“Macau é um exemplo para o mundo”

O director do Serviço de Pediatria do Centro Hospitalar Conde de São Januário, e um dos homens da linha da-frente dos Serviços de Saúde no combate ao novo coronavírus, explica à MACAU porque a cidade é um exemplo mundial. Jorge Sales Marques salienta a coragem do Governo e dos Serviços de Saúde em actuar rapidamente e defende que temos de estar unidos se queremos pôr fim ao COVID-19

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

Que medidas preventivas foram tomadas logo no início?

Assim que foi reportado pela Organização Mundial da Saúde o aparecimento do novo coronavírus, a 31 de Dezembro, enviámos logo uma equipa que medisse a temperatura das pessoas que vinham no avião de Wuhan para Macau a 1 de Janeiro. A febre é um dos sintomas, aparece em cerca de 40 por cento dos casos. Registarmos a temperatura e apanharmos logo os casos no início seria uma forma de evitar a propagação.

Uma medida que se estendeu.

Começámos a fazer o registo de temperatura em diversos locais, públicos e privados. Fizemos uma campanha sobre a utilização das máscaras para evitar o contágio, muito importantes porque 20 por cento dos doentes não apresentam febre e, portanto, não sabem que estão doentes e podem contagiar. Também ensinámos, através de diversos canais como os meios de comunicação, como se devia lavar as mãos e a importância disso.

Houve mais medidas além destas três fundamentais?

Naquela fase inicial, era importante conseguir o controlo interno das infecções. Tínhamos de cortar o ciclo. Macau tem uma elevada densidade populacional e recebe anualmente cerca de 40 milhões de visitantes, quase 100 mil por dia, o que seria um factor de risco. Era importante evitar o aglomerado de pessoas. Fechámos tudo o que tínhamos de fechar, encerrámos as fronteiras e mesmos os estabelecimentos públicos estiveram fechados durante um período.

E finalmente o isolamento.

Foi crucial. As pessoas ficaram em casa, as ruas de Macau estavam completamente desertas. Cozinhavam em casa e saía só um membro da família para ir às compras ou buscar comida. O vírus multiplica-se através da junção de pessoas. Regra geral, uma pessoa infectada pode contagiar entre três a seis, em média. Outra medida de sublinhar foi o estudo epistemológico de cada caso: onde e com quem esteve cada pessoa infectada.

Que regras foram implementadas nos postos de saúde?

No quarto dia depois do primeiro caso – a 26 de Janeiro – iniciámos um plano de emergência nos hospitais e centros de saúde. Dividimos o pessoal em dois grupos. Uma parte trabalhava nuns dias ou em certas partes do dia, e os outros nos restantes. Metade dos profissionais mantinha-se no activo e a outra ficava em casa, em isolamento, para garantir a assistência atempada. Suspendemos as cirurgias, procedimentos e consultas não urgentes. Passámos a fazer consultas pelo telefone ou videoconferência. Cortámos completamente com as visitas às pessoas internadas. O doente podia ligar para a família através dos telemóveis próprios ou de videoconferência por meio dos telefones instalados nas enfermarias. Também construímos uma emergência especial. O doente entra pela urgência, onde está uma equipa que constrói a história de onde esteve nos últimos 14 dias, medimos a temperatura e fazemos o rastreio normal. Se tivesse um percurso suspeito, ia para a emergência especial onde se fazia a colheita para COVID-19 e ficava à espera do resultado. No caso de dar positivo, era internado. Se desse negativo, ia depender de três critérios.

Pode detalhar esses critérios?

Se pertencia ao grupo de baixo, moderado ou de alto risco. No alto risco, incluíamos quem tivesse tido um contacto próximo ou íntimo com um doente, inferior a um metro, de meia hora e sem máscara, ou que viesse de zonas epidémicas; de risco moderado, os que tinham tido contacto mas não íntimo com algum paciente; e no terceiro grupo, entrava quem tivesse contacto com grupos, como funcionários dos casinos, motoristas, pessoal dos hotéis. Nos grupos de risco moderado ainda tínhamos dois grupos: os mais leves, que podiam ir para o Alto de Coloane, e os que estivessem pior, que mesmo com um quadro negativo ficavam aqui no hospital e repetíamos o teste. Já os de risco leve incluía as pessoas com um quadro normal – febre e tosse moderada. Nos casos leves e moderados e que faziam o teste, iam para casa, e se se confirmasse, ligávamos e essa pessoa era recolhida em casa por uma equipa. Não vinha sozinha para o hospital.

E no caso da quarentena domiciliária?

Ainda há pessoas nesse regime, mas aos poucos estão a ser liberadas. Neste caso, o acompanhamento é feito pelos Serviços de Saúde e pela polícia, que vai a casa a horas e dias aleatórios sem pré-aviso confirmar se a pessoa está a cumprir a quarentena. Os Serviços de Saúde fazem o controlo via telefone várias vezes ao dia.

Entretanto, houve novas medidas, decididas nesta segunda fase?

A primeira fase foi combatida. Só tivemos 10 casos, todos com alta até ao início de Março. Conseguimos controlar e ficámos sem casos durante 40 dias, mas já estávamos à espera que a partir de certa altura voltaríamos a ter infectados. Não sabíamos quando, mas sabíamos que seria com o retorno das pessoas de países que também estão infectados. Tivemos o primeiro caso importado a 15 de Março. A partir do terceiro, tomámos medidas mais drásticas. Fechámos praticamente as fronteiras. As únicas pessoas que podiam entrar eram os residentes locais, do Interior da China, de Hong Kong e de Taiwan, bem como os residentes e os não residentes. Ao quinto caso, fomos ainda mais radicais. Cortámos a entrada dos não residentes com excepção dos de Taiwan, Hong Kong e do Interior do País. Além disso, começámos a ir buscar ao aeroporto de Hong Kong, através de autocarros oficiais, todos os residentes a quem fazemos logo o controlo de temperatura e vêm directamente ao hospital onde fazem os testes. Se der negativo, vão para os hotéis destinados à quarentena. Neste momento, já vamos em 12 hotéis e já temos mais de 2000 pessoas em quarentena nesses locais. Assim impedimos que sejam um factor de risco para a comunidade. Os que dão positivo ficam internados na unidade de doenças infecciosas para serem imediatamente tratados.

Como são acompanhadas as pessoas que estão de quarentena nos hotéis?

Há uma equipa com equipamento de protecção individual que vai medir a temperatura aos quartos duas vezes por dia, de manhã e à tarde, que também leva as refeições. Ficam mesmo em isolamento. Se tiverem alguma necessidade, como roupa ou comida que prefiram, podem pedir aos familiares que podem entregar ao pessoal do hotel entre 17h00 e 19h00 e que depois faz a distribuição. No caso de haver crianças, ficam no mesmo quarto que os pais. É assim que conseguimos cortar logo pela raiz o contágio local e impedir que haja casos na comunidade. Por alguma razão Macau é um exemplo para o mundo. Com uma densidade populacional das mais elevadas, temos poucos casos e os casos importados estavam previstos. A última medida que tomámos foi a de proibir a entrada de todos os estrangeiros e ainda dos residentes do Interior do País, de Hong Kong e de Taiwan que tenham visitado outros locais nos 14 dias anteriores à entrada em Macau, e suspendemos todas as escalas no aeroporto. Assim cortámos ainda mais as hipóteses de haver casos importados.

O que acontece aos doentes infectados?

Após ser confirmado que têm o vírus, ficam na unidade de doenças infecciosas. O tratamento é feito à base de antivíricos, que também foram utilizados no SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), o nome mais comercial é “Kaletra”, que é a associação entre lopinavir e ritonavir. Os 10 primeiros tiveram alta, estão curados e em casa. Os internados estão clinicamente estáveis, e terão alta quando estiverem pelo menos três dias sem febre e sem tosse. Pode demorar mais do que 14 dias, que é o tempo do tratamento. Se os sintomas persistirem, continuam em isolamento porque é mais seguro. Antes de terem alta, têm de fazer dois testes. Se o primeiro der negativo, repetimos no dia seguinte. Quando têm alta não vão para casa. Vão de quarentena e seguem os mesmos procedimentos dos restantes: controlo bidiário da temperatura e colheitas das secreções nasofaríngeas. Depois de fazerem a segunda quarentena, são dados como clinicamente curados e o processo fica fechado. Claro que depois podem ser seguidos por outros motivos. Sabemos que nos casos mais graves pode haver sequelas pulmonares, mas isto é uma situação que felizmente não tivemos porque só temos tido casos ligeiros, sem necessidade de cuidados intensivos.

Havia maneira de evitar a segunda vaga de casos?

Era impossível. As pessoas são residentes de Macau, tinham de voltar. Estávamos a contar com esta vaga. Não nos apanhou de surpresa.

O Governo tem insistido muito no controlo da temperatura e nos testes na fronteira. Porque é tão importante e de que forma é efectivo?

Se um doente é apanhado com febre – mesmo que com 37,3 ou 37,4 –, conseguimos identificá-lo logo e limitar o contágio. De todos os doentes diagnosticados até hoje, 40 por cento foram identificados pelo rastreio de temperatura. Queremos estar sempre um passo à frente do vírus.

E tem resultado?

Temos provas que resulta. Macau é um modelo para o mundo. Melhor era impossível. E isso deve-se à coragem de se ter tomado medidas logo. É um vírus extremamente contagioso e, por isso, tem de se ter coragem de actuar. Se temos receio, perdemos tempo. Não queremos dar um milímetro de vantagem ao vírus.

O uso das máscaras também tem sido uma das tónicas da prevenção.

Já entregámos mais de 30 milhões de máscaras à população. A cada 10 dias, distribuímos 10 por pessoa. Já vamos na sétima ronda. A partir da terceira, começámos a distribuir também máscaras pediátricas. Foi difícil adquirir. Conseguimos um milhão de máscaras pediátricas, dos 3 aos 8 anos. A partir dos 8 anos podem usar uma máscara de adulto e antes dos 3 anos é desaconselhável porque a criança pode sufocar e, havendo uma epidemia, nem é desejável que saia de casa. Esta política foi muito importante e os resultados estão à vista.

Que procedimentos se tomam para despistar outros contágios quando se identifica um paciente?

Tentamos saber com quem teve contacto, que nem sempre é fácil, e depois atendemos a critérios como a distância e se o contacto foi íntimo. A partir daí, identificamos as pessoas e vamos à procura delas para fazerem os testes.

Como tem sido feita a gestão do pessoal médico? 

Os profissionais de saúde, principalmente os da linha da frente, têm de ter um cuidado extremo. Têm de cumprir à risca todas as medidas de segurança, como vestir o equipamento e ir mudando várias vezes. Há outros colegas que vêem se estão a fazer tudo bem, há formação. Existe uma pessoa com mais experiência que vigia, ensina e corrige. Temos recursos mais do que suficientes, quer do ponto-de-vista dos equipamentos como dos testes. Não temos falta de nada. Não tivemos nenhum profissional de saúde infectado.

Quem pertence às equipas que lidam com pacientes infectados?

Geralmente são profissionais das equipas de urgência, porque têm mais treino. Mas que têm de dar formação a colegas de outros serviços porque a equipa tem de ser renovada. Temos uma equipa que apelidamos de “Dirty Team”, que vai lidar com os doentes de COVID-19, em sistema de rotatividade. Durante 14 dias, a equipa, constituída por 23 médicos e 60 enfermeiros, acompanha esses doentes em sistema de turnos. Após esse tempo, entra outra equipa e esses profissionais vão para quarentena no edifício dos Serviços de Saúde – que fica ao pé do hospital –, para não irem para casa e não infectarem outros. Desde o início da epidemia, houve 3000 médicos e enfermeiros que se voluntariaram para trabalhar com as equipas da epidemia após o horário de trabalho. Estamos a viver um momento de solidariedade. Só unindo esforços e, muitas vezes, copiando modelos é que podemos ter sucesso. Não temos nenhum profissional de saúde infectado e contamos com cerca de 230 camas para isolamento.

Que lições foram aprendidas com o SARS?

Permitiu-nos agir por antecipação. Sabíamos que 80 por cento do RNA (DNA de um vírus) do COVID-19 era igual ao da SARS e que havia muita probabilidade de provocar, no mínimo, os mesmos efeitos. Infelizmente, foi ainda pior.

A comunidade está alarmada com o aumento recente do número de casos. Há alguma mensagem que queira deixar?

Não devem ter receio porque são casos importados. O que aconselho é que continuem a seguir as directrizes do Governo e dos Serviços de Saúde.

Tem previsão de prazos para o fim da pandemia?

É muito difícil dizer quando tudo vai acabar. A melhor forma de combatermos o vírus é através da comunhão entre as medidas do Governo e a população, cumprindo as regras de quem está dentro do assunto e percebe.

O que deve mudar depois disto?

Temos todos de reflectir. Temos de ser solidários.

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Panorama geral

Jorge Sales Marques explica que há sete tipos de coronavírus em que há transmissão humana. Além dos três mais famosos –SARS, MERS e COVID-19 –, há outros quatro, mas que são menos violentos. O COVID-19 tem um menor índice de mortalidade – cerca de 2,5 por cento – face ao SARS, mas um alto índice de contágio. Inicialmente, realça o médico, pensava-se que a transmissão era só através de gotículas de saliva. Hoje sabe-se que o vírus consegue ficar quatro horas numa superfície de cobre, 24 horas em cartão, e entre dois a três dias no plástico e no aço inoxidável. “A melhor forma de controlarmos a situação e irmos eliminando o vírus é o isolamento”, avisa. “Se não tivermos contacto com o vírus ele não se vai propagar e não haverá novas mutações”, acrescenta. O COVID-19 já tinha infectado, no momento do fecho desta edição, cerca de 500 mil pessoas em quase 200 países e territórios. Os Estados Unidos era o país com o maior número de infectados, enquanto Itália tinha a maior taxa de mortalidade. O COVID-19 tem um maior índice de contágio e mortalidade em pessoas com mais de 55 anos, com um predomínio nas do sexo masculino e com doenças crónicas, oncológicas e cardiovasculares. “A forma de atacar o vírus não se pode limitar às medidas do Governo e dos Serviços de Saúde. Tem de haver uma completa cumplicidade entre isso e a população”, alerta o médico de Macau.

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Crianças à prova

Até ao momento, o novo coronavírus tem poupado as crianças com menos de 10 anos de idade. O médico Jorge Sales Marques fundamenta a incidência diminuta com a estimulação frequente do sistema imunológico através de vacinas nos primeiros 18 meses de vida, seguida pelo reforço da vacinação entre os 5 e os 6 anos, e entre os 10 e os 13, assim como a sujeição frequente a infecções virais durante a infância, nos infantários e nas escolas. Nos adultos, apesar de tanto as infecções virais como a sujeição a vacinas serem frequentes, a memória imunológica é menor.