RAEM/20 anos | Economia. Da sombra da ameaça da SARS à esperança da cooperação regional e internacional

Nos primórdios da RAEM eram pragmáticas as projecções para o desenvolvimento económico, tendo em conta os ainda elevados níveis de desemprego e o enorme impacto da epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS). Edmund Ho Hau Wah, o primeiro Chefe do Executivo da RAEM, já revelava vontade de apostar na integração e cooperação com o Interior do País. Vinte anos depois, Macau é um suporte de relevância na iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota” e no projecto da Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau, preparando-se agora para entrar numa fase de consolidação do seu sector financeiro.

Texto Andreia Sofia Silva

As duas décadas de existência da RAEM ficaram marcadas por um enorme desenvolvimento económico embalado por um nova estrutura industrial encabeçada pela indústria do jogo e do turismo, assentes no sector de serviços em coordenação com outros. De um território onde o sector industrial empregava uma parte significativa da população, e onde o desemprego era visível nas estatísticas, Macau passou a uma situação de pleno emprego e com o Produto Interno Bruto (PIB) entre os mais elevados do mundo.

Se nas Linhas de Acção Governativa (LAG) para o ano de 2001 Edmund Ho Hau Wah, Chefe do Executivo, mostrava vontade de criar medidas de apoio aos desempregados e ao fomento económico em parceria com a vizinha província de Guangdong, essas intenções foram-se tornando cada vez mais evidentes.

Nas LAG para o ano de 2004, já o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum de Macau) estava criado, os projectos de Edmund Ho para a área da economia mostram uma nova pujança, uma vez que os efeitos negativos da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), que desferiram fortemente o País entre 2002 e 2003, já tinham passado. “Embora Macau tenha sido afectada pelos efeitos da SARS, a indústria do turismo e do jogo continuou a apresentar resultados positivos, graças a factores externos e ao esforço desenvolvido pelo Governo e pelos vários sectores da sociedade. Após o termo do surto da epidemia, a indústria do turismo alcançou resultados e com a política do ‘visto individual’ aplicada pelo Interior da China, o mercado turístico registou uma grande expansão. Neste último ano o volume de exportação e importação em Macau foi relativamente satisfatório”, anunciava Edmund Ho na Assembleia Legislativa em 2003.

Em 2004, o Governo mostrava vontade de “apostar no aperfeiçoamento das condições da actividade comercial”, com a “elaboração e a revisão do primeiro pacote de diplomas legais relativos à lei do comércio externo”, sem esquecer a “optimização gradual dos serviços administrativos e uma maior circulação de informações industrial”.

No que diz respeito à cooperação regional na área do comércio, o Governo de Edmund Ho atribuía “grande importância ao desenvolvimento das relações com o Interior do País, nomeadamente no aceleramento da integração económica com a região do Delta do Rio das Pérolas e no reforço da cooperação em outras áreas, com vista a alcançar o objectivo de uma partilha justa de recursos e a complementaridade das vantagens”. À época, o Grupo de Ligação para a Cooperação entre Macau e Guangdong era responsável pela elaboração de estudos e promoção de iniciativas.

Foi no ano de 2004 que começou a falar-se nos efeitos positivos que a ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau iria trazer para o território, um projecto inaugurado em Outubro de 2018 na presença do Presidente Xi Jinping. “O lançamento dos trabalhos preparatórios para a construção da ponte Hong Kong-Zhuhai-Macau irá acelerar o processo de integração económica das três regiões”, previa o Executivo da RAEM há 15 anos.

O primeiro resort integrado

Os sinais positivos na economia já se faziam sentir um ano antes quando, em 2003, Macau e o Interior do País assinaram o “Acordo de Estreitamento das Relações Económicas e Comerciais entre o Interior da China e Macau”, mais conhecido por Acordo CEPA, que tinha como grande objectivo liberalizar o comércio e os serviços entre os dois territórios, desburocratizando processos.

Tai Kin Ip, director dos Serviços de Economia, recorda, numa nota oficial, que o Acordo CEPA “injectou um novo dinamismo no desenvolvimento da economia de Macau numa altura em que a economia enfrentava muitos desafios”. Até 2013 tinham sido assinados dez acordos de liberalização ao ritmo de um por ano, tendo sido “aprofundadas medidas preferenciais no âmbito de três áreas comerciais e económicas, tal como o comércio de mercadorias, de serviços e facilitação do comércio e investimento”. A título de exemplo, no que diz respeito ao comércio de serviços, há hoje 153 sectores que são liberalizados pelo Interior do País para Macau, o que representa 95,6 por cento dos 160 sectores classificados de acordo com a Organização Mundial do Comércio.

Mas não foi apenas o Acordo CEPA a transformar a economia de Macau. A chegada dos resorts integrados deu um contributo inigualável. O início da era RAEM ficou marcado pela liberalização do jogo e permitiu a entrada de operadoras norte-americanas no sector, o território passou a conhecer um novo nível de desenvolvimento. Nesse sentido, 2004 marcou o ano em que o primeiro resort integrado estrangeiro abriu portas em Macau.

Nas LAG de 2005, o panorama era bem mais animador face aos anos anteriores. “A indústria do jogo tem vindo a contribuir, de forma progressiva, para a melhoria do panorama de toda a economia da RAEM, bem como o desenvolvimento dos sectores com aquela relacionados. Registou-se nas actividades de serviços offshore uma tendência de crescimento relativamente acelerado”, frisava o Executivo.  

Graças aos “efeitos impulsionadores resultantes da implementação do CEPA e da dinamização do sector do jogo e turismo, a economia de Macau apresentou uma rápida tendência de crescimento”. Só no primeiro semestre verificou-se “um crescimento de 36 por cento no PIB, prevendo-se que a taxa de crescimento económico de todo o ano seja superior à do ano transacto. No decurso deste ano verificou-se uma diminuição na taxa de desemprego”, recordava Edmund Ho.

No que diz respeito à cooperação regional, destaque ainda para os primeiros passos tomados em prol da construção da zona reservada a Macau no âmbito do Projecto do Parque Industrial Transfronteiriço Zhuhai-Macau, inaugurado em 2006 e que foi aprovado pelo Conselho de Estado três anos antes.

Projectos rumo à diversificação

A inauguração de mais resorts integrados de outras operadoras nos anos seguintes, sem esquecer os restantes projectos no Cotai, trouxe novo fulgor à economia, mas hoje o caminho que a RAEM quer traçar passa pela diversificação da economia e pelo desenvolvimento de um Centro Mundial de Turismo e Lazer, onde os resorts integrados apostam cada vez mais na oferta de serviços turísticos e actividades para toda a família.

Além da implementação de inúmeras medidas de apoio para as pequenas e médias empresas, face à necessidade de promover a diversificação adequada e o desenvolvimento sustentável da economia, o Governo da RAEM lançou, em 2013, o “Plano de Apoio a Jovens Empreendedores”, concedendo uma verba de apoio, sem juros, a cada jovem local que tenha o projecto de criar o seu próprio negócio mas que não disponha de capital suficiente. Por outro lado, Macau quer assumir-se cada vez mais como um importante centro financeiro para empresas chinesas e oriundas de países de língua portuguesa. Para isso, as autoridades têm vindo a estudar novas medidas de desenvolvimento do sector, tendo inclusivamente implementado uma lei que põe fim à actividade offshore. Esta lei visa responder a uma exigência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e obriga ao fim das entidades offshore até 1 de Janeiro de 2021.

Para Lionel Leong, secretário para a Economia e Finanças desde 2014, “o sector financeiro com características próprias é uma indústria emergente que o Governo da RAEM pretende impulsionar, sendo que o território deverá ter o papel de ‘Plataforma de Serviços Financeiros entre a China e os Países de Língua Portuguesa’ e do ‘Centro de Liquidação em RMB para os Países de Língua Portuguesa’”.

As autoridades têm vindo a estudar a implementação de uma bolsa de valores em Macau, tendo, para isso, vindo a realizar inúmeras reuniões oficiais, inclusivamente em Portugal. Em Outubro, o secretário para a Economia e Finanças, Lionel Leong, disse que “durante o processo do estudo de viabilidade, o Governo irá incentivar as empresas de consultadoria a analisarem a situação real de Macau, de forma a tomarem conhecimento e a dialogarem com os mercados financeiros das regiões vizinhas de Macau e outras regiões internacionais”.

“Caso seja criado um mercado bolsista, este não só deve articular com o resto do mundo, como também, na RAEM, tem de se ter em consideração a legislação, a formação de quadros qualificados, o sistema de gestão e fiscalização e outras complementaridades em termos de recursos humanos e infra-estruturas”, referiu o secretário, citado num comunicado oficial.

Outra área onde Macau tem dado cartas é o sector das convenções e exposições, que cada vez mais se realizam dentro e fora do espaço dos resorts integrados. Um dos eventos mais importantes é a Feira Internacional de Macau (MIF, na sigla inglesa), que este ano celebrou 24 anos de existência e que cada vez mais se assume como um lugar onde empresas chinesas, empresas locais e dos países de língua portuguesa estreitam laços.

Este ano a área de exposição da MIF atingiu cerca de 24 mil metros quadrados, tendo contado com 1500 stands de exposição, incluindo o Pavilhão Temático de Cabo Verde e o Pavilhão Temático da Província de Jiangsu, instalados respectivamente pelo País Parceiro e pela Província Parceira deste ano.

Além disso, a MIF continua a ter pavilhões temáticos de comércio e economia das províncias e cidades do Interior do País e dos países e regiões estrangeiros, assim como zonas de exposição temáticas. Os conteúdos da exposição abrangem o ambiente e projectos de investimentos, nacionais e estrangeiros, assim como o sector financeiro com características próprias, produtos alimentares e vinhos, indústrias culturais e criativas, tecnologias inteligentes, design de moda, cuidados de saúde e comércio electrónico, entre outras áreas.

Para fomentar este sector e dar apoio a pequenas empresas que queiram apostar nesta área, o Instituto de Promoção do Comércio e Investimento de Macau (IPIM), criado em 1994, tem dado um importante contributo.

De acordo com o relatório anual de 2017, o último disponível publicamente, o IPIM acolheu 911 potenciais investidores no âmbito da iniciativa “One Stop”, processou 947 pedidos de consulta e recebeu 132 projectos de investimento (não incluindo projectos de serviços de offshore). Durante todo o ano finalizou o acompanhamento de 119 projectos de investimento. No que diz respeito às bolsas de contacto, no ano de 2017 foram realizadas 947 bolsas de contacto nas várias actividades de convenções e exposições de Macau e do exterior, tendo sido concretizadas 155 assinaturas de protocolos de cooperação.

Após a assinatura do Acordo-Quadro de Cooperação Guangdong-Macau, lançou-se, em 2011, o Projecto do Parque Científico e Industrial de Medicina Tradicional Chinesa para a Cooperação entre Guangdong-Macau, em Hengqin (Ilha de Montanha). O Parque tem-se dedicado sempre ao impulso do desenvolvimento da diversificação adequada da economia de Macau e à expansão da cooperação com os países de língua portuguesa e as organizações e instituições internacionais de medicina tradicional, esforçando-se para construir uma base de demonstração de intercâmbio e cooperação internacional nas áreas de registo internacional, comércio de importação e exportação, ensino e formação e pesquisa científica de medicina tradicional chinesa, tanto para os países de língua portuguesa como para os países e regiões vizinhos da União Europeia, África e ASEAN.

O papel nos projectos nacionais

Macau entra numa nova era com dois projectos pensados pelo Governo Central, aos quais tem de dar resposta com um posicionamento estratégico: a Grande Baía Guangdong-Hong Kong-Macau e a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”.

O primeiro está a ser pensado para ser um verdadeiro hub comercial e tecnológico no sul da China que, além de Macau e Hong Kong, é composto por nove cidades do Delta do Rio das Pérolas (Cantão, Shenzhen, Zhuhai, Foshan, Huizhou, Dongguan, Zhongshan, Jiangmen e Zhaoqing) que, em 2017, tinham uma área superior a 56 mil quilómetros quadrados e uma população de cerca de 70 milhões de pessoas. O calendário das autoridades para o projecto da Grande Baía está traçado em duas fases. Uma, que vai do presente até ao ano de 2022, e outra até 2035.

No projecto da Grande Baía, cada cidade tem o seu posicionamento estratégico, sendo que Macau deve, aos olhos das autoridades de Pequim, constituir “Um Centro, Uma Plataforma, Uma Base” (O Centro Mundial de Turismo e Lazer, a Plataforma de Serviços para a Cooperação Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa e a Base de Intercâmbio e Cooperação que, tendo a cultura chinesa como a cultura predominante, promova a coexistência de diversas culturas). Além disso, o território deve ser uma das quatro cidades principais na construção da Grande Baía, bem como um dos motores essenciais no desenvolvimento regional.

Outro projecto no qual Macau desempenha um importante papel é o da participação na política “Uma Faixa, Uma Rota”, cujo acordo foi assinado por Chui Sai On, Chefe do Executivo entre 2009 e 2019, em Pequim, em 2018. Um ano antes tinha sido criada a Comissão de Trabalho para a Construção de “Uma Faixa, Uma Rota”, que trabalha sob alçada do Chefe do Executivo.

Em Outubro deste ano aconteceu a segunda reunião conjunta sobre o apoio à participação de Macau na construção de “Uma Faixa, Uma Rota”, em Pequim. Sónia Chan, secretária para a Administração e Justiça, afirmou que a participação de Macau na construção de “Uma Faixa, Uma Rota” é bastante significativa para proporcionar um posicionamento na nova era e procurar novos desenvolvimentos. A secretária falou ainda da importância da colaboração com o planeamento geral nacional, assim como consolidar e reforçar as próprias vantagens de Macau, a fim de procurar um desenvolvimento cada vez maior.

As primeiras directivas relativamente à participação de Macau nesta política começaram a ser anunciadas aquando da apresentação do Plano Quinquenal de Desenvolvimento da RAEM (2016-2020), divulgado em Setembro de 2016. Neste documento, apresentado por Chui Sai On, foi declarado que “nos próximos cinco anos Macau irá seguindo a missão e a responsabilidade que lhe foram confiadas pelo Décimo Terceiro Plano Quinquenal Nacional, articular-se com as importantes estratégias de desenvolvimento nacional, elevando ainda mais a posição e a função que Macau irá desempenhar no desenvolvimento nacional e na sua abertura ao exterior”.

Neste sentido, o território “terá de revelar as suas vantagens competitivas próprias, ampliar e intensificar a cooperação regional com Guangdong e com a região do Pan-Delta, para se complementarem e obterem proveitos e benefícios mútuos e, em conjunto, criarem a Grande Baía de Guangdong-Hong Kong-Macau, apoiando assim a concretização da estratégia nacional ‘Uma Faixa, Uma Rota’”. Isto prova que o futuro de Macau se faz de mãos dadas com a China, numa altura em que as contas públicas revelam uma enorme solidez financeira. Até Agosto de 2019 as reservas básica e extraordinária da reserva financeira de Macau ascenderam, respectivamente, a 148.888 milhões e a 423.365 milhões de patacas.

O relatório da execução orçamental relativo a 2018 conclui que o jogo continuou a desempenhar, ao longo dos anos, um importante papel para a riqueza dos cofres públicos. O valor total da receita ordinária integrada do Governo, no ano de 2018, foi de 141.313 milhões de patacas, verificando-se um acréscimo de 11,8 por cento, ou seja, de 14.946 milhões de patacas, face ao ano de 2017. Quanto às receitas correntes de 2018, foram arrecadados 104.680 milhões de patacas em impostos directos sobre o jogo, que se traduziram numa subida de 12.675 milhões de patacas face ao ano de 2017.