Perto deles a bombordo o local onde se queimam as oferendas aos deuses, a estibordo onde se queimam aos maus espíritos. Figuras de papel encostadas de um lado e do outro da proa, esperam ser queimadas nas duas cerimónias de Si Yau, que se realizam depois do pôr-do-sol para acalmar os espíritos dos que desapareceram no mar por acidente. Na popa é erigido o altar principal onde ficará durante os três dias a imagens de Chu Tai Sin trazidas pelos pescadores. Perto, a bombordo o Altar dos Antepassados.

 

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Si Yau: Alimentar os espíritos

Convidam-se os deuses para que compareçam ali onde se realiza a cerimónia Si Yau. Um dos Gau Si transporta o incensório manual, nunca tocará no incenso, esse é para os deuses e não pode ser contaminado. Os cânticos os movimentos significantes, num chamamento que se quer bem-sucedido. Este conjunto de peças rituais – o Maan Daan – apenas é utilizado nas cerimónias Si Yau. A comida para alimentar os espíritos esfomeados, daqueles que desapareceram por acidente no mar, aguarda o sinal de um Gau Si para ser lançada às águas.

 

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Gung Tin: Oferta aos deuses

A cerimónia tem lugar na manhã do segundo dia da festividade e é normalmente a altura da concentração de mais pescadores. Trata-se de uma das mais importantes cerimónias. Começam a chegar gentes do mar com sacos de frutas, incensos, flores e roupas e dinheiro falso. À proa da embarcação-templo, prepara-se o espaço para a cerimónia de Gung Tin. Os pacotes de chá fazem parte integrante desta cerimónia. Um chá doce de jujubas – tâmaras da China – vermelhas, de cor auspiciosa, a que se juntam barras de açúcar que estiveram no altar principal durante os rituais. Uns bebem-no logo ali, outros levam-no para as suas embarcações. O seu efeito é revigorante.

Feita a purificação do espaço, cabe a um pescador transportar o cavalo de papel onde é colocado o dinheiro para os deuses, e que se queima para que o fumo transporte a dádiva. O recinto onde a cerimónia se irá realizar é espargido. Depois da cerimónia de purificação, vem a segunda parte, com a participação directa de cada família na festa de Chu Tai Sin.

Seguindo as regras, o representante de cada família, ao ouvir o seu nome, dirige-se para onde o tabuleiro se encontra. Ergue-o por três vezes aos céus. Acende três pivetes, um deles vai colocá-lo num incensório à proa, os restantes são apagados e levados para a sua embarcação. Em momentos de tormenta voltarão a ser acesos, os deuses zelarão. O dinheiro falso, esse é logo ali queimado para satisfação das divindades. O verdadeiro é bem-vindo para pagar as despesas da festa.

Purificado o espaço, os Gui Si, informam as divindades de que os pescadores precisam de ajuda para a superação dos obstáculos da vida. É este o objectivo da cerimónia seguinte.

 

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Gwoh Gwaan: Passagem para a felicidade

Cerimónia destinada às crianças, os que nascem e crescem nos barcos sujeitos a todos os perigos, conta contudo com a presença de idosos. As vulnerabilidades do princípio e do fim da vida.

Os obstáculos são representados por um pano de seda vermelha, pendurado à direita do altar principal, sob o qual os pescadores devem passar, pelo menos, três vezes. Os caracteres chineses que o encimam anunciam que aquele é um local de passagem para ser atingido o bem-estar. Os Gui Si enumeram os obstáculos, que são a Barreira do Choro e do Grito, a Barreira da Bacia de Sangue, a Barreira da Vida Curta e a Barreira dos Maus Espíritos. Enquanto são enumeradas as barreiras os participantes circulam em fila indiana à volta do barco-templo, e passam por debaixo do pano. Ao passarem são espargidos por um Gui Si.

Agora é necessário preparar o espaço para a próxima cerimónia.

 

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Juk Sing: Oração às estrelas

Na decoração para este ritual participam os Gui Si, forrando as mesas com papel vermelho e decorando-as com desenhos de animais e caracteres auspiciosos. Usam bagos de arroz, a base alimentar. Dá-se aos deuses para que nunca nos falte. O tabuleiro das estrelas, onde se colocam grãos de arroz, jujubas, sapecas e um livro com o nome de todos os participantes, começa as ser preparado. Findos os preparativos os membros da associação de pescadores dirigem-se para o altar principal, iniciando a cerimónia com a queima de pivetes. Os Gui Si entoam as preces e começam a ler os nomes dos participantes, lista que irá, terminada a leitura, para o tabuleiro das estrelas.

O Gui Si principal, seguido pelos outros e pelos membros da associação de pescadores, começa a circular em volta das mesas com o tabuleiro. Dadas três voltas os pescadores sentam-se nos lugares que lhes são destinados. O movimento repete-se, agora, apenas pelos Gui Si, que começando em ritmo lento, terminam em corrida acelerada. Quando o Gui Si principal entrega o tabuleiro das estrelas ao presidente da associação, desejando a protecção dos deuses para a associação e dos seus associados, termina a cerimónia. Guardam-se as alfaias rituais, as vestes. A função dos Gui Si no Da Jiu dos pescadores de Macau está terminada regressando de imediato a terra. Mas a festividade de Chu Tai Sin ainda não terminou.

 

A escolha do guardião de Shakyamuni

Bebe-se, mais uma vez, o chá doce de jujuba. Consultam-se os deuses para determinação da hora a que se iniciará a divinação que escolherá as famílias candidatas a guardiãs das principais estatuetas, durante um ano. Trata-se de duas representações de Buda: Sakyamuni sentado e de pé. O barco onde decorrerá o próximo Da Jiu, esse ainda não se conhecerá esta noite, a cerimónia para essa escolha terá lugar no 15.º dia da primeira lua.

A noite já vai alta, a espera é longa, mais uma oportunidade para se prolongar o convívio. Finalmente a hora é anunciada. Frente ao altar principal inicia-se, agora, o processo divinatório para a selecção das famílias através do lançamento das tabuinhas – as Bui. Perante a pergunta formulada, a resposta será positiva ou negativa. Os resultados vão sendo registados. O processo é moroso, são várias as rondas de consulta, até à determinação do vencedor. Aquele acto transforma-se num jogo, num acto lúdico, e a assistência começa a entusiasmar-se com o decorrer da consulta. Finalmente estão escolhidos os eleitos. A festa terminou. O mar espera pelos pescadores. Num ápice se recolhem as divindades que cada um trouxe e que estiveram durante três dias ali no altar principal.

Preparam-se as imagens de Buda. Sakyamuni passa cuidadosamente para o tancar que o transportará até à sampana que será a sua nova casa. Nos sacos a imagem de Chu Tai Sin, que regressará ao seu altar de direito em cada uma das embarcações, bandeiras e um ramo de flores, que serão atados na proa, e alguma comida.

Já é dia quando se inicia o regresso. Com o dever cumprido para com Chu Tai Sin. Com a certeza de que ele lhes valerá nas doenças ou na tormenta.

Os crentes sabem que a continuidade do Da Jiu dos pescadores de Macau, o culto a Chu Tai Sin, está em risco de acabar devido a mudança do estilo de vida das gentes do mar. A diminuição abissal da frota, mas também problemas que se prendem com outras questões, nomeadamente burocráticas, que fazem com que aos crentes de outros locais, ou com embarcações registadas noutros portos, lhes seja muito difícil estar presentes, são causas já evidentes. Acresce a falta de interesse dos jovens pela vida do mar e pelas práticas do culto. Quem saberá no futuro organizar e oficiar toda esta complexidade de rituais?