Curvas da vida

Foi a música clássica que a levou da China para Portugal. Fê-la viajar, crescer, conhecer o marido e até aprender português. Hoje Hong Jian vê o violoncelo como uma extensão de si, mas a verdade é que ler pautas era uma consequência previsível na sua vida. Olhando para trás, adivinha que não podia ter sido de outra maneira

 

Texto Marta Curto | Fotos Paulo Cordeiro      EM PORTUGAL

Hong Jian tem 50 anos e faz parte da Orquestra Metropolitana de Lisboa. Mas nasceu muito longe de Portugal, mais precisamente na cidade de Tianjin, a cerca de 100 quilómetros de Pequim. Filha de pai violinista e mãe cantora lírica, Hong Jian cresceu a ouvir música clássica e popular, já que “era o que tocava na rádio”. Em pequenina, mais eram as brincadeiras que os instrumentos que a fascinavam. Mas a tradição chinesa mandava-a sentar e aprender. Tal como na maioria dos lares chineses, os pais de Hong Jian não duvidavam do poder da música no desenvolvimento da filha. “É bastante normal aprender-se um instrumento musical na China. Acredita-se que, quem tem este tipo de competência, é mais estruturado e tem melhores notas. Para além dos meus pais, eu tinha tios e primos a tocar profissionalmente. A música fazia parte do meu lar, e a música clássica era a banda sonora da minha família”, recorda. E, por isso, foi aos cinco anos que começou a aprender a tocar violino com o pai, mais por obrigação do que gosto. Aprendeu rápido que a força da genética a ajudava e logo o imperativo se tornou aperitivo de uma escolha de vida. Aos oito anos já tinha vontade própria. Pediu à mãe para mudar de violino para violoncelo porque gostava do som mais grave. Pequenina para um instrumento tão grande, Hong Jian deu a volta às medidas. O seu primeiro violoncelo foi feito propositadamente para o seu tamanho. O instrumento ocupava-lhe o corpo todo e escudava-a do mundo. Tornou-se parte de si, como mais um membro anatómico. Mais do que um braço ou uma perna, uma voz que falava em língua universal. Assim começou um percurso musical que a fez dar à volta ao mundo e a obrigou desde cedo a dar uma volta ao seu mundo. Sem olhar para trás como se outra escolha não tivesse. Aos 12 anos decidiu tentar a sua sorte no Conservatório Central de Pequim que funcionava como escola profissional. “Era uma escola interna, e vinham crianças da China inteira para tentar entrar. Não era fácil e havia poucas vagas. Mas eu consegui.” Era a primeira vez que vivia longe dos pais, da família, de casa. Num ambiente escolar cheio de outras crianças que vinham de outros países, de outras famílias, de outras casas. Podia ter sido uma experiência traumatizante, uma clausura solitária. “Na verdade, não me lembro que estes tempos tenham sido maus. Fiz novos amigos e isso facilitou tudo. Para mim, estar no Conservatório Central de Pequim foi não só uma honra como um momento decisor para a minha carreira.” Hong Jian não se lembra do momento em que decidiu seguir a música profissionalmente, mas se até Pequim as brincadeiras lhe ocupavam muito tempo, quando entrou no Conservatório, lembra-se que começou a estudar muito mais. Ali tudo era música e a música era tudo.

Pelo mundo fora

Rapidamente singrou e chegou a ser primeira violoncelo da Orquestra de Jovens da China, sob a  direcção do Maestro Muhai Tang. Nascido em Xangai, Muhai Tang é hoje maestro titular da Orquestra Filarmónica de Belgrado, maestro titular e director artístico da Ópera e Orquestra Tianjin e director artístico da Orquestra Filarmónica de Xangai e da Orquestra Sinfónica de Zhenjiang, na China. Tê-lo no currículo é por si uma mais-valia de peso. “Fiz várias tournÈes com a Orquestra de Jovens da China. Era a primeira vez que saía do meu país, foi um abrir de horizontes para mim. Tudo era novo e deslumbrante. De todos os países que visitámos, Itália foi o que mais me marcou.”

Pouco mais tarde, e continuando uma jornada que a muitos pareceria brilhante mas que para Hong Jian foi apenas o continuar natural de um caminho, foi-lhe atribuída uma bolsa do governo chinês que lhe permitiu ingressar no Conservatório Tchaikovsky, em Moscovo.

Fundado em 1866 pelo Príncipe Nikolai Petrovitch Troubetzkoy e Nikolai Rubinstein, irmão do famoso pianista Anton Rubinstein, o Conservatório Tchaikovsky era, quando Hong Jian lá entrou, uma das escolas de música mais conceituadas do mundo. Desde 1940 que se fazia conhecer pelo nome do compositor russo já que Tchaikovsky fora nomeado professor de Teoria Musical e Harmonia desde a inauguração da escola até perto de 1878. Entre os graduados estão o compositor, pianista e maestro russo Sergei Rachmaninoff, Mstislav Rostropovich, considerado por muitos um dos maiores violoncelistas do século XX, e Alfred Schnittke, visto como o compositor mais importante a surgir na Rússia desde Dmitri Shostakovich.

Para Hong Jian, era uma emoção percorrer aqueles corredores, mas ao mesmo tempo a adaptação nem sempre simples a um mundo novo. “Vivi quatro anos em Moscovo, e lembro-me que, no início, não foi fácil. Era tudo tão diferente e havia tantas restrições na União Soviética. Mas acabei por entender um pouco da língua, me habituar à comida e fazer amigos, o que facilitou a minha integração.”

O que também lhe resgatou o sorriso nos lábios foi a possibilidade de frequentar masterclasses com alguns dos seus ídolos, e dos maiores nomes da música clássica mundial. O francês Paul Tortelier foi um deles. “Nunca tinha visto ninguém tocar violoncelo daquela maneira, de certa forma era diferente de tudo.” Tortelier era um violoncelista e compositor francês extrovertido e um grande contador de histórias. Chegou a dar masterclasses na televisão britânica que eram bastante populares e seguidas mesmo por quem pouco ou nada entendia de música. Foi o primeiro ocidental a ser convidado professor honorário de música no Conservatório Central de Pequim. E cativava quem o rodeasse. “Com o seu instrumento, usava o espigão de uma forma que nunca havíamos visto. Era tudo uma novidade!”, recorda Hong Jian. Ainda hoje o espigão Tortelier é usado por uma geração de violoncelistas. Idealizado pelo músico, tem a ponta curvada para trás o que faz elevar o tampo do instrumento facilitando a execução musical.

Tortelier não foi o único grande nome da música clássica com quem Hong Jian tocou. Na altura, para além de Muhai Tang, já trabalhara com alguns dos mais importantes maestros da República Popular da China, nomeadamente com Long Yu, hoje director artístico e maestro principal da Orquestra Filarmónica da China e da Orquestra Sinfónica de Xangai. Mas Tortelier terá sido o que mais a marcou. O francês faleceu em 1990, com 76 anos.

O regresso

Cansada da distância e com saudades de casa, Hong Jian regressou. Em 1997 integrou a Orquestra de Câmara de Macau como assistente de primeiro violoncelo e começou a leccionar violoncelo no Conservatório da RAEM. “Queria estar perto dos meus pais e abriu esta vaga em Macau.” Embora alguns alunos só frequentassem as aulas por hobby ou para fazer a vontade aos pais, havia outros que queriam realmente começar ali uma carreira. Com uns e outros, Hong Jian aprendeu. E melhorou. “Para mim foi uma descoberta. Há vários problemas que resolvemos quando os tentamos explicar. Ensinar ajudou-me a tocar melhor”, recorda.

Foi igualmente em Macau que conheceu o violinista português Carlos Damas, que também tocava na Orquestra de Câmara de Macau. Foi ali que começaram a namorar e a fazer planos de outros cenários e outras orquestras. Em 2001, o casal decidiu ir para Portugal para integrar a Orquestra Metropolitana de Lisboa, que ainda hoje é a sua casa musical.

Na casa familiar têm duas filhas, sendo que uma também já toca violoncelo. Por enquanto, e tal como a mãe na sua infância, a menina partilha a música com a brincadeira e Hong Jian não faz questão que a filha lhe siga os passos. Sabe que a vida de um músico é dura, e se faz com paciência, determinação e muita dedicação. Apenas lhe pode ensinar o caminho e deixá-la escolher percorrê-lo, ou não.

Há 17 anos em Portugal, Hong Jian nunca esteve tanto tempo no mesmo poiso desde que se conhece adulta. Mais do que morada, Portugal já é pátria e Lisboa tem sabor a casa. Hoje já não pensa regressar à China, embora também nunca a deixe ficar demasiado longe. Faz questão de participar regularmente em formações de música de câmara e em vários festivais, nomeadamente o Festival Internacional de Música de Macau e o Festival de Artes da China, e aproveita para visitar o pai, a irmã e vários tios e primos.

Hoje, olhando para trás, Hong Jian admite que se não tivesse sido música, talvez gostasse de ter tentado a carreira de actriz. “Mas não sei se teria jeito”, acrescenta a rir. Para a música não há dúvidas. Seja por gosto herdado ou talento inato, a verdade é que as curvas da carreira de Hong Jian ditaram curvas por tantos países, todos tocados pelas curvas do seu violoncelo.