Festejar os antepassados

O culto dos antepassados na China remonta, como na maior parte das culturas e civilizações, aos primitivos tempos do homem, com um papel de destaque nas práticas animistas

Texto Fernando Sales Lopes |  Fotos Tatiana Lages

Como noutras sociedades agrárias, dependentes da sobrevivência e dos elementos, a religião centrava-se no culto dos antepassados, nos rituais da fecundidade, na adoração dos espíritos que acreditavam controlar as forças da natureza. A prática do culto dos antepassados na China começa a estruturar-se a partir do segundo milénio antes de Cristo, a par com o desenvolvimento de conceitos religiosos e filosóficos como o taoismo e o confucionismo.

O culto dos antepassados entre os clãs foi a base onde assentaram hereditariedades que fundamentaram poderes e dinastias, linhagens guerreiras, administrativas ou terratenentes, e até estatutos que concedem lugares no panteão das divindades.

A Religião Popular Chinesa é, antes de mais, a veneração das divindades enquadradas numa complexa hierarquia governadas no seu topo pelo Imperador de Jade. São venerados nas crenças da Religião Popular Chinesa os espíritos dos míticos e lendários humanos; os espíritos deificados de guerreiros e heróis que habitam o mundo do sobrenatural; os espíritos da natureza não personalizados (reminiscências animistas); os espíritos demoníacos que vagueiam pela terra e pelo mundo subterrâneo, como os fantasmas de humanos perdidos (kuais), ou que desapareceram por acidente ou de forma violenta, antes da data marcada nos Registos Celestiais. E os antepassados.

As festividades mais importantes do culto dos antepassados Ching Ming

O Ching Ming (清明節,também conhecido por Cheng Ming ou Cheng Meng) é a mais importante data do calendário chinês no âmbito do culto dos antepassados pelas famílias. Tem lugar sempre no 106.º dia depois do Solstício de Inverno, pelo que calha nos dias 4 ou  5 do gregoriano mês de Abril. Neste ano de 2019 a data comemorou-se no dia 5. 

Depois do Ano Novo Lunar, o Ching Ming é o primeiro dos cinco maiores festivais chineses, a que se seguem o Yu-Lan Pen, ou P’u-tu (Festival da Salvação Universal), o Festival dos Espíritos Esfomeados (15.º dia da 7.ª Lua), o Festival das Lanternas e o de Chong Yeong. Destes, dois são dedicados aos antepassados.

O culto dos antepassados parece ser a verdadeira religião chinesa, já que todas as outras vieram do exterior e, mesmo o confucionismo e o taoismo, filosofias que em determinadas épocas assumiram estatutos religiosos, trataram as questões relacionadas com a morte e os antepassados de formas diversas ou difusas.

O confucionismo acabou por abraçar o culto dos antepassados mas como parte integrante da piedade filial, a Grande Virtude.

Rituais

O Ching Ming (ou Suprema Claridade) leva os chineses a dirigirem-se para todos os locais onde descansam os seus defuntos e os espíritos dos antepassados, para lhes prestar homenagem e culto.

As famílias limpam e lavam as campas dos seus antepassados, “batem cabeça” e fazem oferendas. Acendem-se pivetes de incenso e queimam-se variados objectos falsos de papel, como automóveis, telemóveis, televisões, câmaras fotográficas e coisas que se crê serem do seu agrado ou se pense serem-lhe necessários entre outros, e imitações de dinheiro), para que no outro mundo os antepassados os recebam, e com eles sejam felizes. A seguir fazem-se as ofertas de comida com leitão assado, bocados de char-shiu (carne de porco assada), galinha a vapor, ovos cozidos, pratos com frutas e outros acepipes, a que se juntam três taças de vinho e três conjuntos de pauzinhos (faichi), que são colocados sobre a laje da campa.

Com o copo de vinho na mão, o chefe de família curva-se perante a campa, atirando o vinho para o chão, acto que repete três vezes. Os restantes familiares, com a mão direita fechada coberta pela esquerda, fazem três vénias perante a campa do antepassado. A comida oferecida em regra será pasto para um piquenique dos presentes em alegre convívio com os ausentes, o que para além do mais é visto como um acto que traz boa sorte aos participantes. O ritual termina com a queima de panchões e a colocação de um papel vermelho na pedra tumular, a avisar que aquele defunto já foi homenageado pelos seus familiares e não é um desgraçado, cujo espírito se separará para sempre do corpo por não ter quem o venere.

O culto em Macau

É a ocasião de reunião familiar que demonstra bem o conceito chinês de continuidade para além da morte e de estreito relacionamento com os defuntos e de piedade filial. Por isso, o Ching Ming é vivido em Macau como em toda a China, e em qualquer lugar de fixação chinesa. Os familiares, vindos por vezes de muito longe (tal como no Ano Novo Lunar), juntam-se ao clã e visitam os vários cemitérios onde jazem os seus antepassados dentro da cidade de Macau, nas colinas das ilhas e nas regiões vizinhas do Guangdong e Hong Kong. Também os que residem nestas regiões e têm os seus antepassados em Macau aqui afluem para visitarem as campas dos seus familiares e prestarem-lhes culto.

A interculturalidade e a multiculturalidade vivida em Macau, a liberdade religiosa e a forma não ortodoxa da vivência do cristianismo entre a comunidade chinesa proporciona situações características do culto nesta terra que poderão parecer estranhas aos que desconhecem todas estas características. Assim, para além dos rituais normais do Ching Ming em todos os cemitérios chineses de Macau, também nos cemitérios seculares maioritariamente de tradição católica se podem observar práticas relacionadas com o culto dos antepassados totalmente aculturadas ou em simbiose cultural, na deposição de flores e “bater cabeça” aos antepassados. Interessante, também, alguns cemitérios, como o da confederação budista, taoista e confucionista da Taipa, onde algumas das campas chinesas ostentam, hoje em dia, iconografia cristã à mistura com divindades ou inscrições da religião popular chinesa.

 

Chong Yeong

O Chong Yeong (重陽節), festividade que se comemora na China desde os tempos da Dinastia Han, tem origem numa lenda, que a coloca mais na tradição da subida aos locais elevados do que propriamente na de uma repetição do Cheng Ming, no Outono.

Conhecido também pelo Duplo Nove (bem expresso nos caracteres chineses), já que se comemora no 9.º dia da 9.ª Lua (calhando neste ano de 2019 a 7 de Outubro) o Chong Yeong apresenta características distintas em Macau e Hong Kong, onde surge também como uma prática arreigada de culto dos antepassados.

No Interior do País e em Macau, e em diversos locais da diáspora chinesa, o dia, para além dos passeios familiares aos locais elevados, é dedicado aos idosos, numa perspectiva da homenagem à longevidade e protecção da terceira idade.

 

A lenda do Chong Yeong

Dada como remontando à Dinastia Han (206 a. C. a 220 d. C.), a lenda conta que um monge taoista – estamos na época em que o taoismo ascende a uma religião ao nível do Estado –  de nome Fei Changfang (que viria a atingir a grau de Imortal) avisa com antecedência Woon King Huan Jing, seu discípulo, que grande catástrofe está para acontecer, pelo que deverá passar todo o 9.º dia da 9.ª Lua com a sua família nas montanhas. O letrado assim o fez, levando consigo provisões e vinho de crisântemo para a estadia.

Ao descer das montanhas com a sua família, Woon encontra na aldeia apenas destruição e morte. Por esta razão ter-se-á começado a comemorar a data com a ida para sítios altos fazendo piqueniques, bebendo vinho de crisântemo, por uma vida longa e próspera.

A importância do crisântemo

A data também é comemorada tendo o crisântemo – flor inspiradora de poetas e pintores no Oriente – como centro das atenções, fazendo visitas a jardins e florais para apreciar o seu último florescer do ano. Considerada a flor do Outono, o crisântemo é também, entre outros, símbolo de boa saúde e longevidade [ver caixa com o poema de Tao Chien].

 

A tradição em Macau

Tal como em Hong Kong, o Chong Yeong é dia de lembrar os antepassados com visitas aos cemitérios, com queima de dinheiro para o outro mundo, de pivetes, assim como réplicas em papel de vestuário para o Inverno que se aproxima. A confraternização familiar com um piquenique também é uma das práticas.

Há grandes semelhanças com o Ching Ming, sendo também conhecida esta festividade como a Lembrança de Outono, fechando assim o ciclo iniciado na Primavera com o Ching Ming.

Contudo, se o primeiro é conhecido em Macau na tradução para o português como Dia de Finados, e o segundo como Culto dos Antepassados, é na verdade do culto dos antepassados que se trata em ambas as festividades. Sabe-se lá por que razão o tradutor assim o fez, tanto mais que o segundo se aproxima mais, em termos de datas, do Dia de Finados cristão. Talvez tivesse havido por parte do tradutor uma vontade de dar à festividade paralelismo à comemoração dos Finados. Embora muitas vezes se defenda esta semelhança, tal não passa de um equívoco que se perpetua, visto não existir nada de comum entre as duas práticas. A católica e a chinesa relativamente aos familiares desaparecidos e a relação com o antepassado é totalmente diferente na sua essência. Ou os de cultura cristã também vão às campas para conviver com os espíritos dos antepassados?

Na verdade, até finais do século XX o Chong Yeong em Macau era essencialmente um dia de culto dos antepassados, conhecido como um dia de visitas aos cemitérios, e assim reconhecido pela população em geral, daí permanecendo o culto aos antepassados na data.

Nos dias de hoje, para além das iniciativas individuais, de famílias e grupos, instituições várias, privadas ou públicas começaram a organizar passeios às “montanhas”, principalmente em Coloane, com actividades lúdicas, em que o “estar alto” é o objectivo, por dar sorte como deu ao literato que escapou da morte com os seus familiares, assim como o lançamento de papagaios pelos mais jovens, também em locais altos aproveitando os bons ventos do Outono. Estas práticas estão, na verdade,  mais perto das origens lendárias do Chong Yeong, e são comuns no Interior do País.