Ainda há alfaiates como antigamente

A massificação do vestuário continua a desafiar diariamente o trabalho dos tradicionais alfaiates de Macau. E a quem lhes sucede, defendem os antigos mestres da costura, falta técnica e conhecimento sobre o ofício

Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro 

Ainda há poucas décadas Lo Io Cheong abria a porta e via o mar. Em vez do jardim, uma fileira de pedras demarcava a baía da Praia Grande. A estátua de Jorge Álvares já lá estava, o antigo tribunal e o palácio do Governo também, mas poucas memórias do final dos anos 60 do século passado restam hoje no espaço. Foi por essa altura que Lo começou a trabalhar aqui, na Alfaiataria Domingos, como aprendiz. Domingos Cheong, o proprietário, tinha sete discípulos, e Lo, então jovem, era um deles.

“Eu estava a começar o secundário na escola Chong San, e como a minha família não tinha posses tive de ir à procura de um mestre com quem pudesse aprender alguma coisa para fazer da vida”, lembra Lo à MACAU que começou por ganhar na Alfaiataria Domingos 30 patacas mensais. “Eram 15 patacas a cada duas semanas, que serviam para ir ao barbeiro”, conta.

Clientela maioritariamente portuguesa

À entrada pára um homem para se proteger da chuva, um relógio de parede diz que são 12:21, e o homem desaparece. Enquanto lá fora se anda com urgência, cá dentro Lo Io Cheong segura-se ao tempo. Aponta para as fotografias no cimo da parede. Numa, o proprietário Domingos Cheong, hoje reformado e com 89 anos, aparece ao lado de Mário Soares (antigo Presidente da República de Portugal), antigo cliente deste estabelecimento, que abriu em 1963 na loja mesmo ao lado, também na Avenida Doutor Oliveira Salazar, hoje chamada de Avenida Doutor Mário Soares.

Mas há outros nomes e fotografias: os ex-governadores de Macau Nobre de Carvalho (1966-1974), Garcia Leandro (1974-1979) ou Rocha Vieira (1991-1999). “No passado, entre 70 a 80 por cento dos nossos clientes eram portugueses”, refere Lo, recordando ainda o macaense e antigo presidente da Assembleia Legislativa, Carlos D’Assumpção. “Era uma celebridade na sociedade de Macau e, por isso, vários magnatas o seguiam. Um dia o doutor abriu o casaco, esses mesmos magnatas ficaram a saber onde ele fazia a roupa e começaram a vir cá”, nota ainda o mestre, referindo que hoje são os chineses do Interior do País que mais recorrem aos serviços Alfaiataria Domingos.

Foram também os clientes portugueses que fizeram com que José Vong e a mulher, Mariana, responsáveis pela Sec Si Tailor, tenham sentido necessidade de aprender português e inglês.

“Um dia entrou um cliente e encomendou em inglês uma camisa com um `spare collar´ (colarinho sobresselente). Ele disse muitas vezes a palavra `spare´ e nós não entendemos o que era. Tivemos de perguntar a várias pessoas até perceber que ele queria um segundo colarinho para poder levar a um outro alfaiate em Portugal, caso quisesse substituir o primeiro”, lembra agora José Vong.

Estamos no número 89 da Rua Central. Vong, sentado ao balcão, traça um risco perfeito a giz amarelo num tecido cinzento; as mãos, morenas, elegantes, procuram uma tesoura gigante.

Depois de abandonar a escola no oitavo ano e de trabalhar ao longo de um ano e meio numa fábrica de roupa, também Vong se estreou no ofício com um mestre, em 1971. Sete anos depois abriu com a mulher, também costureira de profissão, a Sec Si. “Na altura tivemos de pagar uma taxa de dez mil patacas [pelo espaço], mas decidimos arriscar”, refere o mestre, pagando inicialmente 480 patacas mensais pelo espaço, que entretanto comprou.

A Sec Si começou por fazer trabalhos para outras alfaiatarias e para a vizinhança. “Com o tempo, estabelecemos a nossa própria marca”, salienta.

Alfaiatarias desaparecidas

Uma curta passagem pela Travessa dos Alfaiates, centro de Macau. Quem entra nesta via pela Rua dos Mercadores e vai em direcção à Camilo Pessanha, encontra logo no início a senhora Ng, concentrada numa máquina Singer, a coser a sola de uns velhos ténis azuis. Ng está aqui há mais de 30 anos, não sabe dizer por que razão é que a rua foi baptizada em português de Travessa dos Alfaiates – em chinês o nome é ‮$‬p‮٧‬s‮+‬ر‭ ‬(siu [pequeno] san (novo) hong [travessa]) e segundo uma tradutora que consultamos não tem qualquer significado. “Antigamente havia um alfaiate ali no canto”, ainda arrisca a senhora Ng.

Entramos na estreita travessa, cheira a bolinhos de ovos pelo caminho, silêncio. Não era assim antigamente, diz o senhor Lam, 63 anos, portas de casa abertas, paredes velhas, cozinha exposta, um pequeno templo na parede. Lam restaura móveis, nasceu e cresceu nesta rua, lembra-se de ali viverem dois alfaiates, que entretanto se reformaram, um sapateiro, um vendedor de ovos. “Eu e os meus vizinhos íamos ao alfaiate, porque Macau não tinha muito comércio de vestuário”, diz.

Um pequeno templo encerra a Travessa dos Alfaiates, viramos à direita, seguimos até à Choi I Tailor, ali perto, na Rua das Estalagens. Pelo caminho a Loja de Fazendas Veng On de portadas meio fechadas, a Quinquilharia Kuok Kong a vender uniformes escolares, a Loja de Algibebes Veng Sang, que nunca mais abriu.

“Antes chamávamos também à Rua das Estalagens de `Rua de comprar roupa´ (‮=‬ن٪،‮٥‬پ, que em cantonês se lê “maai bou gaai”), explica Fong Chan Hou, responsável pela Choi I Tailor.

Fong, 72 anos, senta-se ao balcão enquanto falamos. À nossa volta, tecidos, casacos, cores sóbrias, páginas de jornais e de revistas que falam sobre o negócio, uma tartaruga a tentar escapar de um alguidar, sem sucesso.

Fong lembra-se de pelo menos seis alfaiatarias aqui nesta rua. “Fico feliz por lhe dizer que a nossa era a melhor”, sublinha, enquanto regressa ao passado. “Antigamente havia aqui nas redondezas dois cinemas com sessões às 19:30 e 21:30 e como não havia em Macau muito que fazer à noite, as pessoas iam ao cinema e antes ou depois andavam por aqui a fazer compras”.

“Uma indústria em declínio”

Na década de 70 do século passado existiam cerca de 80 alfaiates em Macau, conta ainda Fong Chan Hou. Já nos anos 80, com a generalização dos negócios de pronto-a-vestir, o sector do corte e costura acabou por se ressentir. “Mais tarde, na década de 90, os alfaiates voltaram a ganhar popularidade, mas aqueles que tinham fechado não voltaram a erguer-se. Em vez disso chegaram novos alfaiates da China, que diziam que eram de Xangai, mas na realidade não estavam à altura dessa reputação”, recorda o alfaiate.

Após 40 anos de actividade, também a Sec Si Tailor está a poucos dias de fechar as portas. “A indústria está em declínio e já não vale a pena estar aqui sentado, a perder tempo”, lamenta José Vong.

Conta o alfaiate à MACAU que fez de tudo para salvar o negócio: adaptou-se às novas tendências da moda masculina e ainda tentou diversificar a actividade, passando o segundo andar ao filho e à nora, que estabeleceram aí um negócio de roupa para casamento. Cá em baixo o alfaiate continuava a confeccionar fatos, sobretudo smokings para acompanhar as bodas, mas também esse negócio acabou por encerrar. “Numa loja, compra-se um fato rapidamente, daí as pessoas preferirem roupa já feita, além de custar menos. Aqui levamos um mês a fazer um fato”, realça à MACAU.

Já Lo Io Cheong assegura que a Alfaiataria Domingos tem conseguido passar por cima da crise. “O sector do pronto-a-vestir e da roupa por medida afectam-se mutuamente”, admite Lo, reforçando que os preços de um fato variam aqui entre as oito mil e nove mil patacas e são mais baratos do que nas lojas de marca. Quanto à concorrência do pronto-a-vestir, Lo defende-se: “Nós fazemos roupa 100 por cento ao gosto do cliente”.

Nova geração sem tempo

Muito tem mudado também na relação entre o homem e o vestuário. Hoje falta elegância e cuidado na arte do vestir, considera José Vong. “Vêem-se homens fortes com fatos demasiados justos, mangas muito curtas, a descobrirem os pulsos, calças excessivamente curtas, com o tornozelo à mostra, o que não é adequado”.   

Os alfaiates entrevistados pela MACAU acreditam também que há um vasto conhecimento na área que não tem chegado à nova geração de alfaiates. Vong fala, por exemplo, na capacidade de observação do alfaiate. “Alguns jovens fazem cursos de curta duração, o que não lhes dá tempo para consolidar a técnica e o conhecimento”, afirma o mestre, para quem um bom alfaiate “olha para um cliente e sabe de imediato o tamanho deste”.

Outro dos desafios, continua Lo Io Cheong, é o interesse pelo ofício. “Para entrar na profissão é necessário um longo período de estudo, que pode durar vários anos, e hoje em dia ninguém tem paciência para isso. Os jovens querem entrar para a indústria do jogo, porque os salários são mais altos e o ambiente de trabalho não é tão duro, mas mais confortável”, conclui.


GENTLE MANNER: REINVENTAR A ALFAIATARIA

A Gentle Manner não quer fugir à tradição, mas reinventá-la. E percebem-se no espaço, simples detalhes que encontramos nesta alfaiataria: uma antiga máquina de costura, verde e dourada; um telefone de parede, de madeira, disco rotativo; três calçadeiras penduradas perto do balcão. O projecto quer restabelecer um negócio tradicional “através de um novo método”: “Passamos provavelmente entre entre 50 a 60 por cento do tempo a falar com o cliente. Não queremos vender um fato preto, não queremos que o cliente pague e se vá embora, mas queremos saber por que razão é que ele necessita desse fato”, diz à MACAU Calvin Chan, um dos três sócios.

A filosofia da Gentle Manner, chama a atenção o empresário, está no slogan da marca: `Suit your manner´. “Suit é um substantivo e significa `fato´, mas se entendermos como um verbo, então seria algo como `Veste a tua atitude, o teu estilo´”, explica Chan.

Uma casa italiana

Foi há cerca de seis anos que Calvin Chan, Johnny Io e Kit Cheng começaram a pensar neste projecto. Na altura trabalhavam numa conceituada marca italiana de roupa para homem, em Macau, quando, durante uma saída à noite perceberam que tinham mais em comum do que apenas o local de trabalho. “Adoramos moda, especialmente o estilo italiano”, recorda Calvin.

Essa foi a principal razão pela qual a Gentle Manner não poderia ser outra coisa senão uma casa italiana de moda masculina. Mas não foi a única. “Inglaterra tem séculos de experiência na alfaiataria, na confecção de fatos. Itália foi influenciada por Inglaterra, mas com mudanças, com artigos mais sofisticados e luxuosos. Como no passado Macau foi influenciado por Portugal e pela cultura ocidental, nós acreditámos que o estilo italiano fosse servir aos residentes de Macau”, afirma.

Conta Calvin Chan que, desde o início, amigos e familiares alertaram os empresários para o perigo de haver uma fraca resposta do consumidor à moda italiana em Macau. Mas a verdade é que poucos meses depois de abrir as portas, em 2015, o investimento foi recuperado. Por mês, recorrem aos serviços desta alfaiataria cerca de 300 pessoas, na maioria são jovens.

Mix and match

Assim se faz um fato na Gentle Manner: o design vem de Itália, as medidas são tiradas em Macau, o artigo é confeccionado numa fábrica em Shenzhen, província chinesa de Guangdong, com tecidos provenientes dos Estados Unidos da América, Reino Unido ou Itália. Os preços podem variar entre as 10 mil e as 30 mil patacas. “Se comparares com fatos de grandes marcas usamos a mesma técnica, o que quer dizer que podes gastar menos dinheiro por um fato que numa marca custaria muito mais”, diz o empresário.

Além de fatos e camisas a loja vende ainda calçado, gravatas, laços e acessórios, como botões de punho, que podem ser personalizados à medida do cliente.

O mix and match, acrescenta Calvin Chan, é uma das novidades da Gentle Manner: “Descobrimos que muitos clientes homens não sabem conjugar a roupa e nós ajudamos a combinar produtos que são aqui comprados com outros que os clientes têm no armário”.

Para o futuro os jovens esperam conseguir ir além-fronteiras. Shenzhen e Cantão, no Interior da China, poderão ser os próximos destinos desta alfaiataria italiana de Macau.