Filipe Dores | Pinceladas solitárias premiadas

O jovem artista macaense foi nomeado pela terceira vez para os galardões atribuídos no âmbito da 205.ª exposição organizada pelo Royal Institute of Painters in Water Colours, em Londres. Em 2015, a obra “Noite de Mário” foi premiada com o “John Purcell Paper Prize” e exibida, na Galeria Mall, na capital inglesa, algo raro para artistas asiáticos.

 

 

Texto António Conceição Júnior

 

Filipe Miguel das Dores nasceu em Macau há 28 anos, é finalista do curso de Artes Visuais do Instituto Politécnico de Macau, conta já com dois prémios da Royal Institute of Painters in Watercolours e é candidato a um terceiro prémio pela mesma instituição britânica – onde, aliás, voltou a expor em Abril, nas Galeria Mall de Londres, duas obras seleccionadas entre mais de 1000 concorrentes.

Feita esta breve introdução, há que considerar que Filipe Dores é uma das raras revelações no panorama artístico dos últimos anos, algo que se pode contar pelos dedos de uma mão, merecendo destaque especial pelo meio utilizado, a aguarela, pela sua escala e pelo ineditismo do modo como foi utilizado, bem distante dos grandes expoentes da aguarela de Macau, nomeadamente George Chinnery, George Smirnoff e Luís Demée, mas nem por isso com menor merecimento.

 

 

Existe alguma razão para que tenha enveredado pelo território da arte em geral e da aguarela em particular? Começou com que idade?

Depois do nono ano, escolhi a área das artes para continuar o ensino secundário na Escola Portuguesa, porque achava que era a área que gostava mais e era mais fácil de passar de ano, mas tal não correu como eu pensava. Chumbei no primeiro ano lectivo. No início do ano lectivo, fui à procura do meu primo que tinha acabado o curso de artes visuais, e ele começou a ensinar-me a desenhar e a pintar. Comecei então a fazer sketchs rápidos e alguma pintura abstracta. Usámos todos os materiais possíveis para pintar. Por exemplo, retiramos uma porta deitada ao lixo para pintar, aqueci a porta, lancei tinta-da-china, tinta acrílica e a óleo… Foi assim que perdi o interesse nas aulas normais na escola. Depois escolhi o curso nocturno para concluir o secundário, enquanto trabalhava a tempo inteiro ou em regime part-time. Ao mesmo tempo praticava a técnica do desenho para passar nos exames de admissão para o curso de artes do Instituto Politécnico de Macau.

O que o levou a escolher a aguarela, considerando que ela é solúvel, e como tal existe um grande desafio para pintar camadas…

Comecei a pintar em aguarela para passar nos exames de admissão do Politécnico, porque a aguarela é um material que seca muito rápido e era uma boa alternativa para aplicar nas provas práticas, que tinham a duração de três horas. No início não pintava com tantas camadas. Certa vez um amigo que pintava muito bem com aguarela aconselhou-me a não utilizar esta tinta para fazer tantos detalhes, já que a aguarela é tida como um material que requer maior liberdade de expressão. Como sou teimoso, fiz o contrário do que ele disse. Pintava cada vez mais em detalhe.

O seu avô também teve uma grande influência no seu trabalho. Toda a geometria que existe nas suas aguarelas ou a própria escala pouco usual das suas obras são influências directas do seu avô?

Quando o meu avô fez as suas últimas maquetes, eu tinha apenas seis ou sete anos. Não sabia nada sobre as escalas que ele usava, mas eu gostava de andar atrás dele a tirar fotografias dos edifícios para ter as referências para fazer maquetes. Acho que a geometria que uso nas minhas aguarelas foi sendo influenciada pelas plantas e alçados que o meu avô usava como referência. Mas não só; a citação de Antoni Gaudí de a linha recta pertencer ao homem e a curva, a Deus também me estimulou a procurar exprimir a sensação de humanidade nos meus trabalhos.

 

 

Há um outra área que confere uma atmosfera muito especial às suas obras: paisagens urbanas nocturnas e despovoadas. Há como que um enorme silêncio em quase todas elas. Quer falar sobre isso?

Cresci numa família singular. Era sempre difícil fazer amigos quando era criança. Eu era muito competitivo e queria sempre ser uma das personagens principais do grupo, mas tanto exagero meu fazia-me ficar cada vez mais afastado da malta. Esta foi a razão porque comecei a pintar ruas sem pessoas…

Como prepara o seu futuro enquanto artista?

Nunca pensei muito no futuro, ou seja, tenho projectos para criar novas peças de arte, tenho uma visão do que tenho de fazer nesta área das artes, mas, por outro lado, não penso na vida real, ou como é que vou sobreviver. Isso depende do que eu preciso. Neste momento preciso de pagar a renda do estúdio, os materiais para pintar, e a minha comida. Se através da venda das minhas pinturas puder ir sobrevivendo, irei continuar a usar o maior tempo possível para criar arte e absorver conhecimentos de outras áreas, como a história, a filosofia, a política e outros saberes.

 

Há alguma observação que queira fazer no que se refere ao meio artístico de Macau depois de ter conhecido o de Portugal e o de Inglaterra?

As cidades europeias estão cheias de arte em todo o lado. Em Lisboa a maior parte dos edifícios está definida em antes e depois do terramoto de 1755. Os bairros antigos são preciosos e os turistas visitam-nos muito. Quando fui ao Bar Terraço do Centro Cultural de Belém, reparei que as cadeiras eram concebidas pelo designer Daciano Costa. As cadeiras são bonitas, podem-se manter actuais durante muitos anos, e representam a cultura portuguesa. Gostava muito que em Macau também pudessem existir criações que representassem a cultura macaense contemporânea, que fossem uma projecção para o futuro.

 

 

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A nocturnidade de Filipe Dores

Crítica por António Conceição Júnior

 

O meu primeiro impacto perante a visão das aguarelas de Filipe Dores foi uma associação à “Ronda da Noite”, de Rembrandt van Rijn, pintor da luz a nascer da sombra. Porém, a associação cedo se esvaiu e percorreu outras referências, como De Chirico e um certo surrealismo propiciado pelo estímulo das aguarelas nocturnas deste autor de Macau que, antes de completar 28 anos, já venceu duas vezes o prémio do Royal Institute of Painters in Water Colours, sediado em Londres.

Quase toda a exposição de Filipe Dores, patente agora na galeria do Albergue SCM, é percorrida não apenas pelo nocturno, mas também pelo soturno, por uma solidão que, de certo modo, como que conduz a algo semelhante ao “Poder do Silêncio”, de Carlos Castañeda.

 

 

Existe aqui uma outra magia, uma abertura de alma que transpõe os cânones da crítica para se situar num discurso cujo registo está eivado de sinceridade e de uma singularidade que apraz registar.

Não é uma pintura confessional. Tampouco é tecnicamente ingénua. Nela transparece o autor em si, seguindo intuitivamente um percurso capaz de provocar evocações mas jamais cópias de outros.

 

 

A pintura de Filipe Dores irá evoluir, estou certo, porque, se o andar faz caminho a singularidade e qualidade das suas obras transportam uma poética nascida do talento, alimentado pela memória dos saberes do avô, e de uma intuição e perspicácia que caracterizam esta vocação, esta sim, confessa.

Se o olhar mais iniciado encontra referências, esse olhar deve percorrer a memória de uma narrativa que é, sempre e também, o património edificado de Macau que Filipe Dores selecciona criteriosamente.

 

 

Numa fase mais recente, as duas aguarelas seleccionadas este ano pelo Royal Institute of Painters in Water Colours já comportam um primeiro salto do autor para um jogo de multiplicidades que evocam Maigritte e o surreal do seu “La Reproduction Interdite”, afirmando-se mais convincentemente no processo da surrealização muito singular da sua obra.

Filipe Dores é, sobretudo, um autodidacta. Absorveu de inúmeras fontes, bebeu de inúmeras experiências, visitas a museus, a exposições de amigos, mas ei-lo mantendo uma extrema e ciente fidelidade a si mesmo. A consciência da sua personna artística é tal que o seu retrato publicado aqui demonstra a mesma consistência expressiva na fotografia que utiliza nas suas obras. De súbito, o singular, o inusitado, o sombrio iluminado transmuta-se em belo, carregado de um onírico que inspira emoções no espectador. Estamos perante um autor que instintivamente, verdadeiro consigo próprio, comunica e desperta emoções que conduzem ao reconhecimento inevitável da beleza da sua obra. Estamos, assim, perante um processo emocionalmente alquímico, perpetrado por um jovem mais que promissor, que recorre a um veículo tradicional, a aguarela, para se expressar, mas a ponto de o veículo se dissolver na qualidade e conteúdo da obra.

Assim se expressa esta juventude que tem um certo e promissor caminho em frente.