Kuan Tai, Deus da guerra e da riqueza

Kuan Tai ou, em mandarim, Guan Di (關帝), o Deus da Guerra e da Riqueza, foi um grande herói do tempo dos Três Reinos (220–280), sendo a divindade mais conhecida e reverenciada em todas as comunidades chinesas, no país ou na diáspora.

 

 

Texto Fernando Sales Lopes | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O aniversário de Kuan Tai tem lugar no 13.º dia da 5.ª Lua, o que neste ano de 2018 coincide no calendário Gregoriano com o dia 5 de Agosto. Para os crentes, Kuan Tai concentra em si todos os poderes, por isso a ele se pede protecção e prosperidade, mas também a resolução dos problemas dos mais íntimos ― pessoais ou domésticos ―, aos que afectam as nações ou o Universo. Venerado não apenas por taoistas mas também por budistas e confucionistas, Kuan Tai é ainda o protector da China.

Não há estabelecimento comercial que não ostente a figura do façanhudo General Kuan Tai olhando a porta de entrada, atestando aos passantes a qualidade do produto a mercar e a honestidade do vendedor. E não há lar onde o guerreiro representado em estátua, de vermelha face e de longas barbas ao vento, com ou sem a sua espada em riste, não proteja a habitação dos demónios e espíritos maléficos.

O grande guerreiro

Deificado pelo seu valor militar e contributo pela restauração do poder Han, como se conta no Romance dos Três Reinos ( 三國演義), onde os seus feitos de guerreiro se romantizam e eternizam, Kuan Tai é um exemplo a ser seguido no amor patriótico através do combate pela dignidade e pela defesa de princípios, a entrega total até às últimas consequências.

Ao tempo a que remonta a história do guerreiro ainda humano, a China vivia fragmentada e em grande instabilidade governativa com um jovem imperador sem força e desrespeitado, com desordens e lutas palacianas conduzidas pelos eunucos e, como se não fosse o suficiente, os elementos pareciam ter-se revoltado contra o reino, a sofrer toda a sorte de inclemências como terramotos, cheias e outras calamidades que levaram ao aumento dos impostos. O povo revoltou-se e os senhores da guerra começaram a organizar as forças de uns e de outros lados para assumirem o poder. Quando o imperador morre sem descendência, muitos querem conquistar o trono Han. É nesta realidade que Kuan Tai sobressai como um grande guerreiro e o maior dos estrategas, vencendo as hostes inimigas em batalhas consecutivas, afastando  poder dos eunucos e dos religiosos que também combatiam para conquistarem partes de uma terra dividida. A luta do General ia, contudo, além das conquistas militares, pois Kuan Tai lutava pela restauração do poder legítimo Han, o Estado, o afastamento dos corruptos e a moralidade.

Os templos de Kuan Tai

Em Macau existem diversos templos onde Kuan Tai está presente, mas apenas dois lhe são dedicados. Contrariamente a outros locais, a sua evocação aqui faz-se em pequenos templos sóbrios como a divindade enquanto humano quis ser.

O templo de Kuan Tai (關帝廟) em Macau, Património da Humanidade, encontra-se estritamente ligado à Associação Sam Kai Vui Kun (Associação das Três Ruas, 三街會館), a mais antiga associação chinesa constituída em Macau para promover o bem-estar dos moradores das três primeiras ruas de comércio:  a dos Ervanários, a das Estalagens e a dos Mercadores, na extrema entre a cidade cristã e o bazar, como nos tempos antigos se designavam os bairros de portugueses e estrangeiros, e o dos moradores chineses. O templo é propriedade da referida associação, que o custeou.

Em frente à porta do Templo de Kuan Tai eram expostas para conhecimento da população as chamadas “chapas sínicas”, expedidas pelos mandarins representantes do poder chinês, a dois passos do Leal Senado, então sede da governação portuguesa da cidade, assinalando os tempos de uma administração partilhada em Macau, a convivência e o respeito mútuos.

Por vezes, o Templo de Kuan Tai de Macau é nomeado por Sam Kai Vui Kun (三街會館) ― o nome da citada associação, por servir também como sua sede ― ou, ainda, de Templo de Mou Tai .

O Templo, lateral ao Mercado de São Domingos, é composto por três pavilhões: o do Deus da Riqueza (dedicado a Kuan Tai), o de Tai Soi (divindade do mau agouro), e o do Deus da Terra. Tem, ainda, representações do Nobre e Cavalo da Riqueza, e do Marechal Zao, o domador celestial do Tigre. No altar principal, ao centro, está Kuan Tai, ladeado pelos seus fiéis companheiros: Chau Chong à sua direita, e, à esquerda, o seu filho adoptivo Kuan Peng.

E é ali, no centro da cidade, frente ao templo em honra de Kuan Tai, que se inicia a festividade do Dragão Embriagado, evento único pois só em Macau pode ser vivido, já que este é o único local da China onde a tradição perdura.

Mais modesto e de dimensões reduzidas encontramos na aldeia de Cheok Ka Chin, na Vila da Taipa, o outro templo dedicado ao Senhor da Guerra, no qual partilha o espaço com Tin Hau (A-má). Um pequeno templo de adoração de duas divindades que foram muito importantes noutros tempos para a população local, que deles se socorria em alturas difíceis. Estávamos perante uma população essencialmente marítima, sujeita aos perigos constantes no mar, mas também aos da terra. A tradição aponta a construção do templo para a época dos Qing. Histórias antigas referem-se a duas famílias de apelidos Lam e Cheok que terão sido os primeiros moradores no local onde se encontra o templo e que se acredita terem sido elas a iniciar a construção e a custearem as despesas, sendo mais tarde ajudados pelas povoações vizinhas.

As comemorações do aniversário do Deus da Guerra, em Macau, fixam-se em singelas cerimónias nos seus templos. Mas nem sempre foi assim, pois noutros tempos era ali vivida a efeméride com grandes festejos assinalados pelas decorações nos estabelecimentos, lanternas, frontões festivos e espectáculos de ópera chinesa, como assinala Gonzaga Gomes (Curiosidades de Macau Antiga): “Nenhuma outra festa era realizada por outros templos desta cidade que pudesse rivalizar com a que era levada a efeito pela Associação das Três Ruas”.

Combatente dos espíritos maléficos

Esta conhecida competência da divindade descrita em textos antigos, na tradição oral popular, e conservada por modos diversos – representada e cantada em óperas populares – fizeram do guerreiro um herói da literatura, do cinema, da banda desenhada e de outros meios de comunicação para todas as idades. Kuan Tai é certamente o mais mediático dos heróis da cultura chinesa.

Mas o seu poder é tal que desempenhar a sua personagem em qualquer palco é uma das mais difíceis tarefas e a de maior responsabilidade para qualquer artista, já que obriga-o a uma série de rituais para “limpeza” do corpo e do espírito, pois acredita-se que, se o não fizer, os poderes da divindade de controlo sobre os maus espíritos passam para aquele que o representa. Assim, entre outras regras rituais, o actor deverá queimar incenso 10 dias antes da actuação e deverá abster-se de comer carne e de actividade sexual. Depois de caracterizado, não deve brincar ou proferir frases jocosas. No final da actuação, o actor deverá queimar mais uma vez incenso à divindade e lavar a cara.

 

De humano a divindade

A sua vida de lutador intransigente levou-o para a morte. Ao ser capturado pelos inimigos, no ano 219, recusou render-se, tendo sido então decapitado. Porém, só ascenderia ao panteão das divindades na Dinastia Ming, em 1594, como Deus da Guerra – protector da China e de todos os chineses. Espalharam-se então por toda a China templos à divindade protectora.

Variados ofícios e ocupações tem Kuan Tai como patrono, com destaque para as artes marciais, as forças de segurança e os serviços militarizados. Alguns literatos baseados na tradição de que o famoso general tinha memorizado na íntegra o clássico confucionista O Comentário de Zuo elegeram-no também como Deus da Literatura.