Tradições | Festa de Na Tcha

Na Tcha (哪吒) que afasta as epidemias e protege os cidadãos de Macau, outra divindade-criança à semelhança de Tam Kung, comemora o seu aniversário no 18.º dia da 5.º Lua, a que corresponde neste ano de 2017 ao dia 12 de Junho do calendário gregoriano.

 

 

Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Tatiana Lages

 

Como alguns outros deuses da religião popular, Na Tcha tem a sua origem numa divindade hindu, no caso Natá, a quem foi alterada a identidade, passando para a Religião Popular Chinesa através do Budismo. Assinale-se que Natá, a original divindade hindu, é tida como o terceiro filho de Vaisravana, enquanto que Na Tcha é, na versão chinesa, o terceiro filho de Li Ching.

 

Lenda de Na Tcha

Segundo uma das lendas em redor da sua vida, Na Tcha teria sido enviado à terra pelo Imperador de Jade para destruir os demónios, tendo para tal encarnado no terceiro filho do general Li Ching, daí o ser nomeado por vezes como Sam Tai Chi (romanização cantonense para 三太子, ou San Tai Zi, em mandarim), o que significa o Terceiro Príncipe.

O seu nascimento e a sua meninice estão envoltos em mistérios e poderes sobrenaturais que originaram uma morte precoce. A gravidez da sua mãe terá durado três anos e meio. A senhora Yin deu à luz uma abjecta bola de carne que rolou pelo chão dos aposentos. O pai, sentindo estar perante o demónio, puxou da espada e cortou a bola ao meio. Do interior saiu uma criança envolta num pano de seda vermelho, com um bracelete dourado numa das mãos, simbolizando o universo. A criança sorria enquanto dava saltos fantásticos, revelando ser um brincalhão irreverente e possuidor de poderes sobre-humanos (ver caixa).

 

 

Ainda de tenra idade, e num momento de confronto, Na Tcha mata um dos filhos do Dragão do Mar de Leste. Suicida-se em seguida num acto de piedade filial, pois sabia que o Imperador de Jade puniria os seus pais por aquele acto. Valeu-lhe o mestre taoista que, conhecedor do futuro, lhe devolve a vida. Dá-lhe uma lança mágica e duas rodas de fogo e vento, que colocadas sob os seus pés lhe permitiam flutuar. Na Tcha renascia assim, ainda com mais e maiores poderes. A imortalidade, as suas artes para afastar os maus espíritos e com eles doenças e calamidades, fizeram de Na Tcha uma divindade de especial devoção.

Na Tcha é figura de destaque na compilação da grande aventura épica da Deificação dos Deuses e preenche diversos capítulos da obra, desde o seu fantástico nascimento até ao que culmina com a Criação dos Estados pelo Rei de Wu.

Termina a grande aventura com o mítico combate na companhia de seu pai, o general Li Jing, dos seus irmãos, de Wei Wu, discípulo do Mestre Celestial da Divina Virtude, e do Raio, discípulo do Mestre das Nuvens.

 

 

Na Tcha e Macau

Tal como acontece com a maior parte das divindades populares chinesas, para além da crença nas suas amplas e reconhecidas virtudes como aliados dos humanos junto do panteão das divindades, há necessidade de se estabelecer uma ligação ao local de veneração, através de milagres ou de outros actos fantásticos. Com Na Tcha passa-se o mesmo. Para além das curas milagrosas e do refrear das pestes, tem também em Macau uma lenda que justifica a elevação dos templos e a fervorosa crença nas suas virtudes. Acredita-se que a divindade-criança apareceu e desapareceu muitas vezes naquele local que levaria à edificação do primeiro pequeno templo, localizado na Calçada das Verdades, e ao arreigar da crença, assim como a sua especial protecção às crianças. A pedra onde se verificava a materialização da divindade ainda hoje é referida e reconhecida pelos crentes.

 

 

Os templos

Existem em Macau dois templos dedicados a Na Tcha: um encostado às Ruínas de São Paulo, junto ao que resta de um troço das antigas muralhas, e outro mais pequeno de construção característica no cruzamento da Calçada das Verdades com a Travessa de Sancho Pança.

Este é um dos mais antigos templos da cidade. Há referências a 1676 como a data da sua edificação, o que não é desmentido pela datação chinesa que o leva aos princípios da Dinastia Ming. Este pequeno templo teve a sua primeira reconstrução em 1898, data da construção do que ombreia com São Paulo. Dedicado a Na Tcha, mas também a Tou Tei, ao Rei Macaco, a Sam Leong mãe de Mêncius e a Wei Zi, o templo junto às Ruínas de São Paulo forma com estas e o troço de muralha adjacente um conjunto que faz parte do Património Mundial da Unesco.

 

 

A farmácia

Embora a memória de hoje pareça tê-lo esquecido, o certo é que descrições dos anos 20 do século passado ainda referem a existência de uma farmácia chinesa adjacente ao templo da Calçada das Verdades. Os seus medicamentos tinham fama de serem eficazes e miraculosos na cura de todos os males. A sua existência faz sentido, pois estando Na Tcha ligado à cura das doenças e ao afastamento das pestes e seus malefícios, não será estranha a importância da sua farmácia, acreditando-se, mesmo, que tais misturas milagrosas saíam das mãos de Na Tcha.

 

Cerimónias

Na Tcha, que tem nos fuquinenses e nos hakkas os seus maiores seguidores, é uma divindade da religião popular aceite pelos heterodoxos taoistas, que a reconhecem como o “Marechal do Altar Central”(中壇元). Em sua honra se desenvolvem diversas cerimónias religiosas nos dias festivos anteriores à sua data de aniversário e, neste mesmo dia, nos dois templos que lhe são dedicados.

 

 

Os momentos das cerimónias

No templo junto às Ruínas de São Paulo, as cerimónias taoistas dedicadas ao céu e às almas desenvolvem-se em dois momentos: pela manhã, a cerimónia do céu e na parte da tarde, a das almas. A primeira – onde são pedidos a Na Tcha paz, prosperidade e saúde para toda a população – é designada como a roda da sorte, com os monges a dar três voltas ao templo, “limpando” o espaço e fazendo os pedidos de paz e segurança para a população.

Na cerimónia da tarde dedicada às almas, pede-se pela libertação de todos os males, assim como por ajuda para a resolução de problemas que não foram solucionados anteriormente. A cerimónia culmina com a queima do “Kuai Wong”, a representação do diabo.

Já no pequeno templo da Calçada das Verdades as cerimónias têm características muito próprias. Iniciam-se pela manhã também com a cerimónia do céu, contudo o grande momento acontece à tarde, com a “Abertura do Selo”. Trata-se de um momento de espectáculo que os crentes seguem com toda a atenção e emoção. O envolvimento de médiuns, o estado de transe e o exorcismo de demónios são práticas utilizadas, assim como a automutilação para a utilização do próprio sangue na escrita de ideogramas auspiciosos. O sangue é tido como protecção contra o demónio. É recolhido pelos crentes em peças de vestuário e outros panos e levado para as suas casas como protecção. Amuletos que se penduram em casa, se cosem nas roupas ou que se guardam para quando a doença vier, principalmente nas crianças, esperando, assim, a cura (ver caixa).

 

 

As procissões

Nos dois templos preparam-se as procissões. Embora se realizem em dias separados, ambas consagram o culto de NaTcha e a crença no afugentar de maleitas. Noutros tempos, Na Tcha percorria as ruas da cidade sempre que qualquer epidemia atingisse Macau. Assim a divindade, com os seus poderes, protegia a terra e as gentes dos efeitos nocivos da pestilência. O mesmo sucedia noutros locais, talvez por isso o dia que lhe é dedicado com frequência varie – em Hong Kong, por exemplo, dedica-se o 18.º dia da 3.ª Lua à divindade. Na região vizinha, o culto iniciou-se em consequência de uma forte epidemia que grassou em Sham Shui Po, em 1894. Coincidência ou não, o templo em Hong Kong viria a ser construído em 1898, tal como o que em Macau está paredes-meias com as Ruínas de São Paulo.

Aberto o Selo na Calçada das Verdades, começa a bênção de Na Tcha, Sam Tai Tze, o Terceiro Príncipe, e forma-se a procissão, em que a divindade, representada por uma criança vestida e maquilhada a rigor, será acompanhada pelos seus irmãos, virtuosos como ele, embora em sectores diferentes das maravilhas celestiais. Preparam-se para abençoar a cidade e as gentes com a sua passagem pelas ruas e estabelecimentos. Acompanhadas pelos crentes e admiradas pelos turistas, as procissões percorrem as ruas da zona do Largo do Senado ao templo de A-Má, no Patane, e por vezes estende-se às ilhas, num ambiente de festa com música, Dança do Leão e outras artes festivas.

 

 

Os que desempenham o papel das divindades e acompanhantes, com movimentos descontrolados como que em transe, agem como se nos seus corpos vibrasse a força da divindade. Segundo elementos dos templos, a fé na divindade transcende o espaço de Macau afirmando que todos os anos regressam à região crentes de Hong Kong, de Taiwan e do Interior do País para agradecerem a protecção que a divindade lhes dedicou, pedindo paz, saúde e felicidade para mais um ano de bênçãos.

Nas procissões, com a imagem de Na Tcha, a sua representação pela criança, a postura dos elementos que as acompanham, com movimentos e danças enigmáticas, são de assinalar pela sua beleza e originalidade. As celebrações de Na Tcha fazem parte da lista de património cultural intangível de Macau.

 

 

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Rituais

Os rituais taoistas prolongam-se normalmente por várias horas. Embora eles difiram nos diversos ramos do taoismo religioso, regra geral passam pela purificação do espaço, a invocação das divindades, por variadas preces e recitações de fórmulas secretas, passos de dança e estranhas deambulações. Os monges ostentam nos bordados das suas vestes grande parte da simbologia taoista, nomeadamente dragões, nuvens, as fases da lua, trigramas, as cinco montanhas sagradas, os animais do zodíaco e imagens de diversas divindades ou dos oito imortais.

 

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Materialização

Na Tcha é uma das divindades a quem são atribuídos poderes de se materializar no espírito dos médiuns. Embora tal crença seja essencialmente seguida por fuquinenses, tal não significa que não seja partilhada também por muitos cantonenses. O espírito de Na Tcha é convocado pelo médium que, possuído de poderes sobrenaturais, assegura através de estranhas práticas e do seu próprio sangue a presença da divindade.

 

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Na televisão

Na Tcha tornou-se também uma personagem famosa em séries televisivas de artes marciais e também no grande ecrã, nomeadamente com o filme Na Tcha, o Grande produzido em Taiwan em 1974, dramatizando todas as fantásticas aventuras atribuídas à popular divindade.