Travessia do Delta | Uma ponte sem igual

A Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau ainda não foi inaugurada, mas já ganhou um lugar por direito próprio no rol dos mais desafiantes projectos de engenharia alguma vez concebidos. A travessia do Delta estabelece vários novos recordes em termos de dimensão, mas a magnitude da estrutura não se fica pelos números. Durante os últimos nove anos, a empreitada de construção da obra revelou-se um viveiro de inovação em termos técnicos e tecnológicos. Da maior grua do mundo ao aço com materiais compósitos concebido propositadamente para o projecto, passando por asfalto com um tempo útil de vida de 15 anos, a MACAU explica-lhe por que razão a nova travessia Hong Kong-Zhuhai-Macau é uma ponte sem rival.

 

 

Texto Marco Carvalho

 

Terça-feira, 2 de Maio de 2017. No coração do extenso estuário que aparta Macau e Hong Kong, uma estrutura incomum labora com indissimulável precisão. Instalado num cargueiro com dimensões  também elas descomunais, o colossal aparato conduz uma missão que engenheiros e especialistas definem como crítica: a deposição do derradeiro segmento do longo túnel subaquático que integra o projecto da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau.

Os trabalhos de construção daquela que é hoje a maior travessia marítima do mundo iniciaram-se em 2009, ao fim de cinco anos de planificação. Erigida em pleno Delta do Rio das Pérolas, a ponte atravessa o chamado canal de Lingding, um dos pontos em que a distância entre as margens oriental e ocidental da desembocadura do rio é mais curta.

Ainda assim, a estrutura estende-se por 55 quilómetros, um dragão de aço e de betão ora serpenteando à flor da água, ora mergulhando no leito arenoso da vastidão do Delta. Além dos 22,9 quilómetros de ponte propriamente dita, a travessia é ainda constituída por quatro ilhas artificiais e pelo mais longo túnel marítimo do mundo, uma infra-estrutura que se estende por 6,7 quilómetros a uma profundidade média de 40 metros abaixo do leito oceânico.

Com dimensão suficiente para acolher um edifício de 12 andares e um peso que supera as seis mil toneladas – o equivalente a 25 unidades do Airbus A380 – o módulo que o gigantesco mecanismo ergue sobre as águas do Delta será depositado 28 metros abaixo da superfície marítima, num processo meticuloso que se estende por quase 18 horas.

A missão, de grande complexidade, não teria sido de todo possível sem o possante aparato que colocou no lugar, com milimétrica exactidão, cada um dos 33 segmentos que constituem o túnel de 6700 metros que se esgueira pelos abismos do estuário, em alguns pontos a mais de 40 metros de profundidade. O mecanismo – baptizado de Zhenhua 30 pelas autoridades chinesas – foi também utilizado para colocar no devido lugar cada um dos 2156 módulos de betão e aço que constituem o tabuleiro da travessia.

“Consegue imaginar o desafio que é levantar um bloco com mais de 100 metros em pleno mar e colocá-lo na posição correcta?” A questão, de natureza retórica, é lançada por Chan Mun Fong, engenheiro civil que é, provavelmente, o profissional de Macau que detém um conhecimento mais aprofundado dos desafios inerentes à construção de estruturas de grande envergadura, como pontes e túneis.

Com uma magnitude nunca antes vista, a Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau suscitou desafios à escala, a começar pela inevitabilidade de diligenciar soluções tecnológicas que pudessem tornar a obra possível. “Esta grua tem capacidade para levantar 12.000 toneladas. É algo absolutamente fantástico. E, se tal não bastasse, a Zhenhua 30 está assente numa plataforma giratória de 360 graus”, ilustra Chan Mun Fong. “Para um projecto destes, era absolutamente necessário ter uma grua desta envergadura, porque as equipas que construíram a ponte não podiam estar a trabalhar com material que puxasse o esforço até ao limite para levantar os segmentos do tabuleiro. De outro modo, corriam o risco de a grua balançar e de colocar em risco a própria viabilidade do projecto”, explica o director executivo da Civil Engineering Consultants Co. Limited.

Com um mestrado em engenharia estrutural pela Universidade de Berkeley e um doutoramento na mesma área de especialização pela Virginia Tech, Chan Mun Fong acompanhou de perto a construção de duas das três travessias que ligam Macau e a Taipa – a Ponte da Amizade e a Ponte de Sai Van – na qualidade de chefe de departamento do Laboratório de Engenharia Civil de Macau e evoca a experiência angariada em ambos os projectos para colocar em perspectiva o carácter absolutamente excepcional da empreitada de construção da travessia do Delta. “Quando construímos a Ponte da Amizade tínhamos uma zona de circulação automóvel bastante ampla, com 35 metros de largura, o que pressupunha que as secções da ponte já fossem naquela altura bastante pesadas”, recorda o especialista. “Tínhamos uma grua assente no leito marítimo que conseguia levantar 400 toneladas. Nesta altura, quando esta grua foi instalada já era algo imponente. Era algo enorme e muito significativo. Estamos a falar de uma obra que foi feita há 20 e poucos anos. Consegue imaginar agora uma grua a levantar 12.000 toneladas? É um monstro. Nada mais, nada menos do que um monstro”, sublinha Chan Mun Fong, sem esconder o deslumbramento pela capacidade técnica desenvolvida pelo Interior do País no domínio da engenharia ao longo das duas últimas décadas.

 

Um projecto ímpar

A Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau é grande. Ponto. E não é só em termos de dimensão que a estrutura bate recordes. O tabuleiro é constituído por 2156 módulos nos quais foram empregues 400 mil toneladas de aço, material suficiente para assegurar a construção de 60 réplicas em tamanho real da Torre Eiffel.

Os segmentos – cada um dos quais com 132,6 metros de comprimento – viram a luz do dia na cidade de Zhongshan, na província de Guangdong. Depois de concebidas e moldadas com precisão milimétrica, as estruturas foram transportadas de barco para o local onde a ponte se ergueu numa breve, mas meticulosa viagem de 40 quilómetros até ao seu destino final.

Com uma concepção mais funcional do que arrojada, a Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau é inegavelmente filha das circunstâncias que determinaram a sua criação. Com um corpo esguio, que se esgueira por quase 23 quilómetros de alto mar, a travessia foi concebida para resistir a tufões de intensidade 16. De um mesmo modo, asseguram os responsáveis pela concepção da estrutura, a travessia do Delta pode resistir ao embate de uma embarcação com uma envergadura de 300 mil toneladas e suportar – mesmo não sendo o risco sísmico elevado na zona geológica em que Macau se situa – tremores de terra de magnitude 8,0 na escala de Richter. “Os responsáveis pela planificação da ponte estabeleceram exigências muito elevadas tanto para tufões como para terramotos, o que é algo pouco habitual, uma vez que Macau e Hong Kong não estão situadas numa zona com uma actividade sísmica muito elevada”, assinala Chan Mun Fong. “Neste caso, esta possibilidade tem que ser equacionada e constitui um aspecto significativo.”

A hipotética exposição da Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau a desastres naturais de grande envergadura foi, no entanto, apenas uma das preocupações que nortearam os trabalhos de concepção da estrutura. Mais tangível e imediato foi o desafio com que as equipas de engenharia e de arquitectura se depararam pelo simples facto da ligação ter sido erguida numa das zonas mais movimentadas do mundo em termos de tráfego marítimo.

As entidades responsáveis pela planificação da obra assumiram desde logo a missão de construir uma estrutura que não impedisse ou atrapalhasse a navegação na área ou que afectasse o tráfego aéreo de e para os aeroportos internacionais de Macau e de Hong Kong. “Nesta zona do Delta do Rio das Pérolas, há três ou quatro canais de navegação e a ponte teve de ser concebida com este factor em mente, o de permitir que um grande número de embarcações possa continuar a navegar”, recorda o especialista em engenharia estrutural. “Por outro lado, tiveram de restringir a altura das torres para que não obstruíssem o tráfego aéreo ou influíssem na rota dos aviões”, complementa Chan Mun Fong.

No caso da secção elevada do projecto, o vão entre os pilares teria que ser o mais longo possível para que a navegação e o acesso por via fluvial a Cantão não fossem perturbados. Por outro lado, e para que a ponte possa resistir ao impacto de um supertufão ou de um improvável abalo sísmico de grandes dimensões, a estrutura teria que ser leve e iludir a ideia de rigidez muitas vezes associada a projectos desta magnitude. “A equipa foi confrontada com a necessidade de reduzir o peso, de aumentar a amplitude entre as secções e para obter esse resultado teve de recorrer, por exemplo, a um novo tipo de aço com materiais compósitos”, ilustra o engenheiro civil.

A demanda por uma certa ligeireza fez com que a opção por uma estrutura inteiramente em betão se prefigurasse logo desde o início como inadequada. Em alternativa, a escolha das equipas de engenharia recaiu sobre uma estrutura mais leve, que privilegia o aço de que fala Chan Mun Fong , um material tecnologicamente mais avançado e, como tal, mais durável. “O aço está sujeito a corrosão em ambientes marinhos. Tendo em conta este detalhe, foi utilizado um tipo especial de aço inoxidável, que foi submetido a um grande número de testes antes do material ter sido considerado apto para utilização”, explica o antigo chefe de departamento da Laboratório de Engenharia Civil de Macau.

Os avanços ao nível da engenharia associados com a travessia do Delta não se ficam, no entanto, pela resistência e durabilidade dos materiais utilizados. Mais de um milhar de inovações foi patenteada durante o processo de construção da estrutura, em ligação com a edificação da ponte, dos túneis e com a planificação e concretização das ilhas artificiais. Se o aço que constitui a espinha dorsal do projecto, outros materiais – como o asfalto utilizado na pavimentação das vias rodoviárias – deverão permitir uma economia de meios no que diz respeito à gestão e à manutenção da estrutura. “O pavimento foi concebido para durar 15 anos, o que já é algo muito significativo, se tivermos em conta que o asfalto se destina, sobretudo, a acomodar veículos pesados. Se a sua performance corresponder às expectativas, os custos de manutenção serão reduzidos. O processo de repavimentação é não apenas problemático em termos de trânsito, mas também muito oneroso”, ilustra Chan Mun Fong.

As inovações, tanto no design e concepção como no capítulo dos materiais e dos métodos utilizados, devem permitir que a travessia do Delta atinja um tempo útil de vida de 120 anos, um acrescento significativo face aos 100 anos que se espera que as grandes travessias possam durar. “Normalmente, as estruturas são concebidas para que o seu desempenho se mantenha optimizado por 50 anos. No caso de estruturas muito importantes, como é o caso de pontes e túneis, o habitual é falarmos de 75 anos ou, eventualmente, de puxar esse limite até aos 100 anos”, especifica o director executivo da Civil Engineering Consultants Co. Limited. “Pode-se pensar que entre os 100 e os 120 anos a diferença não é muita mas, de facto, no que diz respeito à engenharia e às exigências com que os engenheiros se depararam, a diferença é absolutamente abismal. Em termos de engenharia, este projecto está a puxar os conhecimentos que temos até ao limite”, assinala Chan Mun Fong.

 

Via rápida para a integração

Se em termos técnicos a Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau é um portento em termos arquitectónicos, a forma como a travessia foi concebida resulta, no entender de José Maneiras, num bom casamento entre as funções que a estrutura se propõe cumprir e as qualidades estéticas que exibe. Nascido em 1935, o decano dos arquitectos da RAEM assistiu à expansão e à modernização de Macau em vagas consecutivas de reformulação do espaço urbano e olha agora com admiração para o crescimento do território para além dos seus próprios limites, num processo em que a travessia do Delta adquire uma importância fulcral.

“As pontes são sobretudo obras de engenharia, mas contemplam, muitas vezes aspectos e princípios arquitectónicos importantes. Falo da leveza e da elegância das linhas. (…) Quando a ponte está bem desenhada em termos de estrutura e de estabilidade, é algo que resulta também em termos de arquitectura. Esta ponte é bonita nesse aspecto”, defende José Maneiras. “Qualquer pessoa tem capacidade para ver que a ponte não está bruta e feia. Está ali como deve ser. Por outro lado, as pessoas sentem instintivamente que a ponte tem solidez, que tem capacidade para resistir a tufões e a tudo o mais. Inspira confiança e inspira beleza. Não há apenas técnica, há também estética”, sublinha o arquitecto.

Com 55 quilómetros, a travessia liga as duas regiões administrativas especiais de Hong Kong e de Macau a Zhuhai, na província de Guangdong, reduzindo consideravelmente o tempo de viagem entre as duas margens do Delta do Rio das Pérolas. A estrutura tem também o condão de aproximar os 60 milhões de pessoas que têm as várias ramificações do Delta como casa e de acelerar o processo de criação da Área da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau.

Ambicioso, o projecto deverá adquirir, no entender de José Maneiras, uma outra vitalidade quando a travessia puder efectivamente ser utilizada. A entrada em funcionamento da Ponte permite “fechar o Delta” e rematar o processo histórico que culminou com o regresso de Hong Kong e de Macau à administração chinesa. “O Governo Central chegou à conclusão que a maneira mais rápida de fechar o Delta e de encerrar todo este processo era através da hipótese de se construir uma Ponte que tornasse a deslocação mais curta e permitisse uma diminuição tanto do custo do transporte de pessoas, como de bens”, assinala José Maneiras. “Este processo decorre ao abrigo de uma lógica de integração que tem por objectivo a articulação das extensas zonas servidas pelo Rio das Pérolas. É uma obra com grande significado político”, defende o também antigo presidente do Leal Senado.

De acordo com as estimativas avançadas pelas autoridades chinesas, a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau deve ser utilizada diariamente por cerca de 40 mil veículos, assim que a utilização da estrutura for assumida como uma alternativa mais célere e económica à travessia tradicional do Delta. Os responsáveis pela concepção da obra estimam que a ponte reduza até 60 por cento o tempo de viagem entre Zhuhai e Hong Kong.

Conveniência

Para José Tang, empresário e vice-presidente da Associação dos Exportadores e dos Importadores de Macau, “conveniência” é a palavra-chave da existência da nova ponte e é exactamente uma solução mais conveniente aquela que a travessia oferece às pequenas e médias empresas locais. “A Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau vai afirmar-se como um complemento muito conveniente para o sistema de transporte centrado no Aeroporto Internacional de Hong Kong. A verdade é que com a ponte ficamos a uma distância de apenas 20 minutos de Chek Lap Kok, o que vai ser muito conveniente para nós”, assume.

O empresário, que durante anos a fio produziu casacos e malhas de luxo para uma casa de moda britânica e chegou a empregar 650 pessoas nas suas fábricas, lamenta apenas que a travessia não tenha sido construída duas ou três décadas mais cedo.

O vice-presidente da Associação dos Exportadores e Importadores de Macau recorre exactamente ao exemplo das flores de poliéster – um produto de baixo valor agregado com custos de exportação muito elevados – para ilustrar de que forma é que a travessia do Delta poderia ter feito a diferença. “As flores deixaram de ser produzidas em Macau, em parte, por causa de mudanças ao nível dos impostos e porque a mão-de-obra começou a ficar mais cara. O factor que mais prejudicava o negócio das flores era, no entanto, o custo do transporte. Enviávamos as flores em contentores gigantescos. Custava à volta de 5000 patacas trazer um destes contentores para Macau e enviá-lo de volta para Hong Kong. A este valor acrescia o valor do frete, do transporte propriamente dito para o resto do mundo”, explica Tang Kuan Meng. “O preço do transporte logístico foi o factor que acabou por matar o negócio.”

Para o sector dos serviços o contributo da entrada em funcionamento da estrutura poderá prefigurar-se como essencial e contribuir para a redução das despesas ao nível dos transportes, estima José Tang. “Nesse aspecto, creio que vai haver uma melhoria nos transportes em termos logísticos. Para produtos como fruta, vegetais e consumíveis diários vai haver uma melhoria. O mesmo deverá acontecer para as mercadorias que exigem refrigeração. Essas vão ser beneficiadas.”

Estima-se que o Produto Interno Bruto da Área da Grande Baía supere a barreira dos 1,4 biliões de dólares até 2030, ultrapassando as áreas de baía de Tóquio e de Nova Iorque. Para que a região que rodeia o Delta se torne efectivamente a mais rica do planeta, o Governo Central delineou um plano que prevê a dinamização de importantes projectos de infra-estruturas, de redes e de plataformas de cooperação económica e comercial que deverão ter um impacto que suplanta em muito os limites da Grande Baía. A Ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau é um instrumento fulcral na concretização desse desígnio.