Manuel Vicente, o homem além do arquitecto em “A Desmontagem do Desconhecido”

O nome de Manuel Vicente fez-se grande na arquitectura, mas foi a personalidade do criador que a escritora Raquel Ochoa capturou no ensaio biográfico “A Desmontagem do Desconhecido”, obra lançada em Macau, que estará disponível em breve em Portugal.

Manuel Vicente figura, segundo os seus pares, entre os maiores arquitectos da segunda metade do século XX, em Portugal, mas o prisma que a escritora pretendia explorar em “Manuel Vicente. A Desmontagem do Desconhecido” era completamente diferente.

“Queria captar a personalidade e sobretudo um pensador brilhante, com uma capacidade para pensar e interessar-se sobre as coisas mais banais e comunicá-las de uma maneira sofisticada”, afirmou a escritora, em entrevista à agência Lusa, no dia em que se cumpriram quatro anos do desaparecimento de Manuel Vicente (1934-2013), conhecido como o “arquitecto de Macau”.

Raquel Ochoa cedo percebeu o “desafio” que tinha em mãos, iniciado em 2009, e que culminou no ensaio biográfico editado pela Docomomo Macau, lançado no âmbito do festival literário Rota das Letras, e que vai ser apresentado em Portugal “nos próximos meses”.

Após uma primeira abordagem, seguiram-se longas conversas, principalmente ao almoço, em visitas a casa do arquitecto, recorda. Era para ser uma biografia, mas não chegaria a ser. Raquel Ochoa elaborou um primeiro manuscrito, e contava com o arquitecto em particular para colmatar falhas e preencher o “todo cronológico” que não conseguira ainda alinhavar, mas Manuel Vicente seria internado dias depois.

Quando o arquitecto morreu, o manuscrito estava na sua mesinha de cabeceira. “Tenho a certeza de que não terá lido mais do que uma ou duas páginas”, conta a escritora, que teve de rever todo o texto, adaptando a forma do livro, acabando “por aproveitar muito o discurso directo e frases definidoras do seu carácter, da maneira como via o mundo, muitas das quais até com cariz filosófico a reter”.

“O meu fascínio residiu no facto de ter a companhia de alguém que via os outros como interlocutores maiores, sempre, sem condescendências”, sublinhou Raquel Ochoa, para quem Manuel Vicente “era daquelas pessoas que todos gostam de ter para animar uma festa, porque de facto não sabia estar sem engajar toda a gente e tirar o melhor de cada um”.

“Ele tinha essa capacidade interessante de identificar rapidamente o que fazíamos bem e o que fazíamos mal e focava-se no que fazíamos bem. Dava sempre a entender que apreciava pelo menos uma das nossas facetas e isto é um dos aspectos que acho muito interessante nele como homem”, descreve.

A obra nunca foi pensada em termos de análise arquitectónica, como sublinha, mas a arquitectura afigura-se indissociável: “Ele respirava-a de uma forma tão sôfrega que trabalhar ou lidar com Manuel Vicente também altera muito a percepção que temos da arquitectura”.

“A arquitectura mete-se muito com as nossas vidas e era importante que o soubéssemos”, observa, exemplificando: “Quando entramos num CCB sentimos uma coisa e no Mosteiro dos Jerónimos sentimos outra… Sentimos os espaços que nos envolvem e vivemos isto de forma subconsciente. Às vezes entramos em sítios que nos desagradam visceralmente e nem sequer sabemos e até ficamos irritados a falar com a pessoa com quem estamos ou com pressa para irmos embora…”

“Por mais trivial que seja uma vida, ninguém se deve sentir insignificante, pois cada indivíduo pode sentir-se original e relevante num local arquitectónico com esta virtualidade”, cita Raquel Ochoa que, na obra, acrescenta que o projecto da vida de Manuel Vicente “consistiu em melhorar os espaços através da inclusão no meio ambiente e de forma a que as pessoas sintam aquele ambiente artificial, o seu”.

Isto “é brilhante e ele transportava isso para os edifícios”. “Fazer com que uma pessoa se sinta especial num espaço arquitectónico é um talento – a ambição de um arquitecto”, afirma a escritora, para quem as obras de Manuel Vicente retratam o “diálogo” – ao contrário de monólogos dos dias de hoje.

“Ele criava esse diálogo nas obras – e isto está estudadíssimo. Só chegava ao fim do projecto a dialogar com os outros e isso são as histórias épicas dos ateliês dele”, enfatiza.

No ensino também fugia a padrões: “Dava realmente espaço aos alunos para serem mais criativos e irem buscar o seu lado mais original”, contrariando a “estandardização”.

“Ele estimulava cada um a imaginar o seu projecto da forma mais bizarra e à sua imagem e semelhança. A forma, os desafios e os ‘nãos’ viam-se depois”, sublinha.

“Como referiu uma aluna: ‘Existia o Manuel Vicente e depois existiam os outros todos’”.