São João Baptista, Padroeiro da Cidade

O Dia do Padroeiro de Macau, São João Baptista (24 de Junho), foi comemorado como Dia da Cidade, e oficialmente como tal assinalado, desde 1622 – quando foi instituído pelo Senado para lembrar a vitória sobre os holandeses – até 1999. Uma tradição macaense que perdurou por mais de três séculos.

 

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Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O Dia da Cidade foi instituído pelo Leal Senado em 1622, para que a partir daí fosse para sempre comemorado, como agradecimento ao santo pela vitória sobre os holandeses. Por esta vitória se ter concretizado no seu dia (24 de Junho), e ser tida como um milagre. Milagre porque, à época, Macau estava desprovido de gente, de organização de defesa não apenas humana, mas também pela ausência de muralhas e baluartes defensivos seguros e armados.

Os ataques que se vinham sucedendo desde o princípio do século, obrigaram a que começasse a ser construído um sistema defensivo, visto pela parte chinesa como uma maneira dos portugueses imporem o seu poder em Macau.

Assim, a invasão de 1622, que se iniciou no dia 22 de Junho com o desembarque de 800 soldados na praia de Cacilhas, veio encontrar Macau com cerca de 200 homens com alguma competência para pegar em armas, e três baterias – uma no sítio onde depois foi construído o Forte de Santiago da Barra, outra em S. Francisco, e a terceira no Bom Parto.

A cidadela do Monte tinha começado a ser construída em 1616, não estando concluída ainda, e a ermida da Guia não estava fortificada nem preparada para qualquer acto de defesa. Era este o panorama defensivo de uma Macau que apenas poderia contar com actos de valentia, vantagens no conhecimento da terra, ou milagres!

 

Monumento da Vitória_GLP_01

 

O filme dos combates

A esquadra holandesa, comandada pelo almirante Reijerson, era composta por 15 navios, dois dos quais ingleses, e as forças de desembarque por 800 homens sendo 600 europeus e 200 japoneses, indianos e malaios, segundo descrições da época.

O comandante neerlandês escolheu o dia 24 para o desembarque mas, como manobra de diversão, no dia anterior destacou três navios para bombardearem ao longo da costa, na intenção de confundir a defesa quanto aos seus objectivos e intentos. Um dos navios bombardeou no dia 23 S. Francisco, que respondeu à altura, e outros dois navios continuaram a bombardear o forte logo pela manhã de 24. A guarnição defendeu-se bem, atacando quanto pôde e conseguindo inutilizar um dos navios atacantes – o Gallias – que viria, mais tarde, a afundar-se, na sequência da bombarda o ter atingido por 25 ou 26 vezes.

O desembarque começou pelo lado da praia de Cacilhas a seguir ao nascer do sol. Para os receber estava António Rodrigues Cavalinho, emboscado num banco de areia, com 60 portugueses e 90 filhos da terra. Há combates, o Almirante é ferido. António Rodrigues recua. Os holandeses sobem a Guia perseguindo os da terra. No meio da confusão da praia, vem resposta dos jesuítas do Monte que, lá do alto, disparam três bombardas para a frota inimiga.

 

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Sorte? Talvez! O princípio do milagre! Uma das bombas cai no navio paiol, que se incendiou, ferindo e matando membros da guarnição. O feito ficou sendo atribuído ao padre italiano Rho, um jesuíta matemático que, sem ter tido tempo para fazer as contas, começou aí a resolver o grande problema que então se vivia.

A confusão que se seguiu entre as hostes holandesas – os da praia, os dos navios e os que por terra tentavam subir a Guia ou avançar sobre a cidade – e a força que a façanha de Rho deu aos de Macau, em cargas de fogo aqui e ali, resultou na retirada holandesa que deixava caída por terra, segundo cronistas da época, metade dos homens que havia desembarcado.

Muitas histórias se contam em redor deste feito, onde não faltam escravos da frota holandesa a perseguirem, despojarem e deceparem holandeses, ou gente do povo de Macau a ter papel relevante na luta, como uma “padeira de Aljubarrota” macaense que, com um espeto, dizem uns, ou uma alabarda, dizem outros, terá mandado para o outro mundo uma mão cheia de invasores.

Em 1871 foi inaugurado, no Jardim da Vitória, um monumento, que deixa marcado na pedra, para a posteridade, o feito heróico das gentes de Macau.

 

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Macau depois da vitória sobre os holandeses

Milagre ou não, pois para além da coincidência do dia do padroeiro com a vitória, também se diz que o manto do Santo terá desviado os tiros inimigos salvando a cidade da invasão. A verdade é que o Senado, ao declarar que daí para a frente aquele seria o Dia da Cidade, estava, sem o saber certamente, a marcar o nascimento de uma nova Macau.

Depois da vitória sobre os holandeses Macau passou a ser visto com outros olhos por parte das autoridades chinesas. Assim, a cidade foi rodeada de muralhas, balizadas por seis baluartes guarnecidos com artilharia. Na verdade, as gentes de Macau ao defenderem o estabelecimento estavam a defender uma parte da China.

Um ano depois, em Junho de 1623, era nomeado o primeiro Governador de Macau, D. Francisco de Mascarenhas, demonstrando também uma maior preocupação da Coroa em relação a Macau. No entanto, o poder local continuou a residir nos homens-bons do Leal Senado que governavam a cidade com grande autonomia.

 

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Comemorações da data: oficiais e populares

Dizem os escritos da época que os vencedores foram dar graças à Sé Catedral, onde o Senado e o povo prometeram que fosse feita uma comemoração idêntica na véspera da festa de S. João Baptista.

Ficou pois o Leal Senado obrigado a celebrar anualmente, nos dias 23 e 24 de Junho, a festa de São João Batista em homenagem aos heróis de Macau, que defenderam a cidade do ataque estrangeiro.

Durante muitos anos realizou-se a procissão em honra do Padroeiro da Cidade, onde sobressaía a imagem de S. João Baptista que, em andor transportado por membros do Senado, saía da Sé e percorria as ruas do centro, acompanhada pelos fiéis, tendo por fundo a música da banda. Outro ponto alto da celebração religiosa era a chamada Missa da Vitória.

Parece ter-se mantido sem interrupções a tradição do culto a São João Baptista em Macau, mesmo quando, com vigor, se separavam as águas entre o que era secular e eclesiástico, quando as jovens repúblicas portuguesa e chinesa davam os primeiros passos.

 

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As vicissitudes do tempo e o Padroeiro

O Boletim do Governo Ecclesiastico da Diocese de Macau, números 119 e 120 (Maio e Junho de 1913), nas páginas 168 e 169, referia-se à festa de S. João do seguinte modo: “A festa do Padroeiro da cidade, o glorioso Precursor, tambem não decahiu do seu tradicional esplendor, apezar das vicissitudes do tempo.

A procissão, que se faz na melhor ordem, em nada desmereceu, sob o ponto de vista religioso, das de outros annos, em que o elemento official lhe dava grande luzimento. A devoção dos macaenses para com o seu Santo Protector não diminuiu (…) Antes da procissão pregou o muito Revdo. Chantre Moraes Sarmento um bello sermão em que recordou as honrosas tradições d’esta terra, a que anda ligada a celebração d`estes cultos em honra do Santo Precursor.”

 

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E as festas populares?

Certamente que se realizavam festejos populares para lá dos religiosos, já que, para além da comemoração da vitória sobre os holandeses, o S. João é um Santo Popular ligado à diversão e aos folguedos.

Terá sido assim? Leonel Barros (Jornal Tribuna de Macau, 21/6/2008) escrevia: “Depois do acto religioso, a música e o folhedo dominavam o ambiente festivo, semelhante ao típico arraial português, que invadia vários pontos da cidade. Durante mais de três séculos, os festejos do Dia da Cidade foram celebrados com todo o esplendor. A cidade enchia-se de alegria e animação, com as comemorações a prolongarem-se até às primeiras horas da madrugada seguinte”.

Se terão sido assim as antigas comemorações ao Padroeiro não sabemos, mas existem referências mais próximas. Recordo-me das comemorações populares do São João de 23 para 24 de Junho em Coloane, na praia de Hác-sá, que se realizavam anualmente até princípios dos anos 90 do século passado.

 

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Era festa rija à maneira portuguesa, à moda dos bairros populares embora com as adaptações que sempre têm as tradições que viajam pelo mundo. Arraial. Marchas populares e desfiles a cavalo. Tasquinhas de comes e bebes, onde não faltava a sardinha e o frango assados. Barracas de tirinhos e rifas, de lançamento de argolas não para os gargalos das garrafas, mas para os pescoços de patos! E, fogueiras, claro.

A organização era dos Reformados da PSP que mantinham no local um pequeno estabelecimento de comes e bebes durante todo o ano. A festa do S. João em Coloane – a única que conheci em todo o território de Macau – acabou quando, por razões que não me recordo, os reformados ficaram sem o espaço, e todo o Macau sem o tradicional arraial da festa do S. João.

Houve depois uma versão mais “sofisticada” da comemoração dos Santos Populares organizada pelo Turismo durante alguns anos, integrada no programa das comemorações em Macau do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Realizava-se aproveitando os artistas que vinham de Portugal para as comemorações da data. Uma festa nas arcadas do Fórum Macau que juntava todos os santos populares. Já no final do século XX, a festa passou para o interior do Restaurante Lusitano no CAT. A ideia parecia ser a de preparar a continuidade dos festejos pelas mãos de um particular, contudo não surtiu efeito.

Mas a tradição do arraial em honra de S. João Baptista voltaria a Macau em 2007, por vontade de algumas associações de matriz portuguesa. Ainda não foi na rua mas sim na Escola Portuguesa. No ano seguinte, as comemorações assentam arraiais no tradicional e patrimonial Bairro de S. Lázaro. Tem sido a unidade entre a Casa de Portugal, a Associação dos Macaenses, a Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau, a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e o Instituto Internacional que tem permitido, desde então, a realização anual do Arraial de S. João Baptista, o Padroeiro da Cidade de Macau.

 

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