Nadar é no mar

Faça chuva ou faça sol, nada os demove. Os membros do Clube de Nadadores de Inverno de Macau fazem da água (fria!) terapia. O prazer pelo desporto e pelo mar faz com que o frio, que não escondem sentir, passe a segundo plano assim que mergulham

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

Janeiro lembrou Macau do frio, que raramente para por estas bandas. Os termómetros marcaram temperaturas mais baixas logo no início do ano, mas nem nesses dias Diogo Cheong prescindiu da rotina que repete todos os dias há quase quatro décadas.

Sem excepção, o actual presidente do Clube de Nadadores de Inverno de Macau marca o ponto às 5h30 na Praia de Cheok Van, e por lá fica normalmente até às 11h30. As seis horas em Coloane, ressalva, também incluem o convívio e chá com os amigos e companheiros de braçadas.

Antes do treino dentro de água, aquece meia hora. Nada cerca de 10 minutos e percorre entre 500 a 600 metros ao longo da praia. Horizonte lá ao fundo, silêncio no areal, ninguém por ali… ingredientes que fazem da experiência um prazer em lugar de sacrifício que seria de esperar dada a altura do ano. O cenário calmo contrasta com a azáfama do Verão, quando a praia se enche de gente que hesita entre o mergulho e a sombra na areia porque é pouca a diferença de calor dentro ou fora de água.

“O segredo está em aquecer muito bem”, afirma Diogo Cheong, estoico à saída e entrada do mar. O banho quente compensador que seria expectável depois não acontece. Assim que termina o treino, toma um banho sim, mas de água fria nos chuveiros públicos, limpa-se à toalha e veste-se rapidamente.

Não se lembra da última vez que ficou doente e só mais tarde na conversa refere que foi há dois anos. “São só benefícios. Tornamo-nos menos friorentos, o sistema imunitário fica mais forte e apanhamos menos doenças, como gripes e constipações. Tenho mais apetite e durmo melhor”, realça, deixando o mais importante para dizer a seguir. “Acima de tudo, é uma prova de superação. Um teste à capacidade de resistência. Se aguento e ultrapasso a dificuldade de nadar com frio, também sou capaz de aguentar e superar os desafios da vida”, afirma.

Foi por causa das vantagens que lhe encontra que o líder associativo e os amigos criaram o Clube de Nadadores de Inverno, que resultou da fusão de outras duas associações mais antigas nunca registadas oficialmente – o Clube de Nadadores de Inverno Tong Hoi (東海冬泳會) e o Clube de Nadadores de Inverno Chong Tou (松濤冬泳會).

A iniciativa do actual surgiu em 1979 e formalizou-se em 1985. Quando ainda se mergulhava nas águas do ZAPE, só se podia fazê-lo depois de se alugar uma das quatro plataformas através das quais se acedia à água. Um grupo de nadadores amadores que se encontrava frequentemente ali, incluindo Diogo Cheong, decidiu organizar-se não só para ser mais fácil assegurar que tinham sempre uma das infra-estruturas em madeira e que podiam nadar, como para promover, ou não deixar morrer, a modalidade como a praticam: no mar e no Inverno.

O clube começou com cerca de 30 membros, hoje tem perto de 40. Mas são mais os que se aventuram em alturas de frio. Diogo Cheong diz que há sempre um grupo de 50 a 60 pessoas que mantém o hábito todo o ano. A maioria é homens na casa dos 40 anos, e aparece sobretudo entre as 5h30 e as 8h30. Há quem vá em grupo, mas também há quem vá sozinho.

Sem igual

O segredo, assegura Cheong, é começar a praticar no Verão para que seja mais fácil que o corpo e o organismo se adaptem às temperaturas baixas das estações frias. Ainda que recomendável para a saúde, não é de todo para os que sofrem de problemas cardiovasculares, de pele e para os mais velhos, avisa o nadador, que também é treinador de competição desde os anos 1980 e a quem ainda sobra tempo para se dedicar aos estudos de caligrafia chinesa na Academia Sénior do Instituto Politécnico de Macau.

Por experiência, diz que as correntes no mar não diferem muito do Verão para o Inverno e que a grande disparidade entre estações, claro, se nota na temperatura da água. Se no Verão costuma estar abaixo da temperatura exterior, no Inverno é ao contrário. “Há dias em que cá fora o termómetro marca oito graus e a água está a 10”, garante o líder do clube.

Com 64 anos e 38 de natação, continua a optar pelo mar para se manter em forma. Começou quando ainda era mergulhador nos Serviços de Alfândega, antiga Polícia Marítima. “Nadava no mar só de vez em quando e no Verão. Passei a fazê-lo também de Inverno por causa do trabalho, que o exigia. Tinha de estar em forma e preparado, uma vez que a profissão obrigava a que muitas vezes tivéssemos de mergulhar no Inverno”, recorda.

Há dois anos, experimentou a água mais fria desde que começou, rondava os dois graus e nem assim desistiu. “Prefiro nadar no mar. O ar é mais puro, a paisagem é mais bonita e a água não tem cloro. Só voltei a nadar em piscina para competir.” O que também fez no mar durante décadas. Parou aos 60 anos, mas até lá foram várias as provas em que marcou lugar. Há uma que nunca falhou: a do dia 1 de Janeiro em Hong Kong. “Reunia mais de mil participantes”, lembra com entusiasmo.

Macau também chegou a acolher duas competições, organizadas pelo Clube que deixou de o fazer há cerca de uma década dada a escassa adesão. A primeira foi em 1987, ainda no ZAPE; a outra em Cheok Van, em 2010.

Juventude precisa-se

Diogo Cheong gostava mais dos tempos no ZAPE por ser mais conveniente já que estava no centro da cidade. Apesar de nostálgico – mostra uma foto do local –, admite que a praia em Coloane é melhor. “A qualidade do ar é melhor e é bem mais seguro nadar na praia do que onde nadávamos no ZAPE”, explica.

Interrompe a conversa várias vezes para mostrar as fotografias que enchem a mesa da sala e o orgulho pelos feitos desportivos. Na cómoda, há uma em destaque por outros sucessos: a que registou a condecoração que recebeu do então Chefe do Executivo, Chui Sai On, em 2012, por salvar um homem no mar, em Setembro de 2009, na zona do Porto Exterior; e por ter resgatado sozinho, num barco a remos, um nadador perdido no mar na praia de Cheok Van, em Fevereiro de 2010. 

Também dado à corrida, mostra mais uma fotografia entre as dezenas que guarda nas gavetas e telemóvel: a que aparece com a Tocha Olímpica na mão na passagem por Macau a caminho dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008.

A vida dedicada ao desporto está também plasmada no móvel que tem na sala cheio de taças, suas e do filho, que lhe seguiu as pisadas. Felix Cheong, com 35 anos, começou a nadar por volta dos cinco anos e, como o pai, prefere o mar à piscina. “Estou mais próximo da natureza. Além disso, o ambiente, o clima, a qualidade da água, as correntes e as pessoas que encontro cada vez que vou nadar no mar são diferentes. Gosto muito mais”, afirma o jovem.

Também como o pai, encontra no desporto um fim maior que a saúde. “Na natação de Inverno, passo por lutas interiores. É um desafio para o corpo e para a mente. Depois de nadar, sinto-me cheio de energia. Sou mais resistente ao frio e tenho adoecido menos.”

Adepto da natação, por que causa menos lesões do que outros desportos, costuma nadar entre 1500 a 2000 metros, normalmente sozinho, já que pratica antes ou depois do trabalho na função pública. Garante que nunca se força a entrar na água se não se sentir bem e para isso tem o cuidado de fazer alongamentos, exercícios de aquecimento e correr. Mas, ao contrário do pai, abre excepções. “Se estiver muito frio, vou nadar na piscina.”

A temperatura é a grande diferença que encontra. Se no Verão se pode alongar, no Inverno restringe o treino entre cinco a 10 minutos para evitar que a temperatura do corpo desça demasiado. “Quando nos habituamos a nadar no mar, já ninguém quer mais nadar em piscina.”

Prova disso é Connie Zhang que nadava na Piscina Olímpica até experimentar nadar no mar. Nunca mais quis outra coisa. “É o lugar ideal para quem gosta de nadar. Sob o ponto de vista da saúde, é muito melhor. Podemos respirar ar puro, a água é mais natural do que a da piscina e não há cloro nem desinfectantes. É ideal para quem gosta da natureza como eu”, realça.

Apesar das mais-valias, admite que há dificuldades e perigos, que também já viveu. “Houve uma vez que não conseguia voltar porque fiquei presa na corrente. Nadei e nadei durante 20 minutos, e não conseguia sair dali. Tive medo. Os colegas nadadores disseram-me para nadar em sentido oposto à orla, de forma a sair dos movimentos giratórios da água primeiro e só depois mudar o sentido para voltar à margem. Quando cheguei à praia, estava exausta”, lembra. “Não basta coragem, temos de ter experiência e capacidade física, senão é fácil cairmos em situações perigosas.”

Há sete anos que Connie Zhang pratica natação no mar, quando se inscreveu no Clube de Nadadores de Inverno. Começou no Verão, continuou no Outono, aguentou o primeiro Inverno e continuou. “Há com certeza diferenças entre Verão e Inverno, especialmente quando a temperatura atinge menos de 10oC. O frio penetra a pele e chega até aos ossos. Principalmente para nós, gente que já tem alguma idade, nadar no Inverno é mesmo desafiador e uma prova à persistência. Enquanto a natação no mar no Verão é prazerosa, no Inverno é mesmo um treino físico e um teste à perseverança”, acrescenta Connie Zhang, que costumava nadar em grupo de manhã, mas que agora vai sozinha e de tarde porque não tem um horário fixo de trabalho e tem de tomar conta dos pais.

Apesar de nunca ter competido, confessa que gostava que Macau acolhesse mais eventos desportivos. “Claro que gostaria que houvesse competições de modalidades aquáticas no mar em Macau, como competições de mergulho, de surfe e de natação”, exemplifica.

Já Felix Cheong tem pena que cada vez menos pessoas nadem no mar. “Todos têm mais diversões, além de optar por locais mais confortáveis para praticar desporto, como ginásios. Apenas os nadadores mais velhos nadam no mar. Acho que sou o membro mais jovem do Clube. Nos últimos anos, os dias em que a água está fria ainda há menos pessoas”, desabafa o atleta que começou a competir aos 10 anos e que ganhou provas internacionais, como a Competição de Natação de Inverno do Dia de Ano Novo de Hong Kong.

É também com pena que o pai, Diogo Cheong, constata que são poucos os sócios mais novos. Hoje há apenas dois ou três com cerca de 20 anos. Lamenta, mas não se resigna: “O clube não vai morrer. São tantos os benefícios. A superação, excedermos os nossos limites e atingir o que pensávamos que nunca conseguíamos são sensações indescritíveis”, sublinha, de peito cheio.