Ano Novo Chinês | Tempo de renovação e de família

É o momento alto da cultura tradicional chinesa, tempo de reunião e de renovação. A festividade do Ano Novo Chinês, que marca a chegada da Primavera, tem origem nos meios rurais e data dos tempos do mítico Imperador Amarelo. Em Macau, onde esta festividade teve sempre características próprias, a população segue à risca as tradições. Limpam-se e decoram-se as casas, presta-se homenagem às divindades e antepassados, visitam-se casinos e lançam-se panchões. Ninguém faz frente à sorte.

 

 

Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Ho Sai Mui está sentada dentro da pequena loja de pivetes e velas Pio Kei, perto do Mercado de São Lourenço. Todos os anos, por esta altura, Ho compra enfeites para decorar a casa e receber o ano que está à porta. No saco de plástico já estão guardados letreiros para colocar na tábua ancestral lá de casa, onde se presta homenagem às divindades e aos antepassados. “A tábua deve estar limpa e bela, só assim os deuses nos abençoam, temos trabalho e refeições completas”, explica pelo meio Lei Si Kun, o responsável pelo negócio.

Ho tem 84 anos, sorri-nos. Leva também maços de dinheiro em papel para queimar e distribuir riqueza pelas gerações passadas e ainda os tradicionais dísticos (hui chun 挥春), que vai colocar à porta de casa. Estes dizem: ‘Que a paz e a segurança estejam contigo onde quer que vás’ e ‘Dar as boas-vindas à Primavera e à felicidade’. “É para trazer sorte, para que todos vivam bem, para que neste novo ano cheguem coisas boas”, refere a mulher, enquanto Lei Si Kun faz as contas. “São 205 patacas”, diz o empresário. Ho Sai Mui mantém a bengala na mão, retira o dinheiro da bolsa que tem à cintura. Traz hoje um chapéu grená, quente, próprio do Inverno, embora estejamos a poucos dias da Festa da Primavera. Depois abandona o local.

 

 

Neste princípio de tarde de segunda-feira estão sempre a chegar clientes à Pio Kei. Um homem pergunta o preço de um objecto dourado, que parece o suporte de uma vela. O dono, acompanhado pelo filho Lei Ka Wai, vai-se dividindo entre clientes.

A Pio Kei abriu as portas há cerca de uma década, mas Lei Si Kun já está no negócio há 35 anos. Ao fundo da rua encontra-se ainda a banca onde tudo começou e é a mulher de Lei que está lá hoje a trabalhar. É um negócio estável, refere o responsável. Enquanto se continuar a prestar culto aos deuses, continua-se a vender. Lei é um homem magro, baixo, veste uma t-shirt cinzenta, braços descobertos neste Inverno ameno. Para 2017 quer “saúde, uma sociedade harmoniosa, menos discussões, mais trabalho para a população”. E para que isso aconteça há que “agradecer aos deuses”, alimentá-los com “porco assado, frutas, laranjas, acender velas e incensos”.

 

 

Evocação do tempo e da tradição

Lei Ka Wai, 25 anos, está hoje a ajudar o pai na loja. Traz um boné preto, pala virada para trás, recebe-nos entre pacotes de incensos, embrulhos com papéis vermelhos, dourados, floridos, caixas e caixinhas impossíveis de decifrar à primeira vista. Queremos saber o que pensa de tudo isto. Para Lei Ka Wai trata-se de um novo ciclo de esperança. “No novo ano abandonamos aquilo que é antigo”, diz.

É uma expectativa que se reflecte nos vários nomes atribuídos ao longo dos tempos à Festa da Primavera (chun jie 春节), como também é conhecida a festividade do Ano Novo Chinês. Alguns exemplos: Tempo do Começo (yuan chen 元辰), Primeiro Dia (yuan ri 元日), Primeira Manhã do Ano (yuan dan 元旦). “Yuan significa ‘começo’, dan quer dizer ‘manhã’. Por outras palavras, fim do velho ano, início de um novo yuan dan representa o fim do Inverno e a esperança de uma gloriosa Primavera em termos de colheitas”, explica Rui Rocha, estudioso da cultura e tradições chinesas, referindo que esta festividade, que celebra o primeiro dia do calendário lunar, é originária de uma sociedade predominantemente agrícola. “Durante mais de 3000 anos, até à Dinastia Qing (1644-1911), a China seguiu o calendário lunar para registar o tempo, dos dias e das noites, das estações e das colheitas”, explica.

 

 

À semelhança do Ocidente, a chegada de um novo ano é um período de reflexão e de renovação. Não é claro quando se começou a celebrar, mas diz a lenda que manifestações em pequena escala eram conhecidas durante o período do mítico Imperador Amarelo (2697 a.C.-2597 a.C.). Rui Rocha fala da existência de relatos que remontam à Dinastia Zhou (1046 a.C–256 a.C). “No Clássico da Poesia, que é da altura do Período do Outono e da Primavera, já há citações sobre estas festividades”, conta.

Outra das lendas sobre esta celebração: Nian 年 (ano) era o nome de um monstro mítico que saía à rua para caçar animais, pessoas, arruinar campos de cultivo. Por ser sensível a ruídos e à cor vermelha, os chineses começaram a decorar as casas de vermelho e a lançar fogo-de-artifício e panchões para lhe fazer frente.

A importância atribuída ainda hoje à festividade, continua Rui Rocha, é uma forma de invocar a tradição, uma espécie de solidariedade com o passado. “Uma evocação do tempo e sobretudo uma ligação intergeracional e uma evocação da tradição.”

 

 

Fernando Sales Lopes, historiador e mestre em relações interculturais, compara esta festividade ao Natal no Ocidente. “É a grande festa de família”, nota. “É o princípio do ciclo da prosperidade, da renovação, e as pessoas têm de estar unidas.” É também durante este período que se regista um dos maiores fenómenos de migração humana do planeta. “São milhões de pessoas a circular, porque toda a gente quer ir ter com a família”, realça Sales Lopes. Estatísticas oficiais revelam que, só no ano passado, contabilizaram-se perto de 3000 milhões de viagens (via aérea e terrestre) durante a Festa da Primavera em toda a China.

 

Casino, A-Má e panchões

De Este a Oeste, Norte a Sul, na China os festejos do Ano Novo podem variar de região para região. As diferenças “não são muito significativas”, revela Fernando Sales Lopes, realçando que a alimentação poderá ser um dos factores diferenciadores. Macau, porém, “tem algumas particularidades”, continua o historiador, explicando que nesta região, que no passado foi terra de pescadores e gente do mar, é prestado culto à deusa protectora dos navegantes, A-Má.

“Antigamente [essas pessoas] não podiam pisar terra e só o faziam na festividade de A-Má e sobretudo no Ano Novo Chinês. Macau transformava-se, os barcos encostavam e andava tudo por terra”, recorda ainda o historiador, notando que ainda hoje o antigo templo é paragem obrigatória.

 

 

No passado, uma outra característica local da festividade era o rebentamento de panchões. “Além de Macau ter tido a grande indústria dos panchões, foi durante muito tempo o único sítio onde se podiam rebentar e toda a gente vinha para cá.” Hoje, o lançamento dos panchões continua a fazer parte da tradição local, embora esteja limitado a certas zonas da cidade.

A ida aos casinos tornou-se também numa tradição local. Durante três dias é permitido aos funcionários públicos, que não podem jogar ao longo do ano, entrar nos templos do jogo. E também aqui a sorte ao jogo pode fazer muito pelo novo ano.

 

 

*****

Festividade do Deus do Fogão no pontapé de saída

Do primeiro ao último dia, as celebrações do Ano Novo Chinês duram aproximadamente três semanas. O primeiro momento dos festejos acontece ao 23.º dia do último mês lunar, quando se celebra a Festividade de Zao Jun, Deus do Fogão, e termina no 15.º dia do primeiro mês com o Festival das Lanternas.

“O Deus do Fogão é aquele que está em casa das pessoas, sabe tudo sobre elas e é perigosíssimo”, conta o historiador Fernando Sales Lopes. A esta divindade, retratada numa imagem atrás do fogão das famílias, dá-se muito que comer e que beber para que esteja embriagada na hora de relatar o que se passa em terra ao Imperador de Jade, senhor dos céus, que consoante as informações vai punir ou recompensar as famílias. Ainda antes de partir, passa-se mel pelos lábios do deus para adoçar as palavras e queima-se o seu retrato para que assim ascenda aos céus. O regresso de Zao Jun ao lar dá-se na noite de Ano Novo, quando as famílias voltam a colocar a sua imagem atrás do fogão. Fernando Sales Lopes salienta que, ao longo do período em que Zao Jun está ausente, e que marca a última semana do ano, “os chineses andam em liberdade”. Nessa altura, as famílias não estão sob vigilância e “vale tudo”.

 

*****

Tradições do Ano Novo Chinês

 

Limpeza das casas

Deitam-se fora mobílias velhas. As casas são limpas e varridas para eliminar energias velhas. As vassouras são deitadas fora para evitar que a sorte seja varrida para fora de casa.

 

Decoração

À porta de casa são pendurados enfeites vermelhos para dar as boas-vindas ao novo ano. Usam-se desenhos recortados em papel, que trazem prosperidade. Há quem compre cata-ventos para afastar a má sorte.

 

Dança do Dragão e do Leão

A Dança do Dragão, tradição comum entre as comunidades rurais, atrai prosperidade, sorte e renovação. A Dança do Leão serve para afastar os maus espíritos e a má sorte.

 

Fogo-de-artifício e panchões

Serve para espantar os maus espíritos e atrair sorte.

 

Lai Si

Envelopes vermelhos com dinheiro. Acredita-se que o dinheiro vai proteger as crianças dos maus espíritos, trazer saúde e longa vida.

 

Gastronomia

Os dumplings têm forma de lingotes antigos e atraem fortuna e sorte; os crepes significam boas colheitas e prosperidade; rebentos de bambu representam mais estatuto e bons negócios; peixe quer dizer ab