As Festas Filipinas em Macau 

O catolicismo entrou nas Filipinas pelas mãos do português Fernão de Magalhães e misturou-se de forma natural nas manifestações próprias da cultura ancestral. O Sinulog liga as tradições pagãs do povo à sua conversão ao cristianismo.

 

 

Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro e Manuel Cardoso

 

Remontam ao século XVI as relações comerciais entre Macau e as Filipinas no âmbito do comércio intra-asiático. O sangue filipino corre, também, nas veias de filhos da terra, fruto do cruzamento entre portugueses com diversos povos asiáticos. Nos tempos modernos, a comunidade começa a consolidar-se em Macau nos anos 80 do século passado. Das escassas centenas dos primeiros tempos, até a alguns milhares no dealbar do século XXI como resultado da explosão da indústria do turismo e do jogo, os membros da comunidade, para além das actividades que lhes eram tradicionais, passaram a disputar lugares no mundo empresarial, das profissões liberais, e de quadros qualificados. 

Com a sua consolidação a comunidade filipina abriu-se a todas as outras, mostrando e vivendo traços da sua cultura. As festas religioso-pagãs como o Santo Niño ou o Santo Isidro são notáveis exemplos. 

 

Santo Niño de Cebu: o Sinulog  

Organizar a festa do Santo Niño de Cebu e o festival de dança filipina em louvor a Jesus (Sinulog) é um dos fins da Associação do Santo Niño de Cebu em Macau, com estatutos publicados em 2003. A ideia da realização das festas em honra do Santo Niño de Cebu começou a ser esboçada no ano 2000 por um grupo de devotos da comunidade filipina local, o que estará na origem da criação da associação. No ano seguinte, realizou-se a primeira festa do Santo Niño de Cebu, na Igreja de S. José. 

A ideia de um festival Sinulog acabaria por surgir quando das comemorações do Santo Niño de 2002. Em 2003 a ideia concretiza-se, surgindo o primeiro Sinulog realizado na China. Ultrapassando as expectativas, o evento foi apoiado pelas estruturas governamentais e eclesiásticas, tendo a missa sido oficiada pelo então Bispo de Macau D. José Lai, na Igreja do Carmo, na Taipa. Desde esta data, sem interrupção, o Sinulog em honra do Santo Niño realiza-se em Macau no terceiro domingo do mês de Janeiro de cada ano. Para muitos cebuanos ela marca o fim da quadra natalícia.  

 

O que a história e a lenda contam 

O navegador português Fernão de Magalhães, ao serviço de Carlos I de Espanha, chega a Cebu a 7 de Abril de 1521 e, na cerimónia colectiva de baptismo, oferece a Hara Amihan, esposa do Rajá local Humabon, como prenda de baptismo uma imagem do Menino Jesus. Hara Amihan passa a usar o nome cristão de Rainha Joana.  

Diz-se que em 1565, 44 anos depois da morte de Fernão de Magalhães, às mãos de Lapu Lapu, Rajá de Mactan, os espanhóis terão voltado a Cebu e destruído as povoações. Entre os escombros, os cebuanos terão encontrado uma arca de madeira em parte queimada, com os ídolos do Sinulog e a imagem do Menino que tinha sido oferecida à rainha Hara Amihan. Terá sido esta crença que ligou para sempre o Sinulog ao Santo Niño. 

A imagem do Santo Niño, a mais antiga relíquia católica das Filipinas, encontra-se na Basílica Menor do Santo Niño, na Cidade de Cebu, na província do mesmo nome. 

 

O Santo Niño e o povo 

A importância do Santo Niño para os cebuanos é ilimitada. Ele é Deus, é o patrono de Cebu, mas também é uma divindade na sua particularidade. A crendice atribui-lhe todos os poderes. Muitos acreditam, por exemplo, que durante a noite o Santo Niño sai da redoma de vidro da Igreja onde a sua imagem está depositada e regressa de manhã com os sapatos sujos de ervas das longas caminhadas que faz para acudir aos crentes que o invocam. Mesmo para os não cristianizados, e que continuam a crer nos ídolos animistas, o Santo Niño é mais um ídolo, mais um “anito”, como se diz na língua local. 

 

Santo Niño/ Sinulog: A festa 

Dos festejos em Macau fazem parte uma missa, a vibrante procissão do Santo Niño, um banquete para a comunidade e convidados, desfiles, concursos de danças e bancas onde se vendem recordações alusivas ao evento. 

Os grupos de dançarinos com os seus trajes multicoloridos e inúmeras imagens do Santo Niño dançam ao som dos tambores e, ao seu ritmo, avançam e recuam dando dois passos à frente e um passo atrás, balanceando o corpo em movimentos que pretendem dar a ilusão do movimento das ondas da corrente do Rio Pahina de Cebu.  

A lenda inspira muitas das danças do Sinulog que, por vezes, representam a oferta do Menino Jesus à Rainha Joana, nome cristão de Hara Amihan, outras, ainda, a própria rainha com o Santo Niño nos braços abençoando o povo filipino. Recorde-se que as danças do Sinulog são muito antigas e anteriores ao culto cristão. Antes da chegada de Magalhães a Cebu já os nativos as praticavam nos rituais em honra dos espíritos e dos ídolos que adoravam.  

 

Santo Isidro:  Pahiyas  

O Festival Pahiyas, uma tradição oriunda de Lucban, em Quezon, norte das Filipinas, realiza-se anualmente em honra de Santo Isidro Lavrador (ou Santo Isidoro). Embora noutras localidades de Quezon e noutras zonas das Filipinas se comemore o dia de Santo Isidro, apenas em Lucban se denomina de Pahiya, associando-se a um antigo festival. 

Tal como o Santo Niño e o Sinulog, tradições oriundas de Cebu, as festas de Santo Isidro são uma simbiose perfeita entre o profano e o sagrado.  

Embora o dia de Santo Isidro se comemora a 15 de Maio, em Macau é costume, não coincidindo com dia de descanso, passar as comemorações para o domingo seguinte. O mês de Maio, em que se comemora o dia de Santo Isidro Lavrador, é também o mês que nas Filipinas medeia a estação das colheitas e a das sementeiras. 

O Pahiyas em honra de Santo Isidro Lavrador é uma festa das comunidades agrícolas, um ritual de acção de graças pela abundância das colheitas (à divindade católica que por elas zela, Santo Isidro) e da apresentação dos produtos variados dos campos, na decoração das próprias casas – Pahiyas significa essa mesma decoração – com os produtos da natureza, e a sua partilha com a comunidade.  

O visual da festa tem como pano de fundo as casinhas que representam as habitações tradicionais de Lucban, decoradas com frutas, vegetais, frutos do campo em geral e com elementos festivos de diversas cores e formas, também eles comestíveis já que são feitos de uma massa especial de arroz chamada kiping. Encostados às casinhas que representam, diversas associações filipinas, ou localidades de Quezon, bonecos gigantes (higantes) com o seu ar naif revelam as origens da arte e chamam a atenção dos visitantes. No largo fronteiro decorrem a missa e a procissão em honra de Santo Isidro, assim como os festivais de trajes, danças e cantigas. 

 

Santo Isidro Lavrador: A lenda 

Santo Isidro Lavrador, santo nascido em Madrid, é também nas Filipinas o padroeiro dos agricultores. Filho de camponeses e ele próprio camponês, tinha a fama de passar a maior parte do tempo a rezar parando pelas igrejas que ia encontrando, em vez de amanhar os campos como era seu dever. 

Uma das lendas a seu respeito diz-nos que o senhor Vera, seu patrão, um dia o seguiu para confirmar se era verdade o que se dizia, já que o trabalho aparecia sempre feito. Ao longe o patrão vê Isidro e, a seu lado, duas charruas puxadas por dois bois brancos arando os campos. Quando se aproxima de Isidro os bois desaparecem. Vera interroga Isidro sobre a existência daquelas charruas e Isidro respondeu: “Não sei que eu tenha outro socorro senão o que vem de Deus. Invoco-O no começo do meu trabalho e nunca O perco de vista durante o dia”. O patrão percebeu o milagre e a sua fama de santidade começou a andar de boca em boca. 

Filipe III de Espanha com grande fé em Santo Isidro – atribuía-lhe mesmo a cura de grandes males de que padecera –, acelerou ele próprio o processo de canonização, que ocorreu a 22 de Março de 1622, em companhia de Santo Inácio de Loyola, São Francisco Xavier, Santa Teresa de Ávila e São Filipe Néri. 

Santo Isidro, que é o padroeiro de Madrid, terá aqui nascido em 1070 para uns e 1081 para outros, e na mesma cidade falecido a 15 de Maio de 1130. 

 

Pahiyas em Macau 

Organizado pela Associação dos Quezonianos de Macau, o Festival Pahiyas realizou-se pela primeira vez na região em 2003, associado ao Festival das Flores, que tem como palco a Praça da Amizade. 

Os preparativos da festa ocupam as noites tiradas ao descanso com a confecção dos materiais de decoração do palco, que também será altar para a celebração religiosa, para lá de outros elementos, pagãos, que contribuem para a cor e alegria do local. 

A preparação das diversas actividades lúdicas – concurso de danças, organização dos grupos, ensaios com “professores”, confecção de fatos, caracterização e penteados, convites a serem enviados a convidados especiais, e aos membros dos júris – são factor de preocupação para que nada venha a perturbar o bom andamento da festa. E, claro, a confecção dos acepipes que se oferecem a quem os quiser provar. 

 

A festa e as suas diferenças 

Há grandes diferenças entre estas duas festas filipinas, apesar de ambas terem uma componente religiosa. Digamos que o Santo Niño, ao plasmar-se com o Sinulog é uma festa muito mais pagã do que religiosa. Mostra a introdução do cristianismo e até a violência do processo. Já no Pahiyas o que se comemora é diferente. É uma relação com a natureza, na paz, na alegria e no agradecimento das dádivas, da fartura, da boa colheita. É o agradecimento a um santo cristão, uma prática que nasce já de um cristianismo vivido. O Pahiyas, mesmo tendo uma origem pagã, tem uma festa cujo cenário é belo, a montra das dádivas em partilha, e não a sobreposição do pagão ao religioso, que surge. 

 

As festas e o reforço identitário 

Além de serem um pretexto para encontros e convívios da comunidade filipina, estes festejos pretendem também mostrar às outras comunidades de Macau a sua cultura própria. Estes eventos são cada vez mais disputados pelos jovens, alguns já aqui nascidos, que assim começam a conhecer e a colaborar de forma empenhada na sua organização. Estas festas são muito importantes para quem vive na diáspora, e um modo de não esquecer e reforçar a sua identidade na diversidade cultural.