Patuá ganha nova vida

O Teatro em Patuá foi incluído este ano na lista de Património Cultural Imaterial da China. Aquele que em tempos foi o dialecto corrente dos macaenses chegou até aos dias de hoje muito por culpa do teatro e do grupo Dóci Pápiaçam, responsável por manter viva a tradição nos últimos 30 anos. “Olâ Pisidénte” foi a primeira peça do grupo, formado em 1993 

Texto Catarina Brites Soares | Fotos Dóci Pápiaçam di Macau

O patuá foi durante a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX um dos principais factores de coesão da comunidade macaense que continua a resistir para evitar que o crioulo morra. Miguel de Senna Fernandes, à frente de duas das principais associações macaenses e director dos Dóci Pápiaçam, tenciona editar em livro as cerca de 30 peças levadas a cena pelo grupo com edições em patuá, português, chinês e inglês. A publicação, frisa, é mais uma forma de assegurar que o Teatro em Patuá é preservado e enfatizar o significado da comunidade na história de Macau.  

“Esta inclusão na lista de Património Cultural Imaterial da China é uma nova visão que se tem sobre o crioulo. Formalmente quem adquire o estatuto é o teatro, mas é óbvio que sem o patuá não teria as características que levaram a que fosse nomeado património intangível. No fundo estamos a reconhecer um estatuto ao crioulo”, realça Miguel de Senna Fernandes, que escreve, encena e dirige os Dóci Papiaçám di Macau, assim chamado em homenagem ao poeta Adé, figura máxima da comunidade macaense e mentor do teatro no crioulo luso-asiático, e que assim designou o patuá pela primeira vez [ver caixa]. 

O reconhecimento nacional, salienta, é importante porque assinala a presença da comunidade na região. “Macau só tem a ganhar com isto porque há um nítido reconhecimento do que podemos chamar de multiculturalidade e miscigenação. Reconhecer um teatro com base nesta língua faz jus a estes fenómenos que estão a ser desenvolvidos aqui há séculos.” 

Foi a 10 de Junho de 2021 que se ficou a saber que o Teatro em Patuá se juntaria a outras práticas culturais de Macau reconhecidas nacionalmente, quase 10 anos depois de ter sido considerado património intangível localmente [ver caixa]. “Se ao nível da RAEM já foi importante, a subida de patamar é ainda mais importante. É essencial que o Governo local olhe para o património, agora reconhecido pelo Governo Central, e que garanta pelo menos meios para que tenha pernas para andar.” 

A academia também tem procurado impedir que o património desapareça. “Quim Sâm Nôs?” foi o título da tese de doutoramento de Elisabela Larrea e na qual analisa a comunidade macaense através do Teatro em Patuá, língua que defende ser um contributo para promover a imagem de Macau graças ao multilinguismo, multiculturalismo e multietnicidade que transporta. “O reconhecimento da cultura macaense é também um gesto de aprovação da diversidade cultural que coexiste em Macau”, vinca a investigadora, que tem traduzido para chinês as peças dos Dóci nos últimos anos. 

Senna Fernandes considera que estes títulos valem por terem “o condão” de chamar a atenção da riqueza cultural de Macau, mas garante que não vai mudar a essência do que tem feito. 

Quem já assistiu sabe que há traços inalienáveis dos Dóci Papiaçám. A sátira, o escárnio e o humor, além do patuá, são características que marcam presença em todas as peças. Há 30 anos que é assim. “Não vai mudar. Aliás, foi essa forma que levou o teatro Patuá a ser património intangível. Não faz sentido fazermos algo completamente diferente. É esta a nossa identidade”, afirma o dramaturgo. 

A herança vem de Adé, expoente máximo da literatura no crioulo que nasceu em Macau e também dramaturgo. “Claro que bebemos da tradição, o tom sarcástico, o olhar arguto sobre o que se passa na sociedade. Este teatro foi sempre usado como uma chamada de atenção e vamos continuar a fazê-lo assim”, reitera Senna Fernandes. “A vida em Macau não é um paraíso e até o facto de se estar no paraíso também seria motivo de chacota. Mesmo no dia, que espero que aconteça, que formos chamados para representar no Continente, vai ser igual.” 

Trabalho de casa 

O levantamento de dados e de documentos sobre o Teatro em Patuá andava a ser feito desde que a manifestação cultural passou a fazer parte da Lista do Património Cultural Imaterial de Macau, em 2012. O lançamento de um livro com todas as peças dos Dóci Papiaçám era uma das ideias que estava a ser estudada para garantir mais chances de integrar o nacional. “Toda a vivência do grupo foi à volta deste trabalho. Isto é um tesouro. Daí surgiu a ideia de fazer uma compilação, é um registo e aquilo que temos de mais representativo”, explica Senna Fernandes, que conta com a ajuda da investigadora Elisabela Larrea. 

O livro, frisa, foi a resposta à pergunta: “O que é que fica? Há a memória, mas isto torna-se algo mais sério. Quando apresentámos os nossos argumentos para a candidatura do Teatro em Patuá para património intangível a ausência de registo foi um problema que se colocou logo”. 

A constatação de que havia um vazio tornou premente fazer mais do que subir ao palco todos os anos. “Tudo o que se fala de patuá é até ao José dos Santos Ferreira. Depois há um vácuo. Temos de ocupar este espaço porque é um espaço legítimo dos Dóci”, sublinha Miguel de Senna Fernandes.  

A primeira edição do livro, com versões em português, inglês e chinês, deve sair por alturas do aniversário do grupo, a 30 de Outubro de 2023, como uma espécie de antologia das peças que considera serem registos da vivência de Macau. “Se formos às primeiras peças, nota-se que era muito revivalista, saudosista. A partir de certa altura, os Dóci tornam-se mais críticos, mais brincalhões e quando brincam, fazem-no com todos os meios ao seu dispor. Esta época que durou mais tempo, mais de dez anos. Em 2016, mudámos de tom, introduzimos a música, há outra maneira de contar a história. Não é mais uma comédia situacional, uma história que embrulhamos com situações do dia-a-dia. A última peça foi feita mesmo para brincar com o público. Estávamos trajados dos anos de 1950, mas depois falamos de coisas actuais, muito ao estilo de Gotham City. Já estou a pensar no próximo ano, vai ser um musical”, adianta o encenador. 

Patuá: vivo ou morto 

As peças com uma forte componente crítica social ajudam a perceber a Macau contemporânea. Anualmente, no Centro Cultural de Macau, fazem o retrato de cenários, histórias, personagens da cidade com graça e tendo em atenção a geografia humana da região. Traduzida nas duas línguas oficiais do território – o português e o chinês –, além do inglês, para todas as comunidades entenderem, é em patuá que é falada apesar de o crioulo ter deixado de fazer parte da rotina da região.  

A investigadora Elisabela Larrea reconhece que o patuá está em risco porque caiu em desuso, mas ressalva que há formas de o reavivar e preservar, pelo menos na medida em que os herdeiros culturais sejam capazes de identificar a língua, bem como usá-la para se expressar em frases e palavras simples.  

Um passo importante que evitou o declínio, salienta, foi o aparecimento dos Dóci Papiçám di Macau. “Até a comunidade chinesa começou a mostrar-se interessada nas peças. A preservação de uma cultura requer cooperação de toda a comunidade, ultrapassa as fronteiras dos grupos étnicos ou herança cultural”, afirma a académica que há mais de duas décadas se dedica à investigação do crioulo. Em 2008 já tinha abordado o tema na tese que lhe valeu o grau de mestre, intitulada O Macaense na Rede Global

A par do teatro, Larrea considera que pode haver outras ajudas que garantam a preservação, como cursos e seminários dirigidos sobretudo a crianças e adolescentes. “A consciência da importância de preservar um bem cultural deve ser criada desde muito cedo”, fundamenta a investigadora, filha de pai basco e de mãe macaense de sétima geração.  

Sobre a ameaça à sobrevivência do patuá, Alexandre Lebel, que também dedicou a tese de doutoramento ao tema, afirma que depende. Se se considerar o crioulo do período da administração portuguesa, deixou de existir e é pouco provável que ressuscite. “Neste sentido, a transmissão de certas palavras e padrões foi interrompida”, explica. “Mas as línguas sofrem alterações, especialmente se tivermos em conta as transformações sociais e políticas de Macau. Mais do que o respeito pelas regras gramaticais antigas, o uso do patuá hoje representa uma forma de pensar e viver. O patuá actualmente é a expressão da capacidade de os macaenses comunicarem em diversas línguas, ambientes e de diferentes formas”, defende. 

“Quando falamos de patuá temos aquela ideia de ser uma coisa antiga, do século XIX, porque há um certo arcaísmo. Se falarmos sobre este patuá, já morreu. Não há ninguém que fale assim, a não ser os Dóci. Todavia, se ouvirmos macaenses desta geração a falar português, ainda ouvimos resquícios que vêem do patuá, ou seja, sobrevive de outra maneira”, acrescenta Miguel de Senna Fernandes, também presidente da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses.  

O académico Alexandre Lebel refere que, tradicionalmente, o patuá e outras variedades do português eram as línguas das comunidades cristãs na Ásia. “Muitos académicos estabelecem uma relação entre o declínio dessas línguas e a queda da influência da Igreja Católica. A administração portuguesa e a Igreja foram bastante inclusivas permitindo que as pessoas de diferentes origens manifestassem ambas as identidades. Esta atitude é visível no desenvolvimento do patuá e do significado cultural de Macau como actor da história global”, frisa. 

Apesar do valor, o investigador admite ser impossível antecipar a longevidade do patuá e afirma que depende dos parâmetros de diversidade cultural que Macau adoptar. “Vemos diferentes tendências no mundo. Por um lado, a da homogeneização e assimilação. Por outro, a afirmação de sociedades multiculturais e inclusivas. Com base na minha investigação, o uso do patuá é um exemplo da última. É um convite a expandir a nossa experiência cultural e a misturar-nos com os outros”, considera.

Miguel de Senna Fernandes reforça o simbolismo do crioulo: “O mais evidente é a miscigenação, a origem da comunidade, a raiz portuguesa muito forte. Outro dos motivos porque estamos a fazer o livro deve-se à necessidade de preservar certas referências da nossa comunidade. Sabemos que a comunidade é frágil. É permeável”. 

A história de Macau, acrescenta Elisabela Larrea, é indissociável do patuá e dos macaenses. “O vocabulário mostra como Macau foi um porto de trocas comerciais importante entre a Europa e a Ásia, com presença de elementos do português, cantonês, malaio, japonês, Ccastelhano, concani, malaiala, entre outros idiomas”, enumera. “O patuá é em si uma demonstração do processo de globalização nos seus primórdios e da importância histórica de Macau nesse processo.” 

“É uma questão de resiliência, de chamar a atenção e de dizer ‘calma’ porque, em primeiro lugar, isto é Macau, em segundo lugar o patuá aconteceu porque Macau permitiu que isto acontecesse. Sem coexistência cultural, nunca teria existido”, vinca Senna Fernandes. “Isto é importante para Macau. Não querem que Macau seja uma verdadeira plataforma, como é que se pode ser isso sem um substracto cultural? Macau tem a sua história porque existiu a comunidade macaense.” 

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Adé: a grande figura do patuá   

Foi com José dos Santos Ferreira, poeta macaense mais conhecido por Adé, que o crioulo ganhou visibilidade. Figura incontornável da comunidade macaense nas décadas de 1970 e 1980, ficou na memória colectiva pelo esforço de décadas para divulgar o dialecto de Macau. Poeta, dramaturgo, tradutor e liricista, Adé, com mais de 20 obras publicadas, foi o primeiro a dar ao patuá uma ortografia e gramática definidas. Por isso, foi agraciado pelo Governo português, em 1979. O então Presidente da República Portuguesa António Ramalho Eanes condecorou-o com o Grau de Cavaleiro da Ordem do Infante D. Henrique. Cinco anos depois, o Governo de Macau atribuiu-lhe a Medalha de Mérito Cultural.   

Os 20 títulos que publicou em vida incluem a crónica, a poesia, a ficção, a prosa e as peças de teatro e comédias, pelas quais Adé também se celebrizou. Morreu em Hong Kong a 24 de Março de 1993. Três anos depois, a Fundação Macau editou e publicou Obras Completas de José dos Santos Ferreira. Além de uma extensa obra escrita, Adé gravou álbuns e registos sonoros em que declamava e cantava. 

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Instituto Cultural promete reforçar trabalhos 

O País anunciou a 10 de Junho que passaram a fazer parte da Lista de Património Cultural Imaterial Nacional mais três itens de Macau: a Gastronomia Macaense, o Teatro em Patuá e as Crenças e Costumes de Tou Tei. Em reacção, o Instituto Cultural (IC), assegurou que vai “proteger e promover” as tradições. “No futuro, o IC irá continuar a desenvolver os trabalhos de identificação, arquivo, levantamento e pesquisa sobre o património cultural intangível de Macau e, em simultâneo, irá continuar a proporcionar uma plataforma de divulgação e promoção para a conservação e a sucessiva transmissão deste tipo de património”, refere a nota publicada pelo organismo no dia em que foi conhecida a notícia. 

“A inscrição bem sucedida dos itens (…) não só aumenta o seu reconhecimento e mecanismos de protecção do património cultural intangível, como também reflecte e serve de exemplo sobre o intercâmbio harmonioso que houve em Macau entre as culturas chinesa e ocidental.”