O que pode mudar com a música

A música é o instrumento de trabalho de Christal Chiang e Crystal Wong, duas das quatro terapeutas musicais que trabalham na cidade. À MACAU, explicam o propósito da profissão e como pode ser eficaz em diversas idades e na solução de diferentes problemas

Texto Catarina Brites Soares | Fotos DR

Cheng Ieong tem um filho de sete anos com autismo, diagnosticado quando tinha um ano e, naquela altura, começou a ter sessões de musicoterapia. “No início, ele isolava-se do mundo. Só chorava, não queria interagir e não entendia quem tentava comunicar com ele. Felizmente, mostrou interesse pela música”, conta a mãe, que decidiu experimentar a musicoterapeuta. “Funciona como magia. São evidentes os benefícios holísticos – físicos, mentais e emocionais”, sublinha Cheng Ieong. “Estou verdadeiramente feliz por ter encontrado a musicoterapia. Os profissionais desta área não só têm conhecimentos sobre as necessidades das pessoas, como desenvolvem ferramentas que as ajudam na melhoraria do bem-estar”, realça. “Espero que haja cada vez mais consciência e entendimento da importância desta área, e que continue a crescer em Macau, de forma a que mais pessoas possam beneficiar das suas mais-valias.”

O filho de Cheng é um exemplo das várias crianças, adolescentes, adultos e idosos que Christal Chiang e Crystal Wong ajudam. Ambas trabalham com todas as faixas etárias em musicoterapia, área que usa a música e elementos sonoros (som, ritmo, melodia e harmonia) como forma de desenvolver capacidades de comunicação, relação, aprendizagem, expressão e organização, assim como colmatar necessidades físicas, emocionais, mentais, sociais e cognitivas.

O principal objectivo, como explicam as terapeutas, é desenvolver e restabelecer funções do indivíduo para que possa alcançar uma melhor integração e qualidade de vida, através da prevenção, reabilitação ou tratamento.“É importante esclarecer que não somos professores de música. Não ensinamos música. Usamo-la enquanto ferramenta que pode ajudar no desenvolvimento de valências e capacidades não musicais”, esclarece Christal Chiang. “A música é o veículo para chegarmos aos objectivos”, reforça a colega Crystal Wong. “Muitos dos meus pacientes são crianças com problemas de desenvolvimento que se tentam combater e reduzir através da música”, exemplifica.

“No âmbito da educação especial, por exemplo, recorremos à música ‘Head, Shoulders, Knees and Toes’ para ensinar às crianças onde é e como se chama cada um dos membros. A música funciona como um estímulo para aprender, que de outra forma não existiria”, exemplifica Christal Chiang.

As melhorias notam-se, reforça Crystal Wong, que aponta as que se registam ao nível da interacção. “Os pais dizem que se tornam miúdos mais felizes, que socializam mais. Por exemplo, se antes ouviam música de forma passiva e não reagiam especialmente, depois de sessões de terapia começam a dançar e a cantar com quem os rodeia, e isto é um reflexo dos resultados.”

O método varia em função do terapeuta e das necessidades do paciente, acrescenta. “Não há um padrão, mas por norma implica tocar instrumentos, dançar e cantar. Depende sempre do que pretendemos.”

O que se procura é também o critério que pesa na selecção musical, refere Chiang. “No caso das crianças usamos músicas infantis, mas com os idosos, e apesar de terem perdido a memória ou faculdades, não os infantilizamos porque não são crianças e, portanto, escolhemos outro tipo de música”, vinca. “Perguntamos sempre o que gostam de ouvir e se não sabem dizer, temos de observar como respondem e reagem ao que vamos tocando e cantando. É também por isso que uma das qualidades que os terapeutas têm de ter é a de serem observadores”, sublinha Chiang, que trabalha em lares e centros de idosos.

Na escola onde também dá sessões, apoia miúdos com necessidades especiais, entre elas a dificuldade de concentração. “Só o estarem sentados numa cadeira a ouvir uma aula durante 40 minutos é um esforço enorme para eles”, diz. “Nas sessões de terapia musical – como há movimento, música e dança – conseguimos que estejam atentos durante o mesmo tempo.”

A musicoterapeuta salienta que, por vezes, os objectivos passam por conquistas tão simples como conseguir que mantenham o contacto visual. No que respeita às crianças, a terapia musical tem mostrado igualmente resultados na educação inclusiva, junto daqueles com autismo, dislexia e outros desvios que dificultam o processo de aprendizagem. Christal Chiang diz que a maioria está em escolas normais e consegue prosseguir, mas que a terapia ajuda a combater disparidades. “Crianças com autismo, por exemplo, têm dificuldade em fazer amigos porque é difícil expressarem-se. A música funciona como desinibidor e permite que normalizem comportamentos como o contacto visual, cumprimentar e o aperto de mãos. A música também é usada como meio de expressão para eles”, explica.

Os musicoterapeutas avaliam o bem-estar físico e emocional, o funcionamento social, competências de comunicação, cognitivas e motoras através de respostas musicais. As sessões são planeadas com base nas necessidades do paciente, utilizando a improvisação sonoro-musical, audição, escrita de canções, discussão das mesmas, a prática, e a aprendizagem através da música. Por norma, integram equipas multidisciplinares. 

Para miúdos e graúdos

É com as crianças que as terapeutas locais mais trabalham, mas salientam que a musicoterapia é igualmente relevante para outros grupos. No caso dos adultos, Chiang explica que muitas vezes é um recurso para combater o stresse.

O mestrado em Aconselhamento, na Austrália, permitiu-lhe trabalhar também nesta área em Macau, onde tem organizado workshops em colaboração com departamentos públicos, como os Serviços de Administração e Função Pública. Durante as sessões, de três a seis horas, ensina como aliviar a ansiedade através da música. “Há pessoas que fazem yoga, outras caminham, a música é outra alternativa. Neste caso, é através dela que se controla a respiração, o batimento cardíaco e, consequentemente, se consegue relaxar. A ideia é aprender técnicas de relaxamento com e através da música, por exemplo, respirando de acordo com o ritmo”, sintetiza.

A especialização em Artes na Psicologia, adquirida nos Estados Unidos, fez com que em Macau também começasse a trabalhar com idosos, especialmente os que sofrem de patologias do foro neurológico como demência. “São pessoas com dificuldades em memorizar e recordar, mas a música faz milagres, porque funciona como um gatilho para activar o cérebro”, sublinha Chiang, que, neste âmbito, colabora com a União Geral das Associações dos Moradores desde 2015.

Crystal Wong, também com experiência em centros de idosos e lares, reforça os efeitos transversais da terapia musical. “Acho que o nosso trabalho enfatiza muito o lado humano pela capacidade de potenciar e atender às necessidades de cada um. Não tem de se saber cantar ou tocar um instrumento para se poder fazer terapia musical. Muitos dos nossos pacientes não falam, outros estão em cadeiras de rodas, mas na terapia arranjamos sempre forma de poderem participar. O nosso trabalho permite e ajuda a melhorar a qualidade de vida das pessoas, e a que percebam que podem sempre participar e desfrutar apesar das limitações.”

“Assim como outro tipo de terapia, a musicoterapia é recomendada a qualquer pessoa que sinta que algo a está a afectar”, salienta. “Em países como nos Estados Unidos, é uma área bastante desenvolvida. Há terapeutas musicais em escolas, hospitais, centros de recuperação e de reabilitação, de saúde mental, entre outros”, enumera. A variedade é bastante maior que em Macau, onde ainda há poucos profissionais da área e o sistema de certificação está por criar. 

Em resposta à MACAU, o Instituto de Acção Social (IAS)  refere que não tem dados exactos sobre o número de terapeutas de música na região, mas ressalva: “A terapia através da música é uma das terapias artísticas, um tratamento cujo objectivo é o de ajudar os utentes de serviços a melhorar comportamentos e a integrarem-se. Desde 2019 que este Instituto, através do programa de apoio financeiro especial, tem vindo a apoiar as instituições de serviços de reabilitação a realizar o plano de terapias artísticas. Entre os projectos realizados pelas instituições subsidiadas está incluído o curso de terapia através da música”.

O IAS realça ainda que as instituições de serviços de reabilitação constataram que os participantes conseguem libertar sentimentos, aprender a expressar-se emocionalmente e a controlar as emoções. “Este Instituto irá continuar a cooperar com as instituições de serviços de reabilitação para desenvolver os referidos planos subsidiados, avaliar e analisar a eficácia do serviço de tratamento acima referido para os utentes de serviços, bem como proceder à revisão oportuna do futuro desenvolvimento desse serviço”, promete o organismo público.

Entraves à profissão

Foi também por isso que nasceu a Associação de Musicoterapeutas, criada em 2015, com o objectivo de promover a profissão e consciencializar a sociedade. Conta com quatro membros, os mesmos que as terapeutas suspeitam que existam em Macau. “Apesar de haver poucos, julgo que somos quatro, gostávamos que houvesse uma certificação. Vamos continuar a trabalhar nesse sentido. Uma das principais ambições da associação é conseguir isso”, afirma a presidente Crystal Wong.

Na área há 13 anos, Christal Chiang, com experiência profissional em Singapura além de Macau, nota evolução no território. “Hoje, há mais conhecimento e reconhecimento da profissão.” Justifica o número reduzido de profissionais pelos custos elevados que implica a formação e a percepção de que é complicado encontrar emprego. “O curso não existe aqui e nem toda gente tem a possibilidade de estudar nos Estados Unidos, no Canadá, no Reino Unido ou na Austrália, onde a área já está bastante desenvolvida. Além disso, há a sensação de que não é fácil encontrar emprego porque não há procura, o que não é verdade porque há.”

Crystal Wong também se multiplica em trabalhos. Além das sessões numa escola de educação especial, trabalha numa ONG e dá sessões privadas de terapia musical. Assiste entre 40 a 80 pacientes por semana, em sessões de grupo ou individuais, de 30 a 75 minutos.

A terapeuta, que se licenciou na Universidade do Kansas e fez um mestrado em Aconselhamento em Educação por meio das Artes , em Hong Kong, dedica-se sobretudo a alunos entre os 2 e os 20 anos com necessidades especiais, que sofrem de autismo, hiperactividade, Síndrome de Down, atrasos na fala, entre outras deficiências de desenvolvimento. “Acho que cada vez mais gente conhece o termo, mas provavelmente não sabe exactamente o que faz um musicoterapeuta. Antes de me licenciar, também não conhecia esta área. Os pré-requisitos para estudar dificultam, não é fácil entrar porque exige desde logo bases em música, por exemplo, saber algum instrumento ou saber cantar. Se não se tiver nenhuma valência nesta área é muito complicado”, admite. “Quando era miúda quis aprender piano, mas apenas por lazer. Acabei por escolher seguir musicoterapia porque vi uma utilidade no que tinha investido, uma forma de usar música com um propósito maior do que o prazer: o de ajudar as pessoas.”

Christal Chiang também realça a gratificação inerente ao trabalho e insiste que há impactos nos diferentes grupos. “Em termos de resultados, nota-se que as crianças com necessidades especiais ou outros problemas são mais expressivas, têm mais facilidade em verbalizar, aumentam a capacidade de atenção e de concentração, e são felizes, e isto é muito importante. As crianças precisam de se sentir felizes quando estão a aprender e estão felizes nas sessões de terapia musical. Mesmo as crianças com autismo e outros problemas, desfrutam. Este tipo de patologias não têm cura, mas pode haver melhorias.”